tag:blogger.com,1999:blog-11449457904631984622024-03-21T12:41:50.117-07:00Romances de Alma WeltEste espaço é dedicado à
publicação dos romances inéditos da grande escritora gaúcha Alma Welt, falecida em 20 de Janeiro de 2007 e que deixou imensa e excepcional obra em prosa e verso, que eu, Lucia Welt, sua irmã, estou compilando e divulgando.Lúcia Welthttp://www.blogger.com/profile/07605250870392022092noreply@blogger.comBlogger2125tag:blogger.com,1999:blog-1144945790463198462.post-59218072546151167632007-11-09T08:04:00.000-08:002008-12-04T04:42:03.997-08:00O SANGUE DA TERRA (Romance de ALMA WELT)<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjRYub0HiOlJhzG0UBv87lbHJpWhEuoDhyphenhyphen9oyhF0fyPuiYD9PDmYzV64CIGOqMYik3BSE9b3WCAx-ZgCsCO7BJ9xZeh1aoaHotytL70hKVnJdnem_FdbAeZGkOwx0A4VGM0W_4A1H48no5z/s1600-h/A+invoca%C3%A7%C3%A3o+m%C3%A1gica+da+Alma+II.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjRYub0HiOlJhzG0UBv87lbHJpWhEuoDhyphenhyphen9oyhF0fyPuiYD9PDmYzV64CIGOqMYik3BSE9b3WCAx-ZgCsCO7BJ9xZeh1aoaHotytL70hKVnJdnem_FdbAeZGkOwx0A4VGM0W_4A1H48no5z/s320/A+invoca%C3%A7%C3%A3o+m%C3%A1gica+da+Alma+II.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5156951621400950098" /></a><br />A invocação mágica de Alma Welt- óleo s/tela de Guilherme de Faria, 150x150cm. Coleção Fernando Carrieri, Salto, SP, Brasil.<br /><br /><br /><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj5v9S_SJUWHjHqgxrf1hbnylEnLKT2VdVEC0Csr45ENkl3zzIzVM-tdzERjcCdUKp2hGxNKuZMSqK2-fZgTJG4W4d3uKANy7wa2IKlOjEnwxXPknH_lSaO6GwvqWsxe4a21cRcVJ4uwHDc/s1600-h/desenho+circular.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj5v9S_SJUWHjHqgxrf1hbnylEnLKT2VdVEC0Csr45ENkl3zzIzVM-tdzERjcCdUKp2hGxNKuZMSqK2-fZgTJG4W4d3uKANy7wa2IKlOjEnwxXPknH_lSaO6GwvqWsxe4a21cRcVJ4uwHDc/s400/desenho+circular.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5134248811392757842" /></a><br /><br />Esboço para o rótulo do vinho "Ara dos Pampas" cuja safra de 1962 foi descoberta por Alma e mencionada no romance A Herança. O desenho de Guilherme de Faria segue as especEsboço de Guilherme de Faria (com a primeira côr) para o rótulo do vinho "Ara dos Pampas", segundo especificações da própria Alma. <br /><br /><br /><br /><br />Prefácio ao romance O Sangue da Terra, de Alma Welt<br />(por Guilherme de Faria)<br /><br /><br />Primeiramente devo dizer que saúdo, entusiasmado, este terceiro volume do romance-trilogia "A Herança" da poetisa gaúcha Alma Welt.<br />“O Sangue da terra”, com este título sugestivo, romântico, que ecoa intencionalmente as velhas sagas rurais, a autora lírica que ao escrever prosa, consegue ser tão direta e quase coloquial como em sua poesia de fundo simbolista e carregada da poderosa carga de libido que lhe é peculiar, isto é, cheia de um encantador erotismo sem malícia.<br />Por quê “sem malícia”? Porque Alma Welt considera com razão que a malícia é filha da hipocrisia e da repressão sexual, atributos espúrios que ela não contém em sua alma clara, límpida, malgrado uma pequena e inquietante zona de mistério, que lhe confere um sabor "exquis".<br />Alma se expõe de uma maneira notável, corajosa em uma mulher. Ela “confessa” tudo. Com explicitude ao mesmo tempo estética, isto é, ela consegue nada esconder, e ainda assim permanecer encantadora, hipnótica. Talvez a beleza despojada de sua linguagem musical seja a responsável por esse fenômeno. Ela nunca vulgariza o sexo, e quando surge uma linguagem mais chula notamos que está praticamente entre aspas, ou seja, na boca de seus inimigos e opressores. Sim, porque esta bela criatura é vitimada ao longo de sua narrativa por adversários invejosos ou cobiçosos de sua beleza tentadora. <br />Voltaire, o grande filósofo libertário da França, teria dito: “A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude”. No caso de Alma, seus inimigos, hipócritas a princípio, tiram suas máscaras, exasperados pela provocação inconsciente que a beleza e sensualidade desta mulher pura e "candide", embora inteligente, exerce sobre as pessoas que convivem com ela. Nunca li antes páginas eróticas mais legítimas, belas e originais do que as deste livro. A cena da “fecundação de Aline”, que adquire um caráter ritual, é um dos exemplos mais notáveis dessa capacidade da autora. Alma Welt ainda consegue ser original sem artifícios de linguagem na descrição de cenas de sexo explícito. <br />É preciso que se diga que se estou dando ênfase a essa conotação no livro de Alma bem como em quase todas as suas obras, é porque compartilho de sua “profissão de fé”, exposta na sua “declaração definitiva”, aos leitores, na página 85: “Declaro solenemente que não acredito na dicotomia de corpo e espírito...” E mais adiante: “Sexo é espírito...”<br />Finalmente, cabe ressaltar aqui, a construção primorosa, redonda, de seus romances, dos quais este é a continuação linear do primeiro, “A Herança”. <br />Naturalmente, seria preferível o leitor ter lido o primeiro romance, já que este segundo corresponde a uma terceira parte de uma saga em forma de trilogia, em volumes assim intitulados: <br />1. A Herança<br />2. A Ara dos Pampas<br />3. O Sangue da Terra<br /><br />Estaria ao final deste último volume encerrada a saga dos Welt, no seu casarão de estância gaúcha em meio a um jardim florido e ao vinhedo dos avós? Esperemos que não. Alma Welt continuará para sempre cavalgando pelas pradarias ou passeando no meio das flores de seu jardim materno ou no seu pomar sacrificando aos deuses e aos “numes dos pampas” diante de sua macieira querida: “ a ara dos pampas”, ou nadando no riacho, nua, entre suas amigas e amantes Laís e Aline, e com Rôdo, seu irmão maravilhosamente incestuoso. Sem culpa, vital e alegre para sempre, esta Anima viva, que apareceu em nossa literatura para povoar nossa imaginação com signos renovados de beleza simples e lírica. <br />Alma, leve-me com você no seu próximo romance!<br /><br /><br />GUILHERME DE FARIA<br /><br />São Paulo, 13 de Julho de 2005 <br /><br /><br /><br />Alma Welt<br /><br /><br /><br />O SANGUE DA TERRA<br />Romance (Segundo Tomo da Trilogia A HERANÇA)<br /><br /><br /><br />Capítulo primeiro<br /><br />Laís<br /><br />Recebo Rôdo e sua namorada Laís para a temporada de inverno em nossa estância. Estou feliz, pois a moça conquistou minha simpatia, a partir dos episódios ocorridos aqui, quando de sua primeira estadia, narrados no meu romance A Herança. <br />Assim que chegaram, descendo do novo carrinho esporte de meu irmão, reparando na perna perfeita da guria, e em seu pé maravilhoso numa sandália fina, que evidenciava o modelo grego, isto é, o segundo dedo mais comprido que o primeiro, tive uma espécie de pressentimento profundo, de que eu teria aquela moça em meus braços, pensamento, na verdade, um pouco perturbador, pois não podia saber ainda como Rôdo reagiria a uma eventualidade assim. Como um indício dessa possibilidade, Laís abraçou-me apertado, e profundo, demoradamente, embora isso pudesse se dever a um reconhecimento, ou cumprimento pela minha luta para salvar a estância, luta essa que ela acompanhara de perto, na temporada anterior. De qualquer forma, fiquei comovida e intrigada ao mesmo tempo, com o seu abraço prolongado. Rôdo retirava as malas do bagageiro, e não reparou, em como nos olhávamos longamente nos olhos, abraçadas ainda. Eu poderia amar Laís, eu senti isso naquele momento. Uma vez eu provara de seus lábios, rapidamente, eu contei isso no meu romance, e por isso quase levara uma surra de minha Aline, embora de uma maneira ambígua, brincalhona. Mas agora Aline estava em São Paulo, para minha preocupação e ansiedade, pois temia que ela se encontrasse com o antigo namorado, aquele Pedro, que me atacara tão brutalmente, acontecimento que narrei no meu romance e que Aline ainda desconhece, pois meu livro ainda permanece inédito, até este momento, embora nas mãos de um editor que o está avaliando. O original que dei à Aline para ler está, naturalmente expurgado, retirei essas páginas tão chocantes e comprometedoras. Ela parece, portanto não saber de nada, a não ser no seu inconsciente profundo. Por isso mesmo temo uma reaproximação dos ex-namorados. Eu não pude alertar Aline quanto à natureza brutal de Pedro, para não despertar suas suspeitas. Por outro lado, eu sei, até quando (vocês leitores devem estar me cobrando), vou esconder isso de minha amada? É um dilema que ainda não consegui resolver em meu coração. <br />Por ora, vejo-me tentada a aproximar-me mais de Laís, pois a fidelidade carnal, não faz parte do meu caráter, e a própria Aline sabe disso, embora sofra um pouco por conta dessa peculiaridade da minha natureza de poeta. Ela sabe que eu poderia amar o mundo todo, carnal e espiritualmente, se fosse possível, e que coleciono, por assim dizer, conquistas do meu leito, que quero que atinjam a marca do milheiro. “Casanova de saias”, me chamaram um dia, pois bem, o mundo verá... Meu coração tem fôlego para amar assim cada uma delas, dessas conquistas, sem nenhum arrependimento, a não ser por um único caso, o do jovem padre suicida, de minha adolescência, cuja estória narrei num dos Contos Secretos*, também inéditos, até esse momento.<br />Agora, aqui, recebendo Aline e Rôdo para nova temporada em nossa estância, me dou conta da riqueza de minha vida, e do momento privilegiado, que vivo, antes do ansiado retorno de minha Aline. Vou conquistar Laís, isto é certo, embora deva reconhecer que a moça é que pode estar fazendo isso, pois parece ser tremendamente experiente, enquanto, eu apesar de todas as minhas conquistas não passo de uma “guria”, um tanto ingênua no fundo, como o meu como o meu prefaciador detectou logo nos nossos primeiros encontros e denunciou nos seu prefácio aos “Contos da Alma”. Algo que ele chamou de “candura”, e que, no fundo, me lisonjeia.<br />Depois de instalada no quarto de Rôdo, Laís voltou à sala para um aperitivo e bate papo antes do delicioso almoço preparado com tanto carinho por nossa querida Matilde para o seu amado Rôdo, o seu predileto, o que ela praticamente criou. O prazer desses momentos de reencontro e confraternização, é o melhor da vida, e me remetem aos tempos do Vati, aqui, presidindo tudo, como um rei benevolente em sua corte, cercado de seus súditos que o veneravam. Agora não temos mais nenhuma liderança, e eu não poderia ocupar esse lugar, devido à minha natureza profundamente solitária, embora, ou por isso mesmo, reverente e apaixonada. Há uma contradição, talvez, em minha vida, tão cheia de conquistas. Mas é a mesma contradição dos grandes apaixonados, capazes de prosternar-se diante de outros seres humanos, e de uma subserviência que tem um fundo de carência, na verdade. Somos insaciáveis, um poço sem fundo, famintos de amor e de prazer, pois somos os maiores solitários, pela nossa mesma consciência subjacente, sempre presente, da trágica condição básica do ser humano: a solidão.<br />À mesa, durante o maravilhoso repasto de Matilde, o vinho correu, eu me excedi um pouquinho, aparentemente de tanta felicidade pela volta de Rôdo, neste momento auspicioso de nossa estância e de nossa vida familiar. Patrícia, Pedrinho, e os gêmeos estão com Lúcia em seu sítio em Alegrete, e voltarão dentro de quinze dias, quando todos estaremos juntos novamente, e com Aline ao meu lado, minha companheira amada, a quem preciso contar tudo o que falta contar, para sermos completamente felizes. A sombra do estupro que sofri do seu ex-namorado, pesa entre nós, na minha memória e no inconsciente de Aline, que assim o captou. Tomo neste momento a decisão de tudo revelar a ela, imediatamente ao seu retorno. Por ora, trato de aproveitar estes momentos deliciosos com Rôdo e Laís.<br />Desta vez, após o almoço, é Laís quem me leva, meio carregada para o quarto, no meu novo pilequinho. Quando estou muito feliz ou eufórica tendo a me exceder no vinho, mas isso acontece raramente em minha vida, e serve, eu percebi, para liberar uma última parcela bloqueada dos meus impulsos amorosos por uma pessoa presente entre os convivas. Agora trata-se de Laís, e Rôdo que me conhece tão bem, ostenta um sorriso benevolente, bonachão, nada irônico, eu sei, pois meu irmão está longe de sentir ciúme de Laís comigo, pois me considera uma extensão dele mesmo, e nossa cumplicidade é, assim, abrangente, como vocês irão testemunhar mais adiante. <br />Apoiada em Laís, com o braço em sua cintura, apalpei-a um pouco a caminho do quarto, e ela ria, me amparando até à cama onde me deitou, enquanto eu a puxava sobre mim, para seus lábios tocarem os meus. Laís correspondeu ao meu beijo, relativamente, dizendo: “Alminha, minha querida , quero beijar muito esses lábios, mas quando eles não estiverem mais assim, com tanto gosto de vinho. Descanse agora, Alma, que depois nós teremos a nossa oportunidade, que espero tanto quanto tu esperas. Agora durma, meu amorzinho, que Rôdo me espera para a sobremesa.” Lancei-lhe um beijo insinuado com um pequeno movimento dos lábios, com os olhos já semi-cerrados... e adormeci. <br />_______________________________________________<br /><br />Acordo no fim da tarde, e vou banhar-me, no box do meu banheiro da suíte, e qual a minha surpresa, quando através da porta de vidro de correr, meio fosca, e no meio de todo aquele vapor, diviso alguém se aproximando até abri-la, e colocar a sua cabeça dentro do box, sorridente. É Rodo, que me saúda, dizendo: “Oi, irmãzinha, curou o pilequinho? Trouxe-te um presente, uma companhia para o teu banho. Veja quem está aqui para compartilhar essa ducha e esse vapor todo, contigo ( puxou Laís já nua de trás de si) e empurrou-a com delicadeza para dentro do box, linda, de olhos brilhantes sorrindo, meio envergonhada). Eu a acolhi com imensa alegria, colocando-a sob o jorro da água quente, como a uma menininha que passava o mas mãos no rosto, sem fôlego, afastando os cabelos e água dos olhos, bufando, meio sem fôlego. Beijei-a imediatamente ali, nossos lábios muito molhados, sob o olhar deliciado de Rôdo, enternecido, pois percebi que essa cena remontava sua memória à nossa infância, quando todos os irmãos ( exceto Solange, que se recusava) éramos postos pelo Vati, para tomarmos banho juntos, para desgosto da Mutti. Rôdo sempre amara esses momentos e se esmerava em ensaboar-me, para ciúme de Lúcia, que era também bem bonitinha. É curioso lembrar que Rôdo manipulava minha “chantinha” para lavá-la, com absoluta anuência do Vati, o supremo liberal, o grande experimentador pedagógico, que escandalizava minha mãe, obscurantista e tacanha. Depois de moços, sempre que temos oportunidade tomamos banho juntos, eu e Rôdo, principalmente no açude da estância, nus, quando acreditamos que não há ninguém nos vendo, o que na verdade nunca é seguro, haja visto as palavras do senhor Galdiano no seu depoimento em meu processo. <br />Ali, naquele momento eu quis a plenitude da ternura e do prazer e pedimos ao Rôdo que se despisse e entrasse no banho conosco, mas ele, surpreendentemente, disse que tinha um encontro marcado com os peões da estância, e desejou-nos “um feliz banho”, dizendo para aguardá-lo da próxima vez. Deixou-nos a sós naquele banho maravilhoso, que sentiria apenas a sua falta. Tratei de esmerar-me na técnica das carícias com sabonete, sentindo todas as reentrâncias daquele lindo corpo de mulher, tão belo quanto o meu, mas diferente, moreno, de pelos negros sobre a sua maravilhosa vulva muito bem moldada, como uma concha. Fi-la inclinar-se para frente, para abrindo suas nádegas, examinar o seu ânus, emoldurado belamente por pêlos negros, mas sedosos, e lavei-o cuidadosamente, até um pouco além da entrada do anel saliente. Depois provei-o um pouco com a língua, que enfiei alguns centímetros. Laís contorcia-se sob a ducha suspirando e dando gritinhos. De repente virou-se e agarrando-me a cabeça colou seus lábios nos meus com certa sofreguidão, enfiando sua língua na minha boca e lambendo minhas gengivas. Então, com suas mãos ainda me segurando, afastou um pouco seu rosto, e com os lábios abertos, sem ar, ainda muito próximos dos meus, balbuciou, antes de suas palavras tornarem-se audíveis sob o rumor da ducha:<br />—Alma, Alma, minha querida, quero-te, quero-te muito, vamos... sair, vamos sair do banho, vamos nos enxugar, vamos para o quarto, para o teu leito, quero comer-te de beijos, quero-te todinha, quero conhecer cada pedacinho do teu corpo maravilhoso. Alma, eu te amo, e Rôdo sabe e adora isso. Ele me contou tudo. Sobre a relação de vocês, e tudo mais. Como ele te ama, Alma, como ele te adora, a ponto de primeiramente fazer-me aceitar isso, e depois aos poucos conseguir fazer-me amá-la e desejá-la também, quando a conheci, e me encantei com a tua beleza e tua pureza, Alm! Sim, porque és pura, com toda a tua experiência e sabedoria não perdeste a tua candura, o mais encantador em ti. Venha! Venha! <br />Comovida e lisonjeada com suas palavras, eu me deixei levar e enxugar como uma menininha, por ela, que secava com delicadeza minhas reentrâncias, e entre minhas nádegas, preparando-me para si. Eu estava encantada e emocionada, antevendo momentos de êxtase que eu só sentira até então, com minha Aline. <br />Levada, literalmente, para o quarto, por Laís, que me deitou suavemente sobre a cama, eu me sentia desfalecer de emoção e de tanto prazer antecipado, que não foi decepcionado, quando ela levantou minhas pernas pondo-as sobre seus ombros, em posição ginecológica e mergulhou lentamente... <br /><br />________________________________________ <br /><br />Tenho me esforçado por dirigir os trabalhos da vinha, para que a produção do nosso vinho não cesse, mas confesso que tanto eu quanto Rôdo não somos bons estancieiros, nem administradores. O próprio Vati não o era, e deu no que deu. Precisamos conseguir um bom administrador que entenda da plantação e da produção de vinho. Mas, onde encontrá-lo, e como confiar num estranho? Tenho conversado sobre isso com Rôdo, que também está perdido, quanto a esse assunto. Ele diz que encontrará um, se se puser a andar por Alegrete ou Santana do Livramento, ou mesmo indo até Porto Alegre e passando um tempo por lá. Mas tenho receio dessas temporadas de Rôdo, pela sua atração pelo jogo, embora no seu caso não seja vício, e ele não seja o tipo que fica endividado, nem nunca tenha incomodado a família com isso. Na verdade, meu irmão dentro de um cassino parece estar no seu elemento, e numa mesa de pôquer, parece um jovem gangster de cinema, e não posso deixar de admirá-lo, eu que já o vi em ação. Mas a verdade é que embora Rôdo seja corajoso, e blefador nato, essa atividade e esse ambiente são sempre um tanto perigosos, e temo no mínimo pela inveja que a sorte e o aplomb do meu irmão causa em outros homens, bem como a atração em um certo tipo de mulheres perigosas, que são como aquelas rêmoras que grudam na barriga dos tubarões incansáveis, peregrinos de sua própria predação.<br />A verdade é que nenhum de nós quatro herdou a vocação para agricultura, de nosso avô, e estamos de pé, ainda, apenas pelas “possibilidades extensivas” , como dizia Spengler, na sua “Decadência do Ocidente”. Será, então que a nossa própria decadência, e da nossa estância, é fatal, e já começou? Ai, não! Sempre haverá a solução de transformar tudo isto num atraente hotel- fazenda, embora o problema de um a boa administração continue de pé. Chego a pensar que a minha natureza de artista, e a de Rôdo, de jogador (embora ele tenha muito de artista também ) já são sintomas dessa decadência, pois nós artistas temos mesmo a vertigem da dissipação, até pela consciência maior que temos da transitoriedade da vida, e sua tragédia intrínseca, que nos faz confiar no sonho e na criação de mundos puramente espirituais ou imaginários, que materializamos na tela e no papel, aos olhos do mundo.<br /><br />________________________________________ <br /><br /><br />Laís está radiante depois de nossa tarde de amor, e quer repeti-la logo, eu percebo. Ela contou tudo ao Rôdo, que afinal, foi quem propiciou esse nosso encontro de prazer, cujo único perigo é transformar a atração em amor mesmo, e sua conseqüente nova dependência. Mas não queremos isso. Espero a minha Aline esforçando-me por não transformar a minha saudade e carência em uma nova paixão substitutiva. Ai! Aline, volta, volta logo, ou não sei o que será de mim, nem de Laís e Rôdo. Mas será que tu, aí em São Paulo não me estás traindo com teu ex, aquele bruto? Ah! Se soubesses que foi ele que me deixou no estado que tu testemunhaste... Esse homem pode também ferir-te! Ai! Não posso pensar nisso, que o coração se me aperta de angústia! <br />Corro ao telefone e ligo para Aline em São Paulo. Tive sorte de encontrá-la na casa de sua mãe, no telefone que me deixou. Mas essa senhora, uma italiana meio bronca, que atendeu primeiro, foi um tanto ríspida e grossa comigo: <br />— Alô, sim, aqui é a mãe de Aline, sei quem é você, e olhe, francamente acho melhor que a senhora fique longe da minha filha. Ela deveria viver aqui, comigo. Porque a senhora “arrastou ela” para tão longe de mim, sua mãe? Além disso, porquê ela brigou com o namorado? A senhora é responsável por isso? Ela precisa é casar, ter filhos, dar-me netos, não acho uma boa essa relação de vocês, vocês não se desgrudam! Espere, não, Aline deixe-me falar com ela, ela precisa... <br />—Alô Alma, Sou eu, não, não, esqueça o que minha mãe disse. Desculpe-me fazer você passar por isso. Eu não queria que ela atendesse. Alma, eu te amo! É isso mesmo, mãe, eu amo a Alma, e estou casada com ela! Larga, larga, mãe... Alma, desculpe-me minha mãe está louca, e.... ai ! <br />Ouvia-se uma enorme confusão, gritos e discussão do lado de lá, e eu permaneci estarrecida, com o fone no ouvido até cair a linha. Então caí num imenso pranto, logo consolada por Laís, que abrindo a porta do meu quarto ao ouvir o meu choro, entrou e veio me abraçar. Agarrei-me a ela, soluçando, enquanto ela, também com lágrimas nos olhos, me fazia deitar na cama onde eu estava sentada, ao telefone, e cobriu-me com seu corpo em toda extensão e começaram os beijinhos, primeiro nos olhos e nas faces molhadas, e logo na boca apaixonados, quentes, enquanto ela dizia baixinho: <br />—Alminha, minha querida, o que é isso, não chora, não chora... Eu vou consolar-te, enquanto Aline não vem. Vem meu amor dá-me teus lábios, mulher linda, eu posso te amar, assim, assim...<br />A imensa ternura, surpreendente, de Laís, que eu descobrira, realmente me consolou, naquele momento, e deixei-a beijar-me inteira e despir-me por ela, que me possuiu com um ardor crescente, com os lábios e com os dedos, denunciando o crescimento de uma paixão, que eu deveria temer, como um elemento complicador, quando Aline voltasse. Se ela voltasse. <br /><br />__________________________________________<br /><br />Peço ao Galdério que sele dois cavalos, meus preferidos, pois convidei Laís a cavalgar comigo pela pradaria. O interessante é que essa iniciativa produziu em mim uma espécie de sentimento de traição, de infidelidade, em relação à minha Aline, que a relação sexual apaixonada de ontem não despertara. Porque será que essas cavalgadas devem ser exclusivas da minha amada, enquanto distribuo meu corpo com relativa facilidade? A resposta para essa questão talvez remonte às raízes da minha sexualidade, ao flagrante de minha mãe, no meu pomar, que fez-me desde então afrontar o mundo da repressão e mesmo da simples exclusividade, como um anjo rebelde, caído. Quero dar-me a todos os que me amarem do jeito certo, isto é, com reverência pela minha pureza intrínseca, indestrutível, imortal. Será isso o orgulho? Mas um orgulho assim, é, segundo a definição clássica, o próprio Lúcifer, enquanto eu, olhem para mim, poderia ser satânica? Sou do bem! Sou inocente, sou um cordeiro da natureza, e por isso Deus me fez tão bela. Se ele quisesse me punir teria retirado a beleza que me deu de nascença, e que me faz tão desejada nesta vida por tantas pessoas, homens e mulheres! <br />Laís aparece em traje de montaria, com culotes e botas lindíssimas. Como é bela e elegante esta guria. Ao contrário de Aline que não tira os seus jeans e camisetas, e raramente usa uma saia indiana, fina que lhe dei e na qual fica irresistível, a namorada de Rôdo é uma pequena lady, uma mulher de luxo, cosmopolita e sensual de uma maneira clássica, diferente da sensualidade moleca de Aline. Mas isso não quer dizer que estou balançada, não me interpretem mal. O que existe entre mim e Aline é consolidado, o meu amor por ela é total, e ela me parece insuperável em suas qualidades e encanto. Apenas... não posso deixar de olhar uma beleza assim, como a de Laís, que não me pertence, essa é que a verdade! Sinto como se ela mesma e meu irmão, por pura generosidade, a estão emprestando a mim, por incrível que pareça, para consolar-me pela ausência temporária de Aline. Laís comporta-se comigo como se dissesse:<br />“Alma, não chores por Aline. Ela voltará, é certo. Mas enquanto ela estiver longe, vou cobrir-te de carinho, como teu irmão me pediu, o que corrobora o meu próprio desejo. Vou encher-te de beijos e dar-me toda, já que tanto amas a beleza feminina, embora poucas cheguem aos teus pés.” <br /><br /><br />Sei que tudo isso parece pretensioso e até delirante, mas tento ser objetiva, e vocês meus leitores, que já me conhecem, sabem da minha tendência inata a viver numa permanente dimensão poética, o que nem mesmo a violência e o estupro conseguem tirar de mim, de minha vida de poeta predestinada. Não fosse assim eu não seria artista, não seria a poeta que sou, herdeira do “idealismo alemão” dos meus ancestrais. O Vati me criou assim, para isso, e uma vez, ainda mal saída da adolescência me disse algo que nunca antes revelei a ninguém, nem sequer à Aline: <br />“Alma, filha querida, quero que tu vivas a tua vida em plenitude de carne e espírito. Estás, como se diz, “instrumentalizada” para isso, pelo que te dei, pelo que te ensinei. Quero que fruas a beleza do teu corpo, como do teu espírito; que te dês em plenitude de desejo e prazer aos eleitos do teu coração e que eles sejam muitos! Pois a verdadeira vida é a vida plena da carne saciada, para que o espírito seja livre, sem as peias da carne carente, da repressão dos tolos e dos fracos. Seja tu uma bacante de ti mesma, e faça do teu próprio espírito o Dioniso interno, selvagem em sua liberdade extrema. Ama e sê amada por muitos, por todos se possível, e cobiçada como um tesouro até pelos teus inimigos. Vai, Alma, pela vida como quem dança e canta, como o vento, como o pampeiro!” <br />Montadas, Laís e eu, disparamos em direção à porteira, onde já nos aguarda Lazinho, nosso “negrinho do pastoreio”, para abrir-nos a passagem, sem nos determos, num galope contínuo em direção ao horizonte da pradaria infinita. Como amo estas cavalgadas! Estar assim com os cabelos ao vento, no balanço harmônica que descobri ainda criança, sobre a sela e até em pelo, no lombo de um pampeiro de longa crina, acompanhada como agora, por uma bela criatura que me segue destemidamente, é uma dádiva do meu Pampa, e serve sempre como um intermezzo na grande opereta que sinto ser o meu destino. Uma Ópera Gaúcha, se isso houvesse, pois a consciência da beleza destes momentos, e de toda a minha vida, me faz chorar de comoção e mesmo de gratidão, por meus pais, o de cima e o Werner, o cirurgião artista que me criou, assim, panteísta, povoada pelos numes do Pampa, pelos deuses do Olimpo, e pelos do Walhalla, ao mesmo tempo. Como não ter gratidão pela dádiva de tanta força, de tanto amor... de tantos amores? Existem hipócritas, eu sei, que compartimentam e separam, amor de paixão, carne de espírito, amor de amores. Mas eu, levo tudo dentro de mim, sem dicotomias, ou melhor, em unidade atemporal. Meus inúmeros amores são o meu Amor! Meu desejo carnal é manifestação do meu espírito reconciliado com a carne, a bela carne que me foi dada, êxtase e delícia para os olhos dos humanos e até dos animais que parecem me amar e ser atraídos por mim, sempre senti assim. Nunca um cavalo me derrubou, nunca um cão me mordeu: eles vêm lamber as minhas mãos e meu rosto... e eu os amo. Como poeta expando meu mundo aos animais e às plantas, às ervas e às grandes árvores do meu pomar e as da pradaria, imponentes, que compõem o meu cenário ideal, que quero dividir com os que amo, vocês meus leitores e agora esta ninfa morena e cosmopolita, que me acompanham nesta exata galopada. Só pararemos quando ela, exausta pedir, gritando: “Pára , Alma, e retira-me daqui, para os teus braços, faz comigo como fazes com tua Aline! Eu te cairei por cima, quero beijar-te, toma-me, amazona loira, ou me atirarei desta sela e terás de carregar-me nos teus braços!” <br />Paramos afinal, e poucas destas palavras imaginárias não se encontravam nos olhos negros de Laís. Eu fiz o que me pediam, apeei primeiro, segurei sua cintura sobre a sela, e fi-la inclinar-se sobre mim, como fazia com Aline, sem jamais poder agüentar o peso de outra mulher, e fazê-la cair sobre mim, que amorteci também a sua queda, em risos e gargalhadas. Sou incorrigível, mas não me levo tão a sério como pareço. Sou frágil, e sou engraçada. Tenho consciência das minhas fraquezas... e me adoro! Por isso posso amar, tanto e tão intensamente o outro ser humano, mormente quando sua beleza, interior, exterior, ou ambas, me deslumbram. Vem Laís! Agora é o teu tempo. Aline está longe!<br /><br />_____________________________________ <br /><br /><br />Rôdo foi a Porto Alegre, para fechar negócio com um colecionador, sobre um lote de peças valiosas do tesouro que encontramos na caverna, sob a estância*; uns relicários de ouro, que incorrem num certo perigo de confisco, pois parecem estar associadas a uma igreja de Alegrete, que pode reivindicar, com um atraso de cem anos, a sua posse. A transação tem que ser secreta, e só estou revelando isto aqui, pois as peças, a igreja e a cidade não correspondem à realidade e estão, obviamente camufladas neste texto. Enquanto isso Laís permanece aqui, a sós comigo, saudosa dele, mas empolgada com o nosso belo affaire. Mas estamos esperando Lúcia e as crianças que deverão chegar hoje à tarde. Estou ansiosa e não consigo controlar minha euforia com a perspectiva próxima da chegada das minhas queridas crianças. <br /><br />________________________________________________<br /><br /><br />Chegam afinal, Lúcia, Patrícia, os meninos e a querida Alícia, que tão generosamente testemunhou ao meu favor, no tribunal com risco de seu emprego. Com a morte de Solange, ela aceitou o meu convite para trabalhar aqui para ficar perto das suas crianças. Quantos abraços, e beijos! Como é bom estarmos todos juntos novamente! Patrícia agarrou-se a mim, segurando-me as mãos, que não largou por muito tempo, dizendo: <br />— Tia Alma, não quero nunca mais ficar separada de ti. Tia Lúcia foi ótima, mas ninguém me entende como tu, tia. Eu não pude falar com meu namorado, por que a tia Lúcia controlava o telefone, dizendo ser caro o interurbano. Você deixa, tia, eu ligar para ele? <br />Olhei bem para minha sobrinha, linda adolescente, e lembrei de sua infância, aqui comigo, durante tantas temporadas de férias. Uma criança adorável. Agora era uma mocinha e tinha os típicos problemas de sua idade, e eu podia compreender Lúcia que deve ter tido que controlar os gastos com os telefonemas interurbanos, já que os adolescentes não têm senso de medida, nem o de responsabilidade, desenvolvidos. E quando têm, são jovens infelizes, sobrecarregados de superego, como aqueles adolescentes japoneses que se suicidam quando não passam nos exames. Como é difícil crescer! Pensando nisso, lembro-me de quanto sou atípica, como artista e filha de meu pai, um homem sábio, de uma liberalidade inaudita. Um livre pensador, às raias do anarquismo e da experimentação pedagógica, que estimulou até mesmo a minha sensualidade inata. Por isso vivi sempre de uma maneira intensa, extrema, total. Mas eu não era psicologicamente tão dependente dos adultos como minha sobrinha, que é, no fundo como um bichinho ingênuo, cândido, e que será sempre dependente de um homem, como de uma mãe, já que lhe falta um pai verdadeiro. Por falar nele, onde anda o meu querido beberrão, o “borracho” que salvou a minha vida num momento da mais profunda angústia? Pergunto por ele à Lúcia, que me conta que Alberto está internado, para desintoxicação, numa clínica em Alegrete, onde assiste a reuniões de AA. Senti um grande alívio em saber disso e projetei visitá-lo lá, dentro de duas semanas quando espero que esteja melhor, passada já a pavorosa síndrome de abstinência, que Lúcia me informou ter ele vivenciado. Na verdade foi mais que isso. Alberto passou pelos inenarráveis tormentos do delírium tremens, que são a prova cabal da existência do inferno, com todas as suas criaturas do mundo das trevas. Pobre Alberto! Terá ele merecido isso? Lembro-me de uma conversa que tive com um amigo alcoólatra, veterano de AA, que me disse, mais ou menos isto:<br />—Alma, querida amiga, és ingênua, e não sabes verdadeiramente do mal dentro dos homens. Fica sabendo que um alcoólatra, por definição, nunca é uma boa pessoa. Ninguém bebe por suas qualidades, nem sequer sofre por elas, As virtudes não produzem sofrimento dentro das pessoas, são os defeitos de caráter que produzem dor, e levam à bebida descontrolada. É nisso que consiste o drama do alcoolismo. É a doença dos defeitos de caráter, ou dos sete pecados capitais, que são a sua enumeração clássica. Os doentes alcoólicos, não se curam, claro, mas aqueles que conseguem deter a sua doença, o fazem pelo desenvolvimento e o exercício das virtudes imediatamente opostas aos defeitos que estão na base da compulsão daquele doente em particular. Cada alcoólatra tem o seu pecado de escolha, de eleição, onde o álcool se agarra, enraizando-se nele, por assim dizer, lançando ramificações, radículas, pelos defeitos menores, ou filhotes dos sete grandes pecados capitais. Mas, atenção, todos os defeitos ou “pecados”, estão sob a égide do maior deles, o supremo “pecado”, o pai de todos: o Orgulho... que é Satã, Lúcifer, o anjo rebelde”.<br />Apesar do tom ligeiramente messiânico do discurso do meu amigo, ele me parecia fazer muito sentido, dentro de uma lógica não científica, mas filosófica, ou pelo menos poética, o que é melhor. Entretanto, eu tinha dificuldade de enxergar Alberto com esse rigor de julgamento, sobretudo depois que ele me salvara a vida, embora um tanto por acaso. Eu via, desde então, o meu cunhado beberrão como um elemento providencial em minha vida, pois além de tudo fora ele que descobrira a safra oculta dos nossos avós, que precipitara os acontecimentos que, de um jeito ou de outro, salvaram a nossa estância. <br />Quanto aos gêmeos, meus queridos Hans e Christian, estavam mais lindos e unidos do que nunca, e cantavam lindamente em uníssono, com vozes de sopraninos, como dois anjos. E eu pensava que deveriam ficar sempre assim, que a infância não deveria ser transitória para ninguém já que podia ser um belíssimo presente, completo, pleno em si mesmo, como parecia ser o caso dos dois, mais o do Pedrinho, também adorável. Este menino, por ter um pai bêbado, parecia ser mais amadurecido que o normal de sua idade, sem no entanto ter perdido a candura, que fazia dele um menino tão doce e perfeito, que a gente queria abraçá-lo e não largá-lo nunca mais. Aliás eu ficaria com eles, Patrícia e Pedrinho, e pensava na adoção legal. Mas, Lúcia, dizia-me:<br />–Alma, não podes ficar com eles. Cometerás um grande erro se o fizeres. És uma artista e deves permanecer livre. As crianças precisam de uma rotina e disciplina que não saberás proporcionar, já que elas não existem em tua vida. Tu deves partir com Aline, pelo mundo, fazendo exposições e lançando teus livros. Apesar de toda a tua boa intenção, serás prejudicial a estas crianças, se ficares com elas. É melhor que fiquem comigo, que cresçam junto de seus primos, todos juntos na minha casa, no sítio, que já tenho prática de cuidar de crianças, e de cobrar seus deveres de escola, prover sua alimentação regrada e tudo mais. Vai, Alma, pára com essas veleidades, que não são para ti, poeta! <br />Não pude deixar de perceber que ela tinha razão, mas eu tinha, primeiro, que conversar com Patrícia e Pedrinho, que ficariam talvez revoltados, pois queriam ficar junto de mim, naquela eterna festa de existir que eles achavam que era o meu modo de viver. Sempre poderia haver a solução de uma preceptora dando aulas às crianças aqui na estância, como minha mãe providenciara para mim quando era adolescente, com o resultado que revelei no meu conto A Preceptora, dos Contos Secretos. Eu começava a ver que a proposta de Lúcia era a mais sensata, e além disso as crianças estariam sempre perto de mim, que os visitaria em Alegrete, além de ficarem comigo durante as férias todas. As crianças precisavam estudar, e além disso Patrícia precisava namorar o seu coleguinha de escola, e por isso, aceitaria bem a proposta de sua tia Lúcia. Bem, “Não me preocupar! Eis a providência que preside o meu Destino”, dizia o mestre Nietzsche.<br />Assim, recomeçamos uma deliciosa nova temporada, mais despreocupada, não fosse por uma ligeira ansiedade pelo retorno de Aline, que eu achava que corria algum perigo, em relação ao Pedro, seu “ex”, que poderia eventualmente atacá-la, por despeito, ou vingança, como fizera comigo. Comecei a ficar tão ansiosa com essa possibilidade dolorosa, que resolvi precipitar a confissão que eu devia a Aline, para alertá-la, talvez, a tempo, para que não aceitasse nenhuma tentativa de reaproximação do Pedro, que seria um risco imenso. Ele tentaria seduzi-la novamente, eu imaginava, e para isso, me caluniando certamente. Havia ainda o risco de, não conseguindo, então violentar Aline, como, ai !não posso pensar nisso. Liguei imediatamente para Aline, em São Paulo:<br />—Aline, meu amor, sou eu Alma, claro! Estou bem, mas saudosa, e tu? Olha, não procuraste o Pedro, não é? Não o farás, não é mesmo? Olha o que me prometeste. Não, não... olha, tenho que revelar-te algo muito importante. Não, não, não é paranóia! O quê? Conversaremos quando tu voltares? Mas quando, quando? Olha, não recebas o Pedro, se ele te procurar, prometes? Não lhe abras a porta. Depois te explico. Ele não sabe que estás aí, não mesmo? Não deixa ninguém contar a ele que estás aí. Farás isso? Se puder? As pessoas... Sim, sim, eu sei. Mas, Aline, ele é perigoso, quando voltares, te direi como sei disso. O que? Não, não! Não é isso! Conversaremos aqui, tá? Um beijo, meu amor...eu te amo tanto. Me amas? Ai, vou morrer de alegria, volta, volta, minha amada! Até... até breve. Um brande beijo nessa tua boca carnuda. Vou pegar-te de jeito, quando voltares. Ai! Beijos, beijos mil... <br />Percebi ao desligar que Laís estava diante da porta do meu quarto, pronta para entrar, e provavelmente ouvira minha conversa ao telefone. Mas Laís não era uma dissimulada, e quando, batendo os nós dos dedos na porta entreaberta, foi recebida com prazer, ela já entrou dizendo:<br />— Alma, querida, me perdoa. Ouvi sem querer, o que falavas com Aline, mas permita-me dizer que eu espero Aline com tanta ansiedade como tu. Quero saber se me rejeitarás, quando ela voltar. Porque te amo, Alma, tanto quanto a Rôdo, que está me fazendo tanta falta. Sabe, como tu eu também gostaria de juntar todas as pessoas amadas, fisicamente, não só no meu coração. Ah!” Alma, quero-te cada vez mais! Quando estaremos novamente juntas neste teu leito? Ou em qualquer outro lugar, a sós? Alma, Alma, eu sei a querida Patrícia, e as crianças andam por aí o tempo todo, e precisamos ter cuidado. Mas, tu não poderias encontrar-me hoje, logo que as crianças, forem dormir, no galpão de feno? Já examinei o local, e sei que ali te encontravas com Aline, quando vocês ainda se escondiam de Solange. Não me permitirás experimentar aquela palha, nos teus braços, esta noite, no mesmo local, no mesmo leito? Lembra-te que eu não quero roubar-te de Aline, somente... <br />Beijei Laís nos lábios, e em seguida respondi:<br />–Laís, querida, sou privilegiada de ser assim amada por criaturas como Aline e tu mesma; e pelo próprio Rôdo, meu amado irmão, que me ensinou o amor carnal, ainda na infância. Estarei lá, no galpão. Espere-me lá, esta noite, às onze horas, quando todas as crianças já estiverem no sétimo sono. <br />Láis saiu, feliz, soprando-me um beijo no ar. <br /><br />_____________________________________________<br /><br />Quando criança eu amava o Vati, acima de tudo e de todos, e... Rôdo meu irmãozinho, que, a partir dos dez anos, se tornou obcecado, após experimentar meu beijo nos lábios, e o cheiro de xixi da minha “pombinha”, como já contei no romance A Herança. Nossas aventuras e descobertas, a partir daí, adquiriram um substrato sensual e mesmo erótico que permeava a nossa convivência, tornando a nossa vida excitante, excepcional, como uma aventura permanente. Nossa libido, profundamente aflorada, se posso dizer assim, transmitia uma conotação sensual, a tudo o que víamos e tocávamos, ao nosso redor. Quando pela primeira vez assisti com Rôdo a cobertura de uma égua pelo nosso maravilhoso garanhão Minuano, cujo imenso falo, pendurado, me impressionou sobremaneira, e que despejou uma grande parte de sua carga no solo, após a ejaculação na larga vagina de sua parceira, uma das nossas belas éguas, eu me senti profudamente feminina e ansiei por aquele banho branco, que me pareceu com certa razão, o pináculo da experiência carnal. Eu quis, desde aquele momento, que Rôdo fizesse aquilo comigo, mas o pobrezinho tinha um pintinho tão pequeno ainda, e mal podia ejacular, embora vivesse já sempre em riste, com sua cabecinha vermelha inflamada por roçar na sua cuequinha e nas suas calças de brim, ásperas. Ele logo passou a me instar a beijar aquela cabecinha, e a pôr seu pintinho inteiro dentro de minha boca, às vezes junto com o saquinho inteiro. Foi quando ele ejaculou pela primeira vez dentro da minha boca, no fundo da minha garganta, fazendo-me tossir muito, de olhos vermelhos. Mas apesar do engasgo eu adorei aquilo, e iríamos repeti-lo muitas vezes, como, aliás, fazíamos com cada nova descoberta. Daí para a introdução na minha pequena vagina foi um passo, e descobri muito mais tarde, com surpresa, que eu tinha um hímen complacente, e por essa razão não sangrara. Só podia! Pois eu tinha uma natureza complacente com quase tudo na vida, exceto com a maldade, e a crueldade. Mas, meu irmão era puro como eu, e nossa natureza sensual, e mesmo erótica, suspeitada com alarme pela minha mãe (e por Solange), nunca nos decepcionou, e pela nossa aceitação plena, até à exaltação, nos tornou artistas, disso tenho certeza, embora Rôdo ainda não se dedique a uma arte, a não ser a do jogo de pôquer, que, da maneira incrivelmente hábil com que joga, talvez seja mesmo uma arte. <br />Uma vez, no mesmo galpão onde combinei agora meu encontro noturno com Laís, naquele tempo da minha infância tive meu primeiro “banho branco”, que me deslumbrou. Rôdo, superexcitado, inundou-me por dentro, mas eu, graças a Deus, ainda não menstruava, e não corri o risco, impensável, de engravidar de meu irmão. Aliás devo dizer, que fui poupada destas surpresas desagradáveis, ao longo da vida, por pura sorte. Não aconselho ninguém, portanto a me imitar. Como dizem os americanos, jocosamente: “Não tente fazer isso, você mesmo, em casa! ” <br />Mas, naquele tempo, vivíamos soltos, pelo casarão cheio de quartos, alcovas e mansardas, e ainda pelo jardim, o pomar, o açude e a pradaria ao redor. Todos esses lugares foram palco e cenário dos nossos encontros íntimos, que eu não sabia, até recentemente, o quanto eram acompanhados de longe ou de perto secretamente por algumas pessoas, como aquele velho Alípio Galdiano que um dia deporia contra mim no tribunal, e que eu tive de despedir por justa causa, pois se revelara um inimigo. Ou por Solange. E finalmente por Ana Morgado, minha mãe que nos pegou em flagrante, pondo fim àquele ciclo maravilhoso de nossas vidas. <br />__________________________________ <br /><br />Após uma alegre ceia, na nossa grande sala, onde as crianças reinaram, com a as suas brincadeiras e narrativas das experiências do dia, fazendo <br />meus olhos se encherem de lágrimas de reconhecimento pela beleza e privilégios do presente, de minha vida tão plena de dádivas, que me comoviam, fui jogar um jogo de tabuleiro com Pedrinho e os gêmeos diante da lareira apagada, já que a noite estava quente. Esses momentos, tão aprazíveis, gravam-se na minha memória para sempre, e são o sal da vida. Após uma partida, jogada em comum por duas duplas, os gêmeos contra mim e Pedrinho, fui levá-los para a cama para contar-lhes uma história, que naquela noite foram episódios da Odisséia de Homero, que adoro, e que narrei resumidamente, de cor. As maravilhosas peripécias de Odisseu, no seu retorno de Tróia, tentando chegar à sua amada Ítaca e à sua Penélope. Os olhinhos das crianças brilhavam antes de ficarem afinal sonolentos e receberem um beijo cada um nas boquinhas perfumadas de pasta de dente. A vida é bela. E eu estava ensinando aos meus sobrinhos, que os heróis somos nós mesmos, e que as belas aventuras estão ao nosso alcance nas nossas vidas, dependendo de nossa ousadia e disponibilidade, mas, sobretudo, da nossa capacidade de sonhar. Afinal, somos como os aborígenes da Autrália que se auto-designam “o Povo do Sonho”, sim, mas também nós, a humanidade inteira, a quem foi oferecida a dádiva do onírico. Para que o mundo seja maior dentro de todos e a vida não se restrinja a um pequeno cenário doméstico, para a alma aventureira do homem! <br />Então quando os vi adormecidos, saí pé-ante-pé, e fui para o meu quarto para preparar-me para o encontro com Laís, no galpão. Eu iria me banhar e vestir-me como uma hetaera, perfumada somente pelo sabonete, para que transparecesse meu perfume natural. Eu estaria com um vestido levíssimo, muito fino sobre a pele, e resolvi não vestir a calcinha. Eu estava praticamente nua, e sabia que Laís estaria outro tanto, preservando também seu perfume natural, já que era uma moça de bom gosto. <br />Eis aí algo que nunca entendi nos franceses, que se banham pouco, ficam fedidos e tentam camuflar isso com seus perfumes. O que só produz uma mistura rançosa de cheiros, insuportável. Além disso suas lindas mulheres não raspam as axilas, peludíssimas, e muito menos o púbis e as virilhas, o que só agrava o mal cheiro. Bem, talvez também o mal-cheiro tenha um elemento afrodisíaco. Não contam, por exemplo que Rasputin, o monge lúbrico da corte dos Romanov, e que era um verdadeiro sátiro, nunca tomava banho, fedia como um bode, era irresistível às mulheres? Afinal, o ser humano é muito estranho...<br />Assim, sentindo-me leve e diáfana, saí para varanda, com uma lanterna de pilha, passando pela janela de Lúcia que estava com a luz acesa, que transparecia pelas venezianas cerradas, fazendo crer que ela estava ainda acordada, talvez lendo, ou mesmo atenta às manobras, minhas e de Laís, mas sobre as quais ela seria discreta, e nunca interferiria. Pois esta minha irmã provou me amar e me aceitar mais incondicionalmente do que eu jamais esperaria. Atravessei o jardim, e depois de uma caminhada de cem passos eu entrei no galpão cujo cadeado do grande portão estava previamente aberto por mim. Deixei a porta encostada e dirigindo o facho de luz para a escadinha da parte superior do galpão, onde era o meu ninho de amor com Rôdo, e depois com Aline, subi e deitei-me sobre a palha para esperar Laís. Esta logo chegou, e cruzamos nossos focos das lanternas, nos reconhecendo, emocionadas, em expectativa ansiosa, e logo estávamos abraçadas, nos devorando de beijos. <br />Laís estava tão sôfrega quanto eu, e tirou nossos vestidos, quase rasgando-os. Ela também estava sem calcinha! E começamos a nos acariciar e manipular, ofegantes beijando-nos e sugando nossos mamilos tesos, durinhos empinados. Estávamos ensopadas por dentro e começamos a provar o caldo uma da outra, sedentas, deslumbradas de prazer, num maravilhoso sessenta e nove. Então, nesse momento, ouvimos um rumor e a porta lá embaixo abriu-se. Paramos imediatamente, assustadíssimas, e esperamos imóveis, o coração aos pulos, ainda com nossos sexos diante das nossas faces molhadas. Quem seria? Então no topo da escadinha apareceu um foco de lanterna diante de nós que nos ofuscou, e paralisou naquela situação vulnerabilíssima e tão intima em que estávamos as duas, nuas, viradas cada uma para um lado. Era insuportável, impensável, tal situação. Nós corríamos imenso perigo, pensamos imediatamente. Então ouvimos a voz detestável do meu cunhado Geraldo, o assassino de minha irmã, enquanto nossa vista ofuscada divisava uma arma iluminada, em parte, pelo foco de sua lanterna:<br />—Aí, hem, safadas! Vocês nunca me enganaram! Esperem aí, ah! essa não é Aline, é a Laís do Rôdo, essa putinha, que gritava como uma gata no cio, nos braços daquele corno, que todos ouvíamos na temporada passada. Rôdo sabe disso? Vai saber, ah! se vai... dependendo de ti, Alma, sua serpente.Vim reclamar minha herança e só saio daqui com muito, muito dinheiro, que vocês me devem.Pensavam que a coisa ficaria assim, deixando-me de mãos abanando?<br />Apavorada, eu retorqui:<br />—Geraldo, seu assassino, não cometa mais desatinos que a tua situação se complicará mais ainda, tu estás sendo caçado, sabias? Eu pensava que tu fosses mais esperto e que já estivesses fora do país, aí pelo Uruguai ou Argentina. Se ficares por aqui logo te prenderão e vais mofar na cadeia. <br />—Nada disso, sua espertinha! Ninguém me persegue, e vocês estão nas minhas mãos, mais do que vocês imaginam. Meus filhos estão aí, não estão? Pois eles saberão de tudo, sobre vocês, suas safadas, se não fizerem exatamente o que vou mandar. Vou prender uma de vocês aqui. Tu Laís, venha cá de mãos para cima, sua bela pelada! Vou amarrá-la com esta corda, assim, com as mãos para traz vamos, assim, assim. Fique quieta aí, Alma, se não mato as duas. Não me custa, quando já se matou antes. Vocês sabem, é só começar... e toma-se gosto. <br />Para cúmulo da humilhação depois de amarrá-la, nua como estava com as mãos para trás, aquele homem odioso, ainda deu um grande tapa na nádega de Laís, que deu um grito dolorido. Ele era um sádico, iria nos torturar? Nós estávamos numa grande encrenca, minha cabeça estava a mil, procurando uma saída para aquela situação perigosa e patética. Nós duas ali, nuas, frente ao meu detestado cunhado, que ainda por cima era um cafajeste. Eu jamais poderia imaginar isso. Se Aline estivesse aqui, eu estaria com mais vergonha ainda de expô-la a uma situação dessa, que eu achava agora que era uma decorrência da minha vida, dos riscos inerentes à minha maneira imprudente de viver, e do meu destino, que eu sempre quisera poupar à Aline, preservando-a para deslumbrá-la com meu universo que eu pensava todo ele de beleza, para enfeitiçá-la, com medo de que deixasse logo de me amar. Eu agora estava expondo esta outra flor ao perigo, por minha culpa! Por minha culpa! <br />Eu tremia de medo e indignação, com as mãos pela primeira vez cobrindo meu sexo e meus seios da visão espúria desse homem que olhava lubricamente, a nós duas. Eu nem mesmo na infância, naquele flagrante de minha mãe, me vira compelida a obedecê-la na sua ordem para que me cobrisse com as mãos enquanto era arrastada pelos cabelos, diante da peonada. <br />Geraldo depois de comer-me com os olhos, cobiçosa e perigosamente, ordenou-me que me vestisse, que fosse até o casarão, e trouxesse dinheiro, jóias e dólares, tudo o que tivesse de valor, alertando ainda que isso era só o começo, que ele queria a venda de uma parte das terras da estância, a que tinha direito, pois fora casado com comunhão de bens com Solange. Aquele louco esquecia que a tinha assassinado, e que por isso perdera qualquer direito sobre a herança, eu queria crer. Antes de descer a escadinha eu o preveni a não ousar fazer mal à Laís, porque Rôdo o perseguiria até o fim do mundo e o mataria. Eu conhecia o meu irmão. O cafajeste respondeu com uma gargalhada cínica, dizendo: <br />—Então ele terá que começar por você, que a estava comendo, sua lésbica maldita! <br />Tremendo de medo e de raiva, eu me dirigi de volta ao casarão, para acordar Lúcia e levantarmos o que pudéssemos em dinheiro e jóias. Lúcia ficou assustadíssima, e chorando dizia: <br />—Alma, Alma, o que vamos fazer, meu marido é um homem perigoso, a crianças correm perigo, todos nós... o que vamos fazer? Onde está Galdério? Onde estão os peões, como pôde ele entrar na estância? Como não o barraram? <br />—Minha irmã,— eu disse—isso agora não vem ao caso. Além disso, estão todos dormindo. Ninguém esperava que aquele louco voltasse aqui, depois do que fez. Mas vamos ganhar tempo, vá, dá-me todo dinheiro que tiveres, eu darei o meu, as poucas jóias que tenho, dá-me as tuas, vamos, precisamos ganhar tempo, Laís está como sua refém e ela corre perigo, eu acho. Não me perdoaria se... <br />Lúcia soluçava nervosíssima, e eu percebi que cabia só a mim enfrentar aquele homem. Após quinze minutos de procura e recolha de dinheiro e objetos (nenhuma peça do tesouro, claro, de que ele não tinha conhecimento), com uma sacola cheia dirigi-me de volta ao galpão. Eram já meia noite e meia, e os cães latiam presos no canil, e os sapos coaxavam como em alarme geral, junto com os grilos. Mas nenhum peão acordou, graças a Deus, pois eu temia um tiroteio e mortes, se o galpão fosse cercado, com meu cunhado bandido lá dentro, e sua refém, a pobre Laís, apavorada. <br />Quando reentrei no galpão, vi um rumor e sinal de movimento e gemidos lá em cima. Estarrecida corri a subir, e horrorizada encontrei Geraldo em cima de Laís, possuindo-a, violentando-a, com uma mão agarrando seus cabelos. Sob o foco de luz, pude ver o seu pênis enorme penetrando, entrando e saindo da vagina da minha amiga, cujos gritos eram abafados pela outra munheca do monstro em sua boca. Sem pensar, avancei sobre ele por trás e dei-lhe uma violenta pancada na cabeça com a minha lanterna. Ele pareceu desfalecer largando o corpo em cima dela. Então eu a puxei pelo braço, de debaixo dele, desfigurada e em lágrimas, gritando, e (eu não pude deixar de notar) enganchada ainda no pênis do celerado, que tive que fazer um esforço para livrá-la daquela penetração escabrosa. Nunca mais tal visão abandonaria a minha memória horrorizada e recôndita, a ponto de eu não saber mais se tudo não passa de fragmentos de um pesadelo que confundo com a realidade. Laís abraçava-se a mim, tremendo e soluçando, nua, marcada com vermelhidões e arranhões, futuras terríveis equimoses da violência que sofrera. De sua vagina escorriam, pelas coxas, sangue e esperma. Meu coração estava partido: eu chegara tarde demais para salvar a minha amiga! <br />Então, enquanto eu abraçava e afagava Laís em estado de choque, subitamente ouço a voz de Geraldo, novamente: <br />—Então, vagabundas, safadas, vocês insistem, não aprenderam a respeitar os homens, não é? A próxima será a tua vez, Alma, sua puta! (ele apontava-me o seu revólver ).<br />Nós estávamos perdidas. <br /><br />___________________________________________<br /><br /><br />Amarrada, sob a ameaça do revólver de Geraldo, eu pensava num jeito de sair daquela situação e de cuidar de Laís que estava em estado de choque e regredira à condição de uma menininha desamparada. Ela tremia, e o próprio Geraldo enfiou-lhe o vestido brutalmente, pela cabeça, e nem necessitou amarrá-la, paralisada e catatônica. Eu queria levá-la imediatamente a um hospital, e implorei a Geraldo que parasse com aquilo e que me deixasse cuidar de Laís, prometendo-lhe que ele seria atendido nas suas reivindicações, bastando que se afastasse da estância e esperasse escondido, até que eu terminasse a transação da venda que ele exigia. <br />Geraldo, porém, disse:<br />–Pensas que sou tolo, minha cunhadinha? Não vou dar oportunidade para chamares a polícia. Vocês irão me acompanhar até o casarão, agora que está escuro, e ainda ninguém acordou. Ficarão presas na casa, sob minhas armas. Sim, porque vocês terão uma bela surpresa quando chegarmos lá. <br />Atravessamos o terreiro e ao passarmos pelo jardim, pude ver a casa cercada por mais três homens armados, os comparsas de Geraldo. Entramos todos, e os capangas armados com rifles, se puseram estrategicamente junto a três janelas opostas. Iria começar a longa e torturante espera, de reféns, enquanto durasse a procura de um comprador e o fechamento da venda, coisa que me parecia inviável a curto ou mesmo médio prazo. Além disso, pelo comportamento violento de Geraldo, eu corria o risco de ser violada por ele como Laís o fora, pois meu cunhado sempre me desejara tanto quanto me odiava. A situação era desesperadora. E quanto às crianças? Quando acordassem, saindo de suas caminhas para virem me abraçar no meu leito, não me encontrariam ali e logo nos veriam naquela situação. Veriam o próprio pai e tio cercado de capangas, fazendo-nos a todos de reféns: suas cunhadas, filhos e sobrinhos! Aquele homem era capaz de tudo, e já provara isso suficientemente. Além disso, eu pensava em tratar de Laís, cuja depressão aumentava visivelmente, precisando de cuidados médicos e que eu lhe desse imediatamente a minha “pílula do dia seguinte”, cujo envelope eu guardara desde o meu próprio estupro por aquele Pedro, em São Paulo.<br />Ia começar uma longa vigília.<br /><br />____________________________________________ <br /><br />Ao amanhecer, assim que Galdério e Matilde entraram na casa para os seus afazeres, foram aprisionados e também amarrados. Logo ouvimos o burburinho das crianças que levantavam e vinham correndo para a sala para o café da manhã, encontrando–nos naquela situação, com o pai assassino cercado de capangas armados ameaçando-nos a todos. Foi uma consternação e um choque para as crianças, mas pude trocar olhares com elas, que me viam como seu general de saias, desde a nossa experiência como equipe de “espiõezinhos”, na temporada passada. Pedrinho, menino audacioso e aventureiro que puxara ao tio Rôdo, esperava instruções minhas para agir, fazer alguma coisa. Logo apareceu também Patrícia na sala, espreguiçando-se, e arregalou os olhos quando viu seu temido tio apontando-nos armas. Quanto aos gêmeos, estavam quietinhos, com os olhos cheios de lágrimas, olhando o pai, ainda sem compreenderem bem a situação. <br />Aquele dia inteiro e os seguintes foram passados em clima de tensão e planejamento dos passos que ele exigia que eu desse. Não é preciso dizer que Geraldo nos ameaçava a todos de morte, se eu desse um passo em falso, por exemplo, alertando os peões, ou telefonando e chamando Rôdo em Porto Alegre. Para isso confiscara os celulares e vigiava o telefone fixo. Eu deveria, munida de documentos da estância, vender um quarto das terras ao primeiro interessado. Geraldo me prevenia de que se eu chamasse a polícia ou usasse algum truque ele poria fogo na casa com todos dentro, inclusive seus próprios filhos. Era um homem desesperado, acuado, que segundo ele nada mais tinha a perder, só a ganhar, afinal. <br />Eu matutava numa solução que não pusesse em risco a segurança de todos e, finalmente, munida dos papéis e acompanhada de Galdério que dirigia o carro, como sempre, afastamo-nos da estância, para ir ao cartório, para anunciar ali a venda, que eu sabia que não seria nada fácil. <br />No caminho concebi o meu plano. <br /><br />__________________________________________________ <br /><br />O tabelião, senhor Donato era um homem dedicado, que fora amigo de meu pai, e que sempre prezara nossa família sobre todas as outras da região. Eu sabia que ele me ajudaria no meu plano. Tratava-se do seguinte: nós iríamos forjar a venda, com um falso comprador e falsos papéis. Esse suposto comprador se apresentaria até no casarão. Eu alertaria o próprio Geraldo para que ele pensasse estar disfarçando a situação perante o cliente, escondendo seus homens. Nós lhe daríamos o dinheiro, que seria um empréstimo bancário conseguido com a influência e prestígio do tabelião, mas com notas marcadas, a polícia não seria avisada, claro, para não pôr em risco minha família. Nós daríamos o dinheiro ao Geraldo, mas poríamos um rastreador no nosso próprio carro, que ele levaria com seus homens, pois era de muito melhor qualidade do que o deles, e então, quando estivessem bem afastados, alertaríamos a polícia que se poria no seu encalço. O plano era arriscado, naturalmente, e podia dar errado, pois Geraldo poderia resolver levar alguns de nós como reféns, por segurança, já que teriam dois carros disponíveis para a fuga. Mas tínhamos que tentar. <br />Depois de muitas horas que estas providências nos tomaram, voltamos no carro já equipado com o rastreador, e Galdério me dizia no caminho:<br />—Dona Alma, se a senhorita me autorizar eu mato esse homem, se não for hoje será mais tarde, algum dia, mas eu o mato. Nunca fui com sua faccia, e agora depois de tudo que esse homem fez, merece a morte. Mas diga-me dona Alma, o que ele fez com a senhorita Laís, que está tão mal, que não parece estar em si? Se aquele maldito... <br />Achei melhor disfarçar e nada revelar ao Galdério sobre a nova tragédia acontecida, para não acirrar seu ânimo. Galdério na sua indignação, poderia precipitar-se e pôr tudo a perder, até mesmo ser morto. Geraldo revelara-se um bandido perigosíssimo e não um simples assassino passional. Eu mesma seria capaz de matá-lo, talvez, mas no calor do momento, como quase o fiz, golpeando-o na cabeça. Mas minha força revelara-se insuficiente, graças a Deus, e me poupara de ser uma assassina nesta vida. Ai! Mas a pobre Laís... ela se recuperaria, como eu me recuperei da mesma horrível experiência sofrida nas mãos de outro crápula, o Pedro, da Aline? Eu não podia saber. Ela me parecia mais frágil do que eu, que estava inteira apesar de tudo... de ter sido igualmente tão brutalizada. Eu precisava cuidar de Laís, com todo o carinho, com todo amor que as circunstâncias não me estavam permitindo dedicar a ela. Meu coração doía ao pensar nela, que estava tão traumatizada que não falava mais, e eu temia por sua vida. Ai!... <br />Chegando à estância, desci do carro e corri até à porta ansiosa por ver se todos estavam bem. Laís não estava na sala, fora levada ao seu quarto, sob os cuidados de Patrícia. Lúcia ainda torcia as mãos, as crianças jogavam em silêncio sobre o tapete da sala, um jogo de tabuleiro, enquanto Matilde cuidava do almoço para todos. Iríamos entrar num período de espera, de terrível espera, até que o tabelião completasse a transação com o banco e nos trouxesse o dinheiro através do falso comprador, que esperávamos significasse a nossa libertação. Lá fora a vida da estância corria normalmente, com os peões e os trabalhadoras da vinha, na sua rotina de trabalho, alheados do drama que se passava dentro do casarão. Quanto a mim só me restava orar a Deus, para que o meu plano desse certo. <br /><br />______________________________________________ <br /><br /><br />Lúcia, na sua alienação em relação à verdadeira natureza de seu marido, apesar de tudo o que sofrera em sua vida com esse jogador, viciado e perdedor, além de mesquinho, mal caráter e assassino procurado, de sua própria irmã, tinha uma ilusão persistente, vendo nele ainda o pai de seus filhos, e tentava convencê-lo a ir embora, para não ser preso, e para não impressionar mal às crianças. Mas esse homem debochava dela e tirara completamente a máscara, revelando seu rosto de bandido, dando-lhe um violento tapa na face, para que se calasse, na frente de seus próprios filhos e dos gêmeos. Foi mais um momento chocante que vivemos ali dentro.<br />Assim que chegamos, eles voltaram a amarrar Galdério, com as mãos para trás, já que temiam alguma súbita reação do nosso motorista. Eu exigi que me deixasse ir cuidar de Laís, no quarto, no que fui atendida. Chegando ali, encontrei Patrícia com os olhos cheios de lágrimas afagando a mão de Laís, que estava catatônica, com os olhos muito abertos, esgazeados, sem expressão. Sentei-me ao seu lado na cama e a abracei, dizendo: <br />—Laís, minha Laízinha, meu amor, meu amor... Fala comigo, querida, diz alguma coisa, sou eu Alma, não vês, estou aqui, eu vou cuidar de ti, eu te amo, querida, vou cuidar de ti, Rôdo também, quando voltar, tudo vai dar certo... <br />Patrícia vendo esta cena, caiu num imenso pranto, mais assustada ainda, dando–se conta de que algo muito grave acontecera com a nossa amiga. Eu tinha que amparar estas duas e abracei igualmente minha sobrinha. E disse a ela:<br />—Pati, minha querida, nada temas, eu vou cuidar de todos, eu vou, tu vais ver. Tudo vai dar certo. Aquele seu tio mau irá embora logo, ele só quer dinheiro, e nós vamos dar a ele para ele deixar a gente em paz. Tu vais ver. O dinheiro já está vindo. Logo estaremos livres e vamos ser felizes novamente, só nós, para sempre, está bem? <br />Neste momento, Laís deu um gemido e explodiu em lágrimas, apertando-me contra si, soluçando: “Alma, Alma!...” Graças a Deus! Ela estava reagindo, ela chorava, ela se salvaria. <br />Abraçadas, nós três chorávamos, nossas lágrimas se misturando, nossos corpos, nosso calor se misturando, inseparáveis para sempre, eu senti assim... <br /><br />___________________________________ <br /><br />Quando eu tinha dezenove anos, minha mãe acalentou o sonho projetado de um casamento convencional, e de pequeno romantismo, para suas filhas incluindo a mim nessa projeção. Ela nunca percebeu, por exemplo, o quanto seu próprio marido, o Vati, era, ele sim, um representante do verdadeiro romantismo, alemão, com sua literatura e o seu piano maravilhoso. Ela não tinha a capacidade de urdir seu sonho na trama de seu próprio presente privilegiado com o Vati, como ele e eu fizemos desde a minha infância. Quero dizer com isso que sempre acreditei que o sonho deve nos engrandecer sempre, e não nos amesquinhar no presente, como ela o fazia não sendo feliz com meu pai, conosco, que o éramos a despeito dela mesma. A felicidade é a suprema virtude, eu creio, mãe de todas as outras, assim como o orgulho é o pai de todos os defeitos. Pensando assim, eu teria vergonha de ser infeliz, se o fosse. Começaria por desconfiar de mim mesma, de alguma falta de virtude, de alguma postura mesquinha em relação às preciosas dádivas da vida. O artista, eu penso, deve ser o grande sacerdote da vida, o primeiro a louvar e a agradecer, sim, e já o faz exercendo em plenitude o seu dom de criação, reflexo da Divindade. Eu sei, naturalmente, que muitos artistas exercem sua arte com um tom de crueldade, rancor ou desdém, mas sinto que Deus os tolera, para cobrá-los mais tarde, talvez numa próxima encarnação, o preço de sua infelicidade escolhida. Sim, porque a maioria das pessoas é infeliz, pela escolha equivocada de uma postura rebelde, filha do orgulho. Mas não pensem que esses conceitos derivam de algum moralismo recôndito, de minha parte. Estou bem consciente da natureza profunda e trágica do sofrimento humano, que me causa, antes de tudo, compaixão. Mas, diante de um sofredor eu gostaria de poder ensinar a sabedoria de viver, o humor de que falava o grande Hermann Hesse, que produz vidas fecundas. Por outro lado, estou bem consciente de que os trágicos e até mesmo os chamados “malditos” também são fecundos na sua auto-imolação, como que escolhida, e isso me perturba. A natureza misteriosa da tragédia. Na verdade temo a dor (não a morte), a dor, profunda noche escura del’alma, como dizia São João da Cruz. A dor, a dor de existir, não deve ser confundida com a infelicidade mesquinha, dos neuróticos, por exemplo, os que não têm a capacidade de amar, esses sim, os supremos egoístas. Como não perceber a generosidade de Deus? Basta meditar um pouco sobre os fenômenos cósmicos, como o espantoso equilíbrio de uma potência como o sol, em relação à nossa fragilidade. Ou simplesmente ponderar sobre os infinitos milagres, desde um talo de grama ao balé de uma Maya Plissetskaya, ou o violino de Ytsaac Perlmann e Yehud Menuhin. De um verme ou de uma estrela, de um grito de dor, ou de um poema. Sei, no entanto, que essas ponderações emanam da razão, e que a alma mesma, esta... é quase sempre perplexa. <br /><br />_______________________________________ <br /><br /><br />Laís se recuperaria, devagar, mas ficaria profundamente marcada pela tragédia de sua violação. Essa moça que eu pensava livre, como eu, era mais frágil, mais vulnerável do que eu imaginava. Ela despencara de uma postura que eu pensava aventureira e corajosa em relação à vida, como companheira de meu irmão, desabrido e audacioso como uma força da natureza, e revelara a fragilidade de uma menina ingênua que se reservava somente para o seu amor. Por isso eu mais me condoía por ela e quereria protegê-la, coisa que não pude, da maldade do mundo. Agora ela se abraçava a mim, como Patrícia, como as crianças, que precisavam de proteção. Onde elas viam tanta força em mim? Eu não sei, começo a desconfiar de que sou frágil também, embora corajosa. Talvez seja isso: a minha coragem, que as ilude, desprotegidos que estamos todos diante de tanto mal, encarnado em nossa frente nesse homem desesperado, louco pelo dinheiro, alma perdida de um Judas arquetípico. <br />Eu temia também pela minha integridade física, pois esse homem me ameaçara; e o seu desejo ilegítimo, pois malévolo, era visível no seu olhar. Eu temia que ele, já que tirara completamente a sua máscara, me escolhesse como última refém a arrastar na hora da fuga, para depois... Ai! eu precisava me precaver, precisava de um novo plano, para a hora de sua partida. Eu me sentia vulnerável diante daquelas palavras: “A próxima, será a tua vez...” O quê fazer? O que fazer? <br />Por ora eu abraçava e beijava minhas meninas, Laís e Patrícia que se refugiavam em mim. Os gêmeos, pobrezinhos, olhavam para o pai com os olhos um pouco arregalados, sem reconhecerem-no, pois aquele homem mau não correspondia ao pai internalizado deles, é claro. Eis aí o homem da mó ao pescoço e do rio, de que falou Jesus, dos que escandalizam as crianças.<br />Matilde, a fiel servidora, cozinhava normalmente e punha a mesa, enquanto seu irmão permanecia amarrado, e agora preso na nossa adega. Era, naturalmente mais fácil para Geraldo controlar as mulheres e as crianças. Eu passei a temer pela vida de Rôdo, se ele voltasse de repente, de Porto Alegre, pois ele telefonara e Geraldo mandara que eu atendesse, mas disfarçando, de modo que meu irmão não percebesse o que estava se passando. O único sinal de estranheza, na nossa conversa, que passaria despercebido de Geraldo, foi não ter falado da minha saudade, e não ter feito nenhum apelo a que voltasse depressa para os nossos braços, meus e de Laís que não poderia falar com ele, pois “estava no banho”. Rôdo teria notado esses sinais, quase inconscientes de minha parte? Pois eu temia a sua volta, que caísse nas mãos de Geraldo que sempre o detestara. Eu temia pela vida de meu irmão, que Geraldo considerava meu cúmplice na suposta espoliação de sua parte na herança. Eu sabia que Geraldo gostaria de matar-nos, ele, que já assassinara Solange, sua parceira no roubo do espólio dos nossos avós, a safra do “Ara dos Pampas”, o vinho afinal perdido, dissipado. O “sangue da terra” clamava por mais sangue, eu temia. <br />Na cozinha, eu trocava algumas palavras e apreensões com Matilde, que temia pela vida de todos, acreditando que aquele homem era o demônio em pessoa. Matilde nunca confiara em Geraldo, e me lembro do quanto tentou dissuadir Lúcia daquele casamento.Ela dizia, naquele tempo:<br />—Lúcia, guria, não te cases com esse homem, não confio nele. Não tem um bom olhar. O coração se vê na cara mesmo, nos olhos. Esse homem não é bom, que é tudo o que um marido precisa ser. O que vês nele, minha filha? Somente o seu desejo de ti, teu próprio reflexo nos olhos cobiçosos desse homem. Lúcia não te cases com ele! <br />Agora, estávamos ali, todos nós, nas mãos do intruso, do homem que se insinuara em nossas vidas de maneira tão ilegítima, como Matilde percebera desde o início. Eu era talvez um pouco culpada, por omissão. Eu nunca compreendera aquela suposta neutralidade de Lúcia, aquela sua anódina personalidade, a meu ver. Era, para mim, mais fácil compreender, embora com repulsa, uma Solange do que a mornidão de Lúcia, até o momento em que surpreendentemente me revelou o seu apoio precioso, em relação à Aline, episódio que contei no primeiro volume destas minhas memórias.<br />Agora nesta situação tão difícil, eu me sentia afinal responsável por todos, até por Rôdo. Mas que podia eu fazer, além das providências para uma possível futura captura de Geraldo, e para salvar o dinheiro? O meu plano, como todos os planos, tinha furos, e esse era nada menos que a possibilidade de ser violentada e morta por esse demônio que nos ameaçava. O que ele fizera com Solange e Laís dava a medida do que era capaz, em sua brutalidade. <br />Eu pedi à minha querida ex-babá, feiticeira de ervas competentíssima, que eu sempre admirara:<br />—Matilde, não podes ministrar uma erva dormideira poderosa a esses homens, nem que todos nós tenhamos que tomar juntos, pois o tabelião chegará hoje ainda com o “comprador” trazendo o dinheiro e então separarão os bons dos maus no nosso sono coletivo? Eles acordariam na prisão e nós nas nossas camas!<br />—Alma, minha guriazinha,—ela respondeu— eis aí um plano arriscado, digno dessa tua imaginação de poeta. Queres ficar mais vulnerável ainda do que estás? E se alguma coisa der errado e acordares no covil do monstro, sem defesa alguma? Lembra-te do desastre daquela poção do frei na estória que me contaste daquela Julieta, e no que deu. Não jogues com o destino, que sempre é um tanto irônico com aqueles que pensam manipulá-lo. A fuga, minha filha, da realidade, é o que estás pretendendo. Acordar do sono coletivo, de cem anos, sem mais o espinheiro, nos braços de um príncipe, um presente ideal? <br />Fiquei envergonhada com o meu plano fantasioso, infantil, e reconheci mais uma vez o quanto minha querida Matilde era sábia. <br /><br />_____________________________________<br /><br /><br />Já descrevi o comportamento de quase todos nós, naqueles momentos críticos. Resta lembrar a atuação de Alícia, que, de tão equilibrada, pode amenizar a tensão para as queridas crianças, esmerando-se nos gestos rotineiros ao cuidar delas, dando a impressão de que nada de anormal se passava na casa. Ao pô-los para dormir depois do banho, eu entrava no quarto delas para contar estórias, em que eu também me esmerava mais que nunca, ao fazê-lo com calma e sem pressa. Depois do beijo na boquinha de cada uma delas, eu me dirigia ao meu quarto para cuidar de Laís, que estava se recuperando, a ponto de voltar a sentir medo, e agarrava-se a mim, querendo proteção. E eu, com o coração apertado, a tratava também como a uma criança. Foram dias difíceis aqueles, e iriam mudar em seguida para pior, mas pelo menos, e felizmente, só para mim...<br />Quando, afinal, chegou o tabelião Donato acompanhado do falso comprador com dinheiro verdadeiro, restabeleceu-se um sorriso sinistro na face de Geraldo e seus três comparsas, o que não chegou a produzir alívio em nenhum de nós, que esperávamos agora o próximo passo do famigerado quarteto. Seus olhos, depois de se deliciarem longa e repetidamente com a visão das abundantes notas, agora se dirigiam principalmente e a mim e à Aline causando-nos calafrios. Então, de repente, o bandido apontou o dedo para mim, dizendo:<br />—Alma, prepara-te, tu virás conosco. Mas não te atrevas a nenhum truque, espertinha, pois estaremos de olho em ti. Vamos, vamos. <br />As crianças e Laís precipitaram-se para mim aos gritos, chorando muito e agarrando-me de tal maneira que Geraldo e os comparsas tiveram que apartar-nos à força, produzindo um momento de grande dramatismo, que me apertou terrivelmente o coração, como se não fôssemos nos rever nunca mais. Eu temia agora pela minha pela minha integridade, e até mesmo pela minha vida, pois não podia deixar de lembrar das palavras ameaçadoras de Geraldo, de que eu seria a próxima. Minha cabeça começou a funcionar a todo o vapor para tentar bolar um plano de fuga durante o trajeto, desconhecido, que faríamos. Como eu esperava, botaram-me no nosso carro (pelo menos isso), sob o olhar apreensivo de tabelião Donato, que balbuciava protestos, e os gritos angustiados de todos os outros. Laís agarrava minhas mãos, até dentro do carro, o que me produziu grande receio de que também a empurrassem para dentro. Felizmente, deram-lhe um tranco que a jogou no chão de cascalho. O carro partiu em rápida aceleração, como se eles esperassem uma imediata perseguição, e a poeira encobriu-me a visão dos vultos queridos que estendiam os braços e gritavam para nós, em desespero. <br />Sentada no banco de trás, entre dois dos capangas com suas armas, eu não poderia sequer atirar-me na estrada, pensamento que me vinha à cabeça, já que não podia confiar na eficácia do rastreamento do carro, ou se o resgate chegaria a tempo, pois os capangas também me mediam dos pés à cabeça, com aparente cobiça. A única providência, instintiva, que me foi possível tomar, foi a escolha da roupa que eu vestia: um jeans reforçado e justo, com um grosso cinto difícil de desafivelar, e uma meia-calça por baixo. Um verdadeiro cinto de castidade, para dificultar, ao máximo, aquilo que eu mais temia... <br />Pegamos a estrada que corta a pradaria, e o motorista começou uma correria sem sentido, pois pensavam que ninguém os perseguiria, já que confiavam que eu não me atrevera a contar para ninguém sobre o seqüestro. Realmente, com o equipamento de rastreamento por satélite, a polícia não precisava seguir o carro de maneira visível, e podia traçar o seu itinerário num mapa eletrônico de um posto em Alegrete, enquanto ia avisando os postos de fronteira. Mas eu estava preocupadíssima com o momento da abordagem, nalguma barreira, pois estava convencida que meu cunhado iria me matar, ao ser detido, para se vingar, já que era procurado por assassinato mesmo, e faria pouca diferença para ele, mais uma morte nas costas. Além disso, ele, com a maleta de dinheiro na mão, e um sorriso sinistro, ao lado do motorista, não parava de olhar para trás com um ar debochado e ameaçador, com o intuito de me atemorizar. <br /><br />_________________________________________ <br /><br />Quando criança, eu passava longos períodos de introspecção e devaneio literário, se posso dizer assim, na biblioteca de meu pai. Nessas ocasiões, meu olhar adquiria um tom nostálgico e vago, que assustava minha mãe, que me preferia, naturalmente, mais pueril e inocente, brincando entre as flores do nosso belo jardim. Eu viajava por dentro, por todos os períodos da História, vivendo as aventuras dos meus heróis, de ficção ou reais, históricos (não havia distinção entre eles, para mim, é claro). Ana Morgado, minha pobre, mãe, estranhava esse meu amor por um universo invisível e inacessível a ela, que lhe parecia um tanto escuso, já que não podia vigiar as minhas andanças nesse mundo imenso e intangível. Assim, ela procurava interromper as minhas leituras, e empurrar-me para fora, para o jardim, ou até mesmo para o pomar, que ela temia um pouco, pois ficava um tanto fora de suas vistas. Na verdade, ela nunca pode me seguir ou vigiar, como ela queria, pelo vasto labirinto de sendas do casarão e da estância, que era muito mais o meu território do que dela, ou de qualquer um, à exceção de Rôdo, meu pequeno comparsa aventureiro como eu, que o transformei em parceiro das minhas fantasias amorosas de pequena sonhadora. Um pequeno cavaleiro, um príncipe, para mim era fácil transfigurá-lo nesses arquétipos pueris, pois meu irmãozinho tinha qualidades reais para isso. Rôdo sempre foi extraordinariamente belo, viril e corajoso, desde pequeno. Além disso, ainda mais aventureiro do que eu, no sentido real, menos mental e mais físico. <br />Mas, no terreno da sensualidade, nesse mundo literário de sensações, lembro-me bem do impacto que me causou um livro que descobri na nossa biblioteca, intitulado A Carne, de Júlio Ribeiro, autor brasileiro do século dezenove, seguidor do naturalismo de Émile Zola, e entusiasta do Darwinismo. Ambientado numa fazenda paulista, escravagista, no século passado, sua protagonista era uma bela mulher jovem, chamada Lenita (Helena) que descobre sua sexualidade no espelho da natureza circundante daquela fazenda que a hospedava. Sua sensualidade natural desabrochava de maneira aliciante, erótica, magnífica para o leitor que acompanhava aquele processo que se revelava perigoso e destruidor afinal, mas não de uma maneira moralista, mas muito prática, a meu ver, surpreendentemente. No final, o suicídio do personagem masculino, através do veneno indígena curare, é mórbido, impressionante e insinua a figura de Lilitth, a mulher fatal, sem nominá-la assim, mas de maneira então chocante para mim: “... rameira, prostituta vil!” ele expira murmurando. Lembro-me que me revoltei com as palavras finais do personagem, vítima de sua própria paixão carnal, que não soube naqueles últimos momentos respeitar a imagem daquela que, ele, de um jeito ou de outro, amara, julgando-a preconceituosamente, bem à maneira do machismo vigente naquele século. Entretanto, a personagem Lenita iria ter uma ressonância interna em mim, que descobri, assim também, minha própria sensualidade observando, como ela a cobertura de éguas e vacas, no pasto e no curral, e me identificando eroticamente com elas. Eu, no entanto, não pude deixar de notar a maneira um tanto irresponsável com que a heroína, no livro, se descartou do parceiro que a engravidara, e decidi nunca em minha vida ter esse tipo de atitude tão pragmática e destruidora. As imagens extremamente positivas para mim dos dois homens da casa, o Vati e Rôdo, me fariam para sempre cúmplice dos homens, que eu não veria nunca como adversários, ao longo da vida. Naturalmente, eu sempre soube fazer uma distinção rigorosa do homem vulgar, realmente detestável, do homem verdadeiro, pleno e íntegro, que na verdade eu confundiria sempre, um pouco, com os cavaleiros dos meus devaneios. Em resumo: o “príncipe encantado”. Com isso quero dizer que sempre acreditei muito mais nos termos ideais de tudo, do que na versão espúria do cotidiano das pessoas, miragem distorcida do real. Para mim, o real é a beleza e a poesia, e o resto não passa de degenerescência da visão moderna, ou das pessoas contaminadas por um falso sentido de cotidiano, equivocado. <br />Entretanto, agora, naquele carro em desabalada corrida pelo pampa que me parecia, pela primeira vez, inóspito cenário ameaçador, eu estava nas mãos de homens que eu percebia “vulgares”, por isso extremamente perigosos para mim, capazes de me conspurcar, e ao meu mundo. Meu cunhado me via, a mim, como uma prostituta, ou uma “lésbica maldita’, como ele dizia, o que me doía na alma, como o pior dos insultos à minha pureza, da qual eu me orgulhava, até mesmo com certa ingenuidade. Aquilo, aqueles homens grosseiros, cuja presença, representada há muito tempo por meu cunhado entre nós, doía o tempo todo, como se aprisionada num lodo imundo. Eu temia por isso, uma espécie de martírio, se me permitem falar assim, na perspectiva de morrer nas mãos daqueles homens, ou pior, ser tocada por eles. Eu preferiria o suicídio, nesse caso, e imaginava um jeito de lutar com eles para obrigá-los a atirar em mim. Não podia suportar a idéia de ser penetrada pela carne espúria daqueles monstros da vulgaridade. Meu cunhado, preparando esse martírio, ia, o tempo todo, dirigindo palavras grosseiras e depreciatórias a mim e à minha beleza tão cobiçada por ele. Ameaçava dar-me como sobra aos seus homens depois de “usar-me”, e depois aos cães. Ele queria ver-me apavorada, implorando por minha vida, de joelhos diante dele. Percebendo ser inútil ameaçar-me de morte com os revolveres em minha cabeça, ele agora concentrava-se nas fantasias verbais expressas do que fariam comigo, antes de matar-me. <br />Então, naquela situação, ainda não extrema, pois dentro do carro em desabalada carreira, pude perceber um laivo de hesitação, e constrangimento, se não de piedade, no brutamontes da direita, cuja coxa, colada à minha, ardia num calor absurdo. Instintivamente pus minha mão sobre sua perna, não com sensualidade, mas como um apelo, que lentamente começou a surtir efeito. Esse homem, ainda jovem, de terno e gravata, como um gangster italiano, na verdade com feições germânicas, poderia se tornar meu aliado? Eu tive um pressentimento positivo, pois percebi a sua aversão crescente às palavras e zombarias de Geraldo, não condizentes em nada comigo, e minha aparência que começava talvez a amolecer aquele brutamontes, eu percebia. Eu olhava para os seus olhos, sempre que Geraldo virava-se para a frente, e tentava passar-lhe uma súplica no olhar, verdadeira,em meu desespero. Eu agarrava-me àquela última probabilidade de defesa: um homem menos brutal, que se comovesse comigo, com a minha situação... Retirei do bolso traseiro do jeans, uma folha de papel em branco, dobrada, e puxei uma pequena caneta esferográfica do bolso lateral, disfarçadamente e, olhando para esquerda para vigiar o olhar do capanga da direita que olhava para fora, pela sua janela. E escrevi rapidamente: “Salve-me e eu o recompensarei”. Ele apanhou o papel, lendo-o ali mesmo, na minha coxa e meteu-o lentamente, disfarçadamente, no bolso, sem gestos bruscos. Eu conseguira passar um recado, um apelo, que, eu esperava, frutificaria. <br />Nós nos dirigíamos rapidamente para a fronteira uruguaia. Mas de repente, para terror meu, o motorista deu uma guinada a um sinal de Geraldo ao avistar um atalho à direita, onde havia um bosque. E arremeteu por aquela trilha poeirenta, saindo, portanto, do itinerário previsível, em relação ao ponto da fronteira onde já nos devia esperar uma barreira policial, de viaturas atravessadas na estrada. Eu fiquei mais aterrorizada ainda, pois não contava com isso. Para onde Geraldo estava me levando? Ele então, passados dez minutos de trilha, parou praticamente no meio do bosque. Eu estava perdida! Tinha vontade de gritar. Creio mesmo que comecei a fazê-lo. <br /><br />____________________________________________<br /><br /><br />Na manhã do enterro de meu pai, após poucas horas de sono, no final de um velório doloroso que parecia não ter fim, eu acordei gritando, e assim fui levada, praticamente carregada ao cemitério, como uma carpideira autêntica, cuja dor fazia uivar. Eu não me comportei como as pessoas da minha origem nórdica, mas possivelmente, o lado português, ou ibérico, carregado de negro, da cor sinistra do luto, da “noche escura del alma”, preponderou na dor indizível daquela perda. Eu pensava não poder sobreviver ao Vati, e o meu universo parecia ter desabado irremediavelmente. Rôdo teve mesmo que dar-me uma pequena bofetada no rosto, em certo momento, logo seguida do mais profundo abraço de minha vida, que, afinal acalmou-me. Não pude portanto observar a dor de mais ninguém, quero dizer, de Rôdo e de minhas duas irmãs. Mas Matilde parecia concentrar uma dor preocupada e pensativa. Ela teria um papel maior dali por diante, responsabilizando-se pela estabilidade mínima, do andamento espiritual e afetivo da estância, já que Solange e Rôdo disputariam a administração financeira, aliás desastrosamente, como se configurou mais tarde. Eu me sentia perdida naqueles dias, com se minha alma não se encaixasse mais no corpo, adequadamente. Eu perdera a presença de espírito. Meu irmão, tentando chamar-me à ordem, chamou-me “um belo farrapo humano”... <br />Agora, em meio ao medo e tensão daquela situação de seqüestro, pelo menos eu me sentia desperta, e procurava uma saída, nem que fosse desesperada, que incluía, infelizmente, a idéia de suicídio. Eu temia ser currada por aqueles quatro homens, perigo real, que se aproximava cada vez mais naquela trilha sinistra perdida no pampa. Pela primeira vez o próprio pampa me pareceu ameaçador, desértico, inóspito. Eu não tinha a quem apelar, a não ser ao próprio capanga que recolhera o meu bilhete sem nenhuma palavra. Eu não sabia se teria ressonância interna, nele, o meu apelo. <br />O carro, como disse, parou no meio do bosque e fui retirada pelos homens e conduzida, numa pequena caminhada até uma clareira onde cheguei quase desfalecida de tanto medo. Cai aos pés de Geraldo e balbuciando implorei que não me fizesse mal, que não me machucasse. Eu lhe prometia tudo, o tesouro que ele não sabia que descobríramos, e que eu lhe revelaria o esconderijo. Eu tentava ganhar tempo. <br />Geraldo, o tempo todo com um sorriso malévolo, de autêntico vilão, fez então o mais surpreendente naquelas circunstâncias: mandou seus homens amarrarem-me a uma árvore, abraçando seu tronco, posição terrível, pois eu não podia vê-los e não sabia o que esperar. Então ele brutalmente rasgou minha blusa deixando meu torso nu. Fez pior: desafivelou-me com violência o cinto, e desabotoando o primeiro botão do jeans e descendo o zíper, baixou-me violentamente a calça, com meia-calça e tudo, até os joelhos expondo-me vergonhosamente, enquanto dava um tapa debochado em minha nádega. Eu me contorcia amarrada ao tronco pelos pulsos, e comecei a gritar por socorro, aos prantos, implorando a piedade daqueles homens brutais. Então surpreendentemente senti a primeira lambada, aguda, zunindo no ar, antes do seu ardor queimar-me as espáduas. Geraldo resolvera me açoitar. Tinha um ramo de arbusto nas mãos, uma espécie de vara de marmelo, como eu já experimentara em minha infância, pelas mãos de minha mãe, como corretivo por alguma travessura. E aquele monstro sádico começou a açoitar-me as costas e as nádegas, fortemente, com grande violência, enquanto eu gritava e tremia, gemendo, sentindo o sangue começar a escorrer pelas minhas costas e pernas. Eu implorava e clamava pelo Vati, por Rôdo e por Matilde, meus únicos defensores na vida, agora tão ausentes, tão distantes. Afinal depois de uma eternidade de dor, tudo se apagou, e desabei, ficando dependurada pelos pulsos, também ensangüentados.<br />Não sei quanto tempo se passou, mas voltei a mim, perplexa, sentindo primeiramente a dor dos pulsos, e ouvindo os rumores do bosque, dos pios dos pássaros no crepúsculo. Eu fora estuprada, além de tudo? Não sabia. Tudo me doía, o corpo todo, e recomecei a gritar e a chorar tentando erguer-me, ainda atada à árvore. Eu estava coberta de sangue. Eu iria morrer naquele bosque devorada pelas formigas, como o “negrinho do pastoreio”? Juro que pensei nele naquele momento, quando vi algumas delas subindo pelas minhas pernas escorridas de sangue e xixi. Ai!, eu urinara, ainda por cima... que vergonha! <br />Eu tentava desesperadamente soltar os pulsos, que mais sangravam. Eu iria morrer ali certamente se a noite caísse, devorada pelas formigas ou pelos animais selvagens. Gritei, e gritei, mas minha voz saía cada vez mais fraca. Então, em meio ao pranto e ao terror, ouvi rumores, estalidos, no bosque como a aproximação de algo. Pensei numa onça, quase desmaiei de terror, mas pude perceber que alguém me desamarrava os pulsos, ao mesmo tempo que me amparava para que não desabasse. Um homem carregava-me no colo, semi- desfalecida, caminhando até um veículo, uma carroça, ou coisa parecida, onde me cobriu com um pala de lã, e partiu, por aquela trilha, enquanto eu adormecia, afinal, entregue à providência, na forma qualquer que ela me tivesse chegado, pois nada mais, de ruim, poderia acontecer, eu senti. <br />E me entreguei a um novo sono profundo. <br /><br />__________________________________________<br /><br /><br />Acordei num leito agradável, embora rústico, numa de choupana de madeira, tipicamente pampiana, de fronteira. Uma mulher madura, loura, bonita, vestindo longa saia estampada e avental, olhava para mim,com ar condoído, com uma chaleira fumegante na mão. <br />—Buenas, moça—ela disse, com a fala cantada. Como estás? Passaste um mau bocado, guria! O homem que te salvou, está aí, na cozinha, sorvendo um amargo, mas não sei se posso confiar nele. Moço de terno e gravata, muito penteado, com uma pasta, e um berro que aparece o volume no seu peito, sob o paletó. Diga logo menina quem são vosmecês? Foi esse homem quem te fez mal, ou foi ele mesmo que te recolheu no bosque, conforme ele diz?<br />Instintivamente, eu disse, com voz fraca:<br />—Senhora, foi ele quem me salvou, sim, eu acho, pois mal pude vê-lo antes de desmaiar. Mas... estou limpa, banhada... a senhora cuidou de mim?<br />–Ah! guria, em que estado chegaste! Sim, banhei-te, estavas nua e coberta de sangue e ferroadas de formigas, algumas ainda grudadas em ti. Temi também que tivesses sido estuprada, mas dei-me o direito de examinar tuas partes, e não me pareceram invadidas, embora estivessem muito molhadas, o que achei estranho, como se a guria no fundo, bem no fundo mesmo, tivesse gostado de apanhar. Bem, isso tudo são mistérios de mulher, não é mesmo? Tuas costas e nádegas estavam em terrível estado, com vergões e arranhões, pois vê-se que fostes açoitada, pobrezinha. Recobri-as de um ungüento cicatrizante, e que alivia a dor. O que fizeste para merecer isso? Traíste teu homem? Mas, como uma guria tão bela como tu, e com esse porte de princesa pode chegar aqui nesse estado, neste fim de mundo, nos braços de um moço tão esquisito como aquele? Parece um bandido de cidade grande, isso é o que ele parece. <br />Eu ia responder, mas dei um soluço e recomecei a chorar. Mas, apesar do pranto, consegui dizer:<br />—Senhora, proteja-me, eu a recompensarei, esse homem... não sei se posso confiar nele. Ele tem uma maleta, a senhora disse? Olha, ele está armado, senti no seu peito quando me carregou. Descubra o que ele quer, se vai logo embora. Por quê, afinal, ainda está aqui, se já me entregou à senhora? Por favor, descubra, tenho medo!<br />A mulher tocou-me a mão, carinhosamente e abanou a cabeça. Fez um gesto de silencio, com um ligeiro chiado entre dentes, retirando-se, como para conferir algo com o homem, instalado em sua cozinha. <br />Eu mal podia mexer-me, de tantas dores nas costas e nas nádegas. Eu estava enfaixada, e untada, eu senti. Somente a região pubiana estava descoberta, Meus pulsos também estavam enfaixados, e eu previa que uma longa convalescença me reteria ali, naquela cabana, com aquela boa mulher, se aquele bandido me deixasse livre e não me carregasse consigo em sua fuga, que era o que eu temia. Ele estava com o dinheiro? O que acontecera com Geraldo e os outros dois? Afinal, a porta se abriu, e o jovem bandido, alto e imponente, muito forte, com seu terno e gravata, e o volume da arma numa cartucheira suspensa em seu peito, sem desgrudar-se daquela maleta de dinheiro, que reconheci, entrou no quarto acompanhando minha hospedeira, que ele logo pediu que se retirasse. Aproximou-se da cama, enquanto eu tive que olhar muito para cima:<br />—Senhorita Alma, sinto muito o que aconteceu, não pude evitar: o tiroteio mataria a todos nós se tentasse deter o chefe. Os outros tinham uma metralhadora e um rifle. Alguns quilômetros à frente, afinal deu-se o confronto, uma discussão pelo itinerário de fuga e logo pelo dinheiro, precipitou a contenda. Estão todos mortos e apodrecendo a céu aberto, se seus corpos não foram já descobertos. Voltei em cima do rastro a ponto de afugentar as formigas que já atacavam a senhorita. Sinto muito, não pude evitar o açoitamento, que me condoeu muito. Os outros me vigiavam naquele momento, especialmente, conhecendo o meu coração fraco com as mulheres. <br />Diante daquelas palavras estendi-lhe a mão e toquei a sua, enorme, capaz de matar uma pessoa com um único soco. Ele ficou muito mais sério ainda e retirou a mão. Eu disse:<br />—Não sei o teu nome, guri, mas sou-lhe eternamente grata. Eu deporei a teu favor perante a polícia, e no processo. Pressinto que esta casa será logo cercada, tu deves livrar-te da tua arma ou correrás o risco de ser morto, conheço a polícia daqui. Ao menor pretexto, atiram, e não vais mais me reter como refém, pois deves-me a minha libertação completa, agora que me salvaste, não é verdade? <br />O jovem, solene e um pouco rudimentar, como um guerreiro ou um guarda costas mesmo, respondeu com sua voz grave, e sem inflexões: <br />—Senhorita Alma, vou lhe devolver o dinheiro. Está aqui nesta maleta, que deixo desde já contigo. Não tenho a menor chance de escapar com ele. Sempre soube. Mas, a arma não, não posso entregar-te. É tudo o que sempre tive e a carregarei comigo para sempre. Estará na minha mão no último momento, que sei, não está longe. Quero morrer atirando. Mas nada temas: vou afastar-me já desta casa, para não expor vocês duas ao perigo de um fogo cruzado. Mas para isso preciso deixá-las já, antes que seja tarde. Adeus. <br />Aquele homem surpreendente, soldado da fortuna, mais do que criminoso impenitente, eu sentia, afastou-se, com esse gesto nobre, de um cavalheirismo arcaico, que me deixou impressionada e grata, desejando sinceramente que ele escapasse ao cerco, que fugisse e... um dia, muito à frente, me procurasse, para eu recompensá-lo.<br />Aquela noite, acordei sobressaltada, julgando ter ouvido tiros muito ao longe. O guerreiro, meu salvador, de quem eu nunca saberia o nome, tinha sido cercado, tinha tido seu confronto final? Tombara com sua arma na mão como queria, como um guerreiro do Walhalla?<br />_______________________________________ <br /><br /><br />Permaneci naquela casa acolhedora por dez dias, já que ali não havia nenhum telefone, o que foi bom para o meu restabelecimento, apesar da preocupação em dar notícias tranqüilizadoras aos meus, que deviam estar em ânsias, sem pistas do meu paradeiro. A boa mulher, dona da casa, chamava-se Júlia, era viúva, com os filhos alistados no exército, e vivia muito bem em sua solidão. Muito maternal, adotou-me naqueles dias, como filha, numa dedicação a toda prova, mas curiosa e intrigada quanto a minha pessoa. Contei-lhe minhas aventuras e desventuras, que ela acompanhava com os olhos espantados, abanando a cabeça. Ela dizia:<br />— Guria, que vida a tua! Como te metes em encrencas! Mas sabe, isso é destino, e o teu, afinal é belo apesar de tudo. Apesar do preço que pagas pelos teus privilégios. Mas o que mais me impressiona é tua relação com teu finado pai. Esse era um homem que nunca vi! Meu marido, era um bom homem, mas duro e seco, tinha sido militar, e tratava os filhos como recrutas, neste fim de mundo. Afinal deve ter servido para alguma coisa pois foram mesmo recrutados para o serviço militar e não devem estar estranhando. Mas eu sempre quis ter uma filha, que não tive, e a tua presença aqui me traz uma doce sensação, como uma nostalgia. És uma doce guria, apesar das tuas aventuras, e mais me faz ver a imensidão de minha perda, não tendo uma filha mulher. Esta noite sonhei que tinha uma, e eras tu, que tinhas voltado estranhamente do exército, da guerra. Sabe, “A donzela que foi à guerra*”, meu avô recitava esse romance antigo, português, para nós, e agora voltei a lembrar dele. Para mim, voltas ferida da guerra, eu te cuido, e tornarás para outras batalhas. Sinto que sofrerei quando fores embora. Mas, agora, vira-te de bruços que tenho de trocar estes cataplasmas. Tu verás, minha guerreirazinha, que a tua pele fina e branca ficará como antes, com esta receita de minha avó. Teu futuro marido não saberá que fostes à guerra. Poderás dizer que conheceram-te somente pelos teus olhos verdes, “que por outra cousa não”. <br />Adorei Júlia conhecer aquele poema medieval, anônimo e tão pouco sabido. Ela me surpreendeu, como, aliás, sempre o faz este meu povo do sul. Eu senti que poderia ser feliz ali com ela, e uma nostalgia de mãe, também me assaltou. Eu percebi que era carente de mãe. Já que a minha, eu é que rejeitara um tanto, pela minha paixão por meu pai. Pobre mamãe! Quanto deve ter sofrido comigo, seus sonhos frustrados em relação a uma filha dócil e acomodada, e que, ao contrário, revelara-se uma poeta doida e delirante, ao seu ver! Solange e Lúcia nunca puderam preencher esta sua expectativa em relação a mim, a filha que fisicamente era o seu modelo, mas que espiritualmente era muito complexa, e não a bonequinha manipulável que ela queria. No entanto, sempre fui doce e meiga apesar de rebelde e aventureira, o que mais a confundia e perturbava. Ela não podia entender essa junção paradoxal de características que ela pensava opostas e inconciliáveis. Justamente aquilo que me faria amada e desejada por tantas pessoas, como agora por esta boa mulher que teria um pedacinho da minha vida e do meu coração. Eu tratava Júlia com tanto carinho e gratidão, que ela se pôs a chorar pelos cantos com a perspectiva de perder-me, eu percebia.<br />Ela me banhava no próprio leito, com uma esponja embebida em água morna, fervida na chaleira em seu forno de lenha, com tal doçura e desvelo, que me comovia, e me apegava a ela. Decidi que viria visitá-la, no futuro, para conhecer os meus irmãos recrutas, e que os teria como uma segunda família, em meu coração. Estou convencida de que nada é acaso em nossas vidas e que encontros como esses são sempre providenciais, e vêm para nos ensinar algo, ou mesmo corrigir o nosso rumo. <br />Afinal saí do leito, e comecei a passear com ela lentamente apoiada em seu braço, pelo seu pomar, em volta da casa, cheio de pereiras e pessegueiros, e ainda algumas macieiras que me fizeram lembrar saudosamente a minha própria, sagrada. Eu cobria aquela mulher de carinho, e falava seu nome como se dissesse a palavra “mamãe”, o que ela captava, deixando-a cada vez mais comovida.<br />Então, no décimo dia, afinal, a polícia chegou, com o Rôdo, Galdério, o tabelião Donato e até o meu advogado o doutor Loredo. Cercaram e assaltaram a casa um tanto intempestivamente como se eu ainda estivesse seqüestrada, e a polícia quase prendeu a querida Júlia, como se fosse cúmplice dos bandidos. Tive de intervir e dar um basta naquela intrusão, explicando tudo e abraçando muito a Júlia, assustada, na frente daquela gente toda. Havia também uma repórter que não parava de tirar fotografias com flash. Os jornais de Alegrete, Livramento, e até de Porto Alegre, noticiaram a minha libertação, contando detalhes fantasiosos e sensacionalistas, inúteis e aquém dos verdadeiros acontecimentos. O fato de eu ter sido chicoteada, produzia sensação no público e funcionou como uma catarse, ao que parece, para tantas mulheres “rebeldes”. Eu era mais uma vez tratada como uma heroína que tinha sido torturada. E tanto a imprensa insistiu que conseguiu fotografar minhas costas ainda com pequenos vestígios das lambadas. Percebi que as fotos foram retocadas digitalmente, nos jornais, para parecerem ainda lanhadas e inflamadas, em carne viva. Eu comecei a me sentir usada, e que o sensacionalismo estava afinal malbaratando tudo, a começar pelo sofrimento real pelo qual eu passara. Resolvi fechar-me em copas e não receber mais nenhum jornalista. Mas no meio daquilo tudo, fiquei sabendo de algo que me estarreceu e que me preocuparia sempre, daí por diante: o corpo de Geraldo não fora encontrado, somente o seu rastro de sangue que se perdeu, num bosque, pois caíra uma chuva de haragano, que apagou as pistas. Eu não teria mais perfeita tranqüilidade, sabendo disso.<br />O dinheiro do resgate foi devolvido ao Banco com um pagamento de juro, imenso, mas numa única parcela. O banco insistia em emprestá-lo a juros extorsivos para nós investirmos na vinha, no aumento da produção e das instalações. Mas eu recusei prudente, ou covardemente. Não sou realmente uma empresária... Também não deixei o Rôdo aceitar a oferta que nos faria reféns novamente, agora dos banqueiros.<br />Agora eu afinal estava entre os meus queridos, e as crianças me cercavam de um carinho emocionante. Laís grudara-se a mim. E Aline que voltara, quando soube das notícias do meu seqüestro, disputava-me com a sua nova rival, com o perigo de uma desavença interna, em nosso lar. Eu as abraçava apertado, igualmente, e pedia à Aline que compreendesse, e que aceitasse o meu carinho por Laís, o meu amor mesmo, que nada roubaria do dela. Mas, reconhecia que isso era difícil. As outras mulheres não são como eu. São muito ciumentas e exclusivistas, e portanto, eu agora estava prestes a me ver no meio de uma guerra entre estas duas queridas gurias. Eu contei à Aline o que acontecera com Laís, o seu estupro, mas omitindo, claro, os acontecimentos preliminares que levaram àquele evento trágico. Mas Aline, disse-me mais ou menos isto: <br />—Alma, você anda me traindo, e não é de agora. Você omite fatos importantes, que ocorrem com você, isto não é leal! Eu sei que algo se passou em São Paulo quando você foi ferida, durante a nossa mudança. E eu tenho uma grave suspeita do que realmente aconteceu. Agora é a hora de pôr cartas na mesa. Não ficarei com você se continuar mentindo para mim. Não me sinto bem, é como se você não me amasse mesmo de verdade. Você quer por panos quentes em tudo, como para me poupar de algumas coisas, da feiúra, talvez, em nossa vida. Você como poeta, como artista é uma esteticista, e quer somente a beleza rejeitando tudo o mais, varrendo o sujo e o feio para debaixo do tapete, não é? Não, não, você precisa confiar em mim, ou não haverá verdadeiro companheirismo. Estamos vivendo uma relação de fundo falso, e quando a tampa se abrir vai ser aquela caixa de Pandora que você me contou: cobras e lagartos sairão. Talvez alguns demônios. <br />Eu fiquei envergonhada. Tive que admitir que Aline tinha razão. No fundo eu era um tanto covarde e não queria perder ninguém. Mas não é assim, afinal, a humanidade inteira? Somos todos carentes. E aquele pistoleiro solitário ou aquela Lillith fatal, não existem verdadeiramente, a não ser como psicopatas predadores e perigosos. Ao pensar nisso, agarrei-me à Aline, abracei-a apertado, com um medo imenso de perdê-la, e respondi: <br />—Sim, sim, Aline, meu amor, minha querida, contarei tudo, contarei tudo, mas não me deixe, não me deixe nunca ou morrerei. Olha, fecha a porta, vou contar-te tudo, desde aquilo em São Paulo. Mas, olha, não tenho culpa, não sou verdadeiramente culpada. Eu nunca quis fazer o mal, a ninguém! Só quero amar, só quero o amor! Tu me conheces! (Caí num imenso pranto, como uma menina pega em mentiras.) Afinal, entre soluços comecei a contar:<br />—“Olha Aline, amor da minha vida, a verdade é que fui violentada... estuprada pelo Pedro, naquele dia terrível, no apartamento, no meio dos caixotes... em cima deles, na verdade. Mas,eu juro, não fiz nada para provocá-lo, a não ser ter te tirado dele, ter te roubado a ele, como ele disse. Ele me odeia tanto que quis ferir-me e humilhar-me, além de possivelmente comprometer a nossa relação. Mas seu ódio não era destituído de desejo, como se viu, tu sabes como são os homens, seu machismo... Ele sempre acalentou a fantasia de uma ménage-a-trois, entre nós, tu sempre soubeste disso. Pois, isso, frustrado, gerou a violência que me vitimou. E eu escondi de ti, realmente, pelas razões que enumeraste. Tenho horror ao horror, à feiúra, à vulgaridade, mas sobretudo à dor. Ai, a dor, Aline, não suporto a dor, em mim, na humanidade em geral, e sempre quis viver num sonho, o que na verdade não consigo. Mas sou uma rebelde contra a dor e contra o mal, minha insistência no amor, na liberdade positiva, na pureza e na beleza, nisso consiste a minha rebeldia, o meu heroísmo já apontado por alguns! Eu não me entregarei jamais. A vida é bela! A vida tem que ser bela, e o amor vencerá tudo no final!” <br />Voltei a soluçar e a chorar copiosamente, sentindo-me patética, e com uma imensa dor, insuspeitada, subindo, subindo do fundo de mim para o meu peito, tomando-me toda, afinal, num pranto dolorido, e... universal, eu senti, enquanto Aline me abraçava, também em lágrimas, acarinhando-me como a uma criança. <br />Eu desabafara, enfim! <br />_______________________________________ <br /><br /><br />Fim do Primeiro Capitulo do Romance O SANGUE DA TERRA<br /><br /><br />___________________________________________________________________________<br /><br /><br /><br />Alma Welt<br /><br /><br />O SANGUE DA TERRA<br /><br />Capítulo segundo<br /><br />Ménage-a-quatre <br />ou<br />A fecundação de Aline<br /><br /><br />Eu tinha passado a limpo a minha vida, e sentia-me aliviada, muito mais leve. Eu podia amar os meus amores como nunca, e unia em meu coração todos eles, todas as criaturas que me cercavam. Mas no terreno amoroso, propriamente erótico, que tanto prezo, eu juntava agora plenamente, sem nenhuma culpa, Aline Laís e Rôdo, que este último era o primeiro, que sempre estivera presente dentro de mim. Eu sonhava juntar a todos ao mesmo tempo em meu leito, e sabia que isso aconteceria um dia, subitamente, eu tinha certeza disso. <br />Laís estava um tanto dividida, agora, entre mim e Rôdo, mas eu tentava ensinar a ela que não precisava ser assim, que nós todos éramos conciliáveis, que inúmeros amores são conciliáveis desde que nos livremos da culpa, dos maldito sentimento de culpa e de pecado que nossos ancestrais atrasados e escravizados, nos legaram. Mas elas, Laís e Aline vendo a nossa liberdade, minha e de Rôdo, nossa abertura para a multiplicidade, foram também se soltando. Nós nos beijávamos e acariciávamos uns na frente dos outros a todo o momento, e isso nos proporcionava enorme prazer. Logo estávamos nos banhando todos juntos, nus, no açude e no ribeirão, em locais reservados, que pensávamos secretos, ou nunca visitados pelos peões, se é que isso ainda existia na nossa estância, como pude perceber durante os depoimentos contra mim no julgamento. <br />Naqueles dias, Aline, observando o meu amor pelas crianças, a afinidade e carinho profundos que davam o tom da nossa relação, começou a ficar com uma espécie de nostalgia de maternidade ainda não desfrutada, se posso dizer assim, mais do que um simples desejo de ser mãe ela mesma. Rapidamente isso foi crescendo dentro dela, e se tornou uma espécie de obsessão, de pensamento único. Ela dizia: <br />—Alma, quero ser mãe, preciso ser mãe. Estou feliz com você e com todos aqui, as crianças são maravilhosas, mas por isso mesmo me deixam louca para ter um bebezinho que saia de dentro de mim. Ah! Alma, como fazer, preciso de um bebê ou ficarei seca aos poucos. Você tem a sua arte, seus quadros, seus desenhos, seus poemas, seus livros. Eles são seus filhos, saem de dentro de você! Os artistas são assim, suas artes é que são seus verdadeiros filhos. Eu não tenho isso... Ai, Alma queria ter um filho seu, mas, que loucura, você é uma mulher! Ai, Alma, começo a sofrer com isso. Deixe-me ter um filho, com você Alma! <br />—Aline—eu respondi—há uma solução. Eu já venho pensando nisso, há algum tempo. Tenho uma bela solução, se topares. Olha, presta atenção e não reajas de imediato. Prometa que pensarás nisso: Rôdo! Ele poderá ser o pai do nosso filho. Se eu pedir a ele, tenho certeza que me atenderá. Tu te deitarás com ele, o que será um imenso prazer para ele, que sei que te deseja, pois que homem não te desejaria, minha linda? Só que vocês têm que me prometer que a criança será minha e tua, ou pelo menos de nós três igualmente. Terá um pai e duas mães, nós o criaremos assim, com muito amor, e será a criança mais privilegiada do mundo. Tu tens que me prometer que não terás ciúmes dessa criança e que a dividirás comigo, além de Rôdo. Em suma, eu te “emprestarei” ao Rôdo, e vocês o conceberão na minha cama, comigo ao lado, acordada ou fingindo dormir, ainda não sei. E eu os estarei abençoando nessa relação. Tu sabes, Rôdo e eu nos sentimos quase como o prolongamento um do outro, não há ciúmes entre nós. Sei que ele topará, se eu lhe pedir. Se tu o fizeres, se fores tu a pedi-lo sozinha, ele pensará que me estás traindo e recusará. Conheço meu irmão. <br />Aline ficou um pouco espantada, pensativa. Ela não tinha pensado nisso. Não pudera imaginar que minha cumplicidade com Rôdo chegasse a esse ponto. Chegou a pensar que já tínhamos repartido namoradas antes. Questionou-me, estava perturbada, confusa. Mas, a minha idéia já germinava dentro dela, e foi divertido observar como o seu olhar sobre o Rôdo começou a mudar. Eu a pegava olhando de soslaio para o meu irmão, observando seus movimentos, seu rosto, seus olhos, seu porte, tudo. O mais engraçado foi notar como ela olhava agora com mais atenção, sem perceber, para o pênis do meu irmão, quando tomávamos banho todos juntos e nus, no riacho, no meio do bosque, ou no açude. Também ao chuveiro que passamos a usar coletivamente, claro, como extensão natural dos nossos banhos de rio e de cachoeira. Uma vez ela pegou delicadamente seu pênis com dois dedos, ao chuveiro, abertamente na minha frente e na de Laís, para observá-lo. Sua pureza era tão evidente, e a nossa cumplicidade a quatro já tinha ido tão longe, que Laís não fez caso, e sorriu, por incrível que pareça. Aliás, já estávamos todos prontos para o nosso maravilhoso “ménage-a-quatre”. <br />Entretanto Laís não sabia do nosso plano de um filho, e isso, eu temia compartilhar com ela. <br /><br />__________________________________________ <br /><br /><br />Rôdo não fora informado da terrível violência que houvera com sua Laís, e eu tinha um pacto com ela, de nada contar a ele sobre isso. Não era necessário. Ele ficaria furioso e impotente quanto ao fato consumado, e qualquer vingança era impossível, pois a polícia considerava Geraldo morto, embora não tivesse encontrado seu corpo. Como podia ser isso? (eu me perguntava). O delegado dissera que seu corpo, ou melhor, sua ossada, seria encontrada um dia, pois havia um rio ali perto, e ele devia ter caído, gravemente ferido, nas águas, e morrido afogado, sendo seu corpo arrastado para longe dali. Mas como a polícia poderia afirmar isso? Eram tão somente conjeturas, embora o delegado me aconselhasse a esquecer tudo, e não mais me preocupar. A quantidade de sangue no rastro visível, os autorizava a afirmar isso.<br />Passados dois meses do acontecido, tive uma enorme vontade de visitar Júlia, na sua linda choupana. Minha nova mãezinha, que cuidara tão bem de mim, a ponto de minhas costas e nádegas não mais apresentarem qualquer vestígio da flagelação, adoraria conhecer as minhas “amigas”, eu imaginei. Pedi ao Galdério que aprontasse o nosso carro cujos furos de balas já tinham sido maçados e pintados. Galdério, e Rôdo que aceitara meu convite, na manhã da viagem, bem cedinho já estavam a postos. Partimos, animados, com o passeio, as gurias curiosas para conhecer minha salvadora. <br />Quando, após duas horas de viagem na magnífica manhã ensolarada, com minhas gurias encantadas com a paisagem pampiana, afinal chegamos naquela trilha à direita da estrada, meu coração oprimiu-se. Eu não pensara que teria que passar pela mesma trilha cujo bosque tinha sido palco da minha tortura e humilhação. Fiquei muito perturbada ao passar por ali e ainda reconhecer o ponto em que o carro parou e que penetramos entre as árvores, eu arrastada pelo pulso por aquele homem horrível, meu cunhado e carrasco. Lágrimas rolaram dos meus olhos, e fui consolada e acarinhada pelas minhas duas namoradas, que me ladeavam no banco de trás. Rôdo mantinha-se em silêncio, dirigindo o carro, com o Galdério, agora como co-piloto. <br />Afinal, chegamos na cabana de Júlia que não tinha sido informada de nossa vinda, pois não tinha telefone e vivia isolada. A porta estava aberta e ela não estava em casa. Meus quatro acompanhantes sentaram-se nas cadeiras e poltronas sem cerimônia, enquanto eu saía para procurá-la no pomar, em torno. Mas não a encontrei. Voltei e juntei-me aos outros numa espera ligeiramente perturbada e ansiosa. Então, depois de uns quinze minutos, entrou ela com uma braçada de ervas. Minha maravilhosa feiticeira! Abracei-a em lágrimas e ela parecia surpresa e feliz. Apresentei todos a ela, que a cumprimentavam com agradecimentos por mim. Nós iríamos passar um dia maravilhoso e perturbador, pela razão que me apressarei em contar.<br />Não me deterei nos detalhes daquele dia, nas conversas das meninas com Júlia e o que se passou entre elas. Só sei que as duas a consideraram uma espécie de feiticeira benfazeja, e ficaram maravilhadas com suas palavras e receitas de ervas. Mas o que me perturbou foi o seguinte: Júlia me revelou, que Geraldo estivera ali, fora recolhido por ela, caído à porta de sua cabana, baleado, entre a vida e a morte durante uma semana, e que ela o salvara com suas ervas, poções e cataplasmas, surpreendentemente até para ela mesma. Ela não questionara quem era ele, pois não era a primeira vez que cuidara de um homem baleado, ou esfaqueado. Em geral, peões feridos vinham dar à sua porta e eram cuidados por ela, às vezes enterrados no seu pomar, com uma muda de árvore por cima. Na verdade quase todas aquelas árvores de fruta tinham um cadáver por baixo, ela me revelou, causando-me um arrepio. O Pampa estava me revelando, através dela, a sua face sinistra e sangrenta. Mas ela garantia que a maioria dos feridos ela salvara, o que no caso de Geraldo não foi um consolo para mim. Esse homem horrível, mesmo ferido a ameaçara de morte, o que para ela não fez diferença, pois cuidara sempre de bons e maus e conhecia o coração e as fraquezas dos homens. Ela me segurava as mãos carinhosamente, contando coisas terríveis, sempre com a mesma serenidade. Contou-me que Geraldo partiu, ainda não totalmente recuperado, quando um menino, pretinho, da região, que visitava sempre Júlia, e era uma espécie de discípulo dela, chegou com a notícia de batidas na região, num raio de cinco quilômetros, movimentos de procura, da polícia, pelo corpo de um homem que fora baleado há uma semana daquela data. Geraldo ainda tinha sua arma na mão e ameaçara Júlia. Eu tinha deixado aquela casa no dia anterior ao da sua chegada, felizmente, pois ele, talvez, mesmo ferido teria me matado ali, naquela casa abençoada, se me reencontrasse, para evitar o meu testemunho da sua ignomínia. <br />Cai num choro convulsivo, diante daquela revelação, numa súbita crise histérica. Eu não teria mais completa paz com aquele homem, aquela ameaça a mim, solta no mundo. Fui cuidada e acarinhada por Júlia e as gurias, que se desvelaram em me consolar e animar. Mas fiquei sem condições de viajar, de retornar aquela noite para a estância, e pedi, então a Júlia que nos permitisse posar em sua casa. Nós partiríamos de manhã bem cedo, bem repousados. Júlia, que eu percebi, não me negaria quase nada, abraçou-me carinhosamente, dizendo: <br />– Alma, minha guria, não sabes como tenho prazer em ter-te na minha casa. Eu na verdade te queria junto a mim, para sempre. És a minha guria, minha filha, da qual lambi as feridas. Todos dormirão bem, aqui nesta casa. Tenho um sótão com uma cama e um colchonete, que poremos no chão, Vocês, gurias dormirão se revezando na cama, se não couberem as três no mesmo leito. Rôdo e Galdério dormirão no celeiro, sobre a palha. Venha, vou mostrar-te teu quarto.<br />— Júlia—eu disse — quero pedir-te ainda um imenso favor. Necessito a tua complacência para algo que talvez aches estranho. Preciso ter um filho. Aline necessita ter um filho comigo, ou eu a perderei logo. Tu compreendes. O apelo profundo da maternidade chegou para ela. Eu lhe propus, e ela aceitou ser fecundada por Rôdo, meu irmão querido, que nada me negará, tenho certeza Não tive ainda a oportunidade de falar com ele, pois a idéia é muito recente, mas pretendo fazê-lo hoje à noite, a sós, num passeio em teu pomar. Tenho certeza que ele assentirá. Mostra-me agora, o quarto, querida Júlia, pois, se concordares, terei que calcular a logística.<br />Júlia sorria maravilhada com a idéia, como se já soubesse de tudo. Demos uma gargalhada juntas, como duas alegres alcoviteiras, e de mãos dadas reentramos na choupana. <br />Subimos ao sótão, que me pareceu encantador, acolhedor e aconchegante, com um catre, não muito estreito, em que caberia duas pessoas, tranqüilamente. Ela começou a arrumar o quarto, e a tirar de uma arca enorme, um colchonete e roupa de cama. Arrumamos as camas, deixando tudo pronto. Eu estava somente preocupada com Laís que eu não teria tempo de participar e preparar o espírito. No fundo ela seria a única enganada, naquilo tudo. Mas eu acreditava que poderia prepará-la a posteriori, dada a sua paixão revelada por mim, que ela conseguia muito bem conciliar com a de Rôdo, dentro dela. Maravilhosa guria, revelação em minha vida!<br />Aquela noite, eu chamei Rôdo para um passeio a sós, no pomar, em volta casa, sob um magnífico céu estrelado, de lua nova. <br />Andando pelo pomar, em torno da casa, ouvindo o canto dos sapos e grilos, de mãos dadas com meu irmão, uma imensa calma tomou o meu coração e eu tive a consciência daquele momento mágico, na iminência de um pedido profundo, decisivo em nossas vidas, que poderia até mesmo mudar nossos destinos. Então, parando subitamente e olhando-o nos olhos que brilhavam, refletindo a lua, eu lhe disse: <br />–Rôdo, meu irmão, quero fazer-te um pedido. Preciso de ti mais que nunca, para solucionares uma questão vital. Preciso ter um filho com Aline (ele abriu a boca, estupefato, mas logo sorriu). Ela está tomada pelo sonho da maternidade. Ela anseia por isso, seu corpo mesmo anseia por isso. É chegado o seu momento, e ela se frustrará, ou me abandonará se eu não puder dar-lhe um filho, que ela espera criarmos juntas. Ora, isso é facilmente contornável, se pudermos contar contigo. Só em ti eu posso confiar, meu irmão. Eis o que te peço: deita-te com Aline, no nosso leito, com a minha benção. Fecunda-a, dá-nos teus dons, tua beleza e teus gens. Não será nenhum sacrifício para ti tal empreitada, não é mesmo? (sorri). Vocês homens estão sempre dispostos quando se trata de uma bela fêmea, em seu leito, não? <br />Rôdo sorriu e seus olhos brilhavam, comovido, beijando as palmas das minhas mãos. E disse:<br />—Claro, Alma, minha irmã querida. O que eu poderia te negar? Entendi tudo. Mas falta saber qual será o meu papel perante essa criança, depois de nascida. Não sei se estou preparado para ser pai...<br />—Rôdo, a criança que nascer, terá de ser a mais privilegiada do mundo. Tu me conheces. Não quero ninguém vítima de nada, a começar pela criança, é claro. Ela terá um pai e duas mães, que a compensarão pelas tuas longas ausências, revezando-nos nos cuidados sobre ela. Tu poderás viajar com Laís, e sempre retornarás para ver teu filho, e dar-lhe a referência masculina, de pai, que ele, naturalmente necessitará. Sei que o meu plano pode dar certo. Temos tanto amor para dar, não é, meu irmão? O Vati propiciou isso em nós, com seu imenso carinho e liberalidade. Sei que seremos todos felizes, muito mais ainda com um bebezinho entre nós. O único que me preocupa, é Laís que não terei tempo de preparar, de pedir-te emprestado a ela, como te estou emprestando à Aline. Mas sei que ela também me ama, e será generosa comigo. Não posso naturalmente, deixá-la de fora desse projeto, que é coletivo, por assim dizer. Ele envolve pelo menos cinco pessoas, contando com Matilde que nos ajudará a criar nosso filho, como ajudou a nos criar. E ainda as crianças, que serão como irmãos desse bebezinho. Ai, como tudo isso pode ser belo! Começo a ficar entusiasmada! Então, aceitas, meu irmão? <br />Rôdo me abraçou dando uma gargalhada alegre, e ficamos muito tempo assim, rindo, divertidos e felizes com a minha idéia e nossa cumplicidade a toda prova. Eu me sentia plena, como se também estivesse grávida. Só faltava preparar o terreno para aquela noite maravilhosa, de fecundo sonho, de semeadura, de plantio. <br />_____________________________________________________________<br /><br /><br />Para que meu plano desse certo, eu precisava, finalmente, do consentimento de Laís. Afinal, era do seu namorado que se tratava, e não simplesmente do meu irmão. Ela teria esse desprendimento? Como se sentiria em relação a uma criança de Rôdo que não viesse do seu ventre? Ela acalentava também um sonho de maternidade? De um filho seu e de Rôdo? Eu percebi que não sabia muita coisa ao seu respeito, além é claro, de que era muito mais doce, frágil, e apaixonada do que eu esperara, no princípio. Ela se mostrara tão amorosa e ardente, comigo, até aquele malfadado incidente do... seu estupro! Ah! como eu odiava aquele Geraldo que viera danificar, sujar, a felicidade comum a todos daquela casa! <br />Eu precisava ter as coisas em pratos limpos. Eu sabia que todos deviam estar bem conscientes do que íamos fazer, pois havia o risco de cobranças e desavenças no futuro, e eu seria a principal responsabilizada. Eu não podia deixar qualquer marca de manipuladora, de influenciadora de pessoas pouco conscientes.Por outro lado, eu estava convencida da pureza do meu propósito, embora no fundo, ele repousasse no medo que eu tinha de perder Aline, simplesmente por não ter um belo pênis reprodutor, meu mesmo. Essa é que era a verdade, eu sabia. Mas, o sonho de uma criança querida, cuidada por todos nós, também era verdadeiro, e me manteve firme no meu propósito. Fui procurar Laís.<br />Encontrei-a colhendo ervas com Júlia, e pedi-lhe para conversar a sós, reparando num olhar e num pequeno gesto afirmativo, cúmplice, de Júlia que se afastou discretamente. Eu lhe disse, abraçando-a e segurando-lhe as mãos: <br />—Laís, querida, preciso do teu consentimento. Tu deves emprestar-me o Rôdo, para que ele fecunde Aline, que precisa de um filho meu, ou me abandonará. Provavelmente voltaria para aquele Pedro, seu ex, para ter um filho com ele, o que seria para mim uma tragédia. Tu compreendes? Não há nenhum outro propósito. Preciso do sêmen de um homem bom, puro e forte como só o Rôdo é, e no qual posso confiar. Eu lhe suplico, Laís, empresta-me o Rôdo, para isso, esta noite mesmo. Sinto que tem de ser esta noite, mágica, propiciatória. Olha esta lua, estas estrelas! <br />Laís ficou um instante estupefata, surpresa, mas logo se distendeu, sorriu e levando minha mão aos lábios respondeu:<br />—Alma, meu amor, é isso que me pedes? Eu faria muito mais por ti. Rôdo sabe? E Aline? Já aceitaram teu plano doido? Olha, que é bem original, mas é lindo, e... excitante! Sim, sim, percebo o alcance disso. Oh! querida, como és inteligente! Sim, sim, esta noite! Mas quero ver, quero estar presente, devemos estar todos juntos, será uma celebração do nosso amor. De nós quatro! <br />Eu quis morrer de felicidade com a reação positiva de Laís. Agarrei-a e cobri-a de beijos, às gargalhadas e gritinhos, rodopiando como duas gurias travessas. Eu estava plena, transbordante de amor. Minha alegria e meu amor se uniriam ao sêmen de meu irmão fecundando a minha Aline, que teria um bebê que seria legitimamente de nós quatro, que o planejáramos com tanto amor e desprendimento. O mais legítimo dos filhos! <br />Beijei mais vezes minha Laís, e corri então para o planejamento final, da cerimônia preparatória da fecundação, que seria presidida por Júlia, que já recolhia as ervas para isso mesmo.<br />Subimos as três ao sótão, e Júlia começou a queimar ervas num recipiente de metal. Fumigou o sótão, e desceu a escadinha de costas para defumar a cabana toda. Depois, subiu novamente e começou a colocar pequenos maços de ervas estrategicamente nos quatro pontos cardeais do quarto. Enquanto o fazia, recitava versos numa língua desconhecida, que me pareceu uma espécie de dialeto do alemão, arcaico. Eu estava impressionada e comovida, queria apreender aquilo tudo e planejei um futuro estágio com essa mestra da feitiçaria branca, benfazeja. Eu estava numa estranha euforia, que duraria aquela noite toda. <br />Júlia terminou a cerimônia propiciatória, colocando flores no quarto, não como enfeite, eu senti, mas como algo mais profundo e também em pontos determinados, e finalmente em cima da cama, esparzidas. O quarto todo respirava a fragrâncias de ervas e flores, mas de maneira suave, agradável, nada carregada.<br />Então Júlia saiu, e voltou trazendo dobrada, uma camisola branca, leve, parecida com uma túnica, e despimos Aline, que nua, tremia de emoção, não de frio, naquela noite quente, agradável. Vestimos, pela cabeça, aquela túnica em Aline que ficou linda, como uma donzela na sua noite de núpcias. Ligeiramente transparente, aquela veste insinuava o púbis delicado de Aline, com sua penugem negra, de uma forma irresistível, convidativa. Senti que o Rôdo ficaria louco de desejo por ela. Aliás eu já percebera seu desejo, discreto, em relação à Aline, há muito tempo. E naquela mesma noite, quando lhe fiz o pedido, ao abraçar-me, eu já percebera entre minhas coxas, sobre o vestido, o volume avantajado do seu pênis, que ficara imediatamente túrgido, com a perspectiva de tanto prazer para aquela noite. Os homens são assim...<br />Afinal, reunimo-nos todos, menos Júlia, que se retirara para levar, até o celeiro, uma manta para o Galdério, que dormiria ali sozinho, o pobre. Em seguida ela se recolheria ao seu leito.<br />Quase cerimoniosos, olhávamos uns para os outros. E então Laís deitou-se no colchonete estreito e eu deitei-me junto com ela abraçando-a por trás, mas olhando para o leito de Aline e Rôdo. Eu queria ver tudo, não conseguiria pregar os olhos, enquanto acariciava a cabeça de Laís, que fechou os olhos, sonolenta. Logo adormeceu, como uma criança aconchegada em meus braços.<br />Aline deitou-se, estava em seu período fértil, tudo tinha sido planejado e retirando a túnica, jazeu estendida, um tanto tensa, abrindo lentamente as pernas, olhando Rôdo nos olhos. Este despiu-se, e admirei mais uma vez, na suave penumbra do quarto, cuja janela aberta deixava entrar o fulgor da lua, as formas viris de meu irmão, seu corpo muito branco, em que só a cabeça e os braços eram bronzeados pelo sol do pampa. Seu membro, que sempre fora avantajado, estava imenso, em riste, como uma lança, um pouco ameaçador, eu achei, enquanto Aline o olhava fascinada, mas com um pouco de medo, eu percebi, dado o tamanho descomunal daquele instrumento. Rôdo foi descendo sobre ela, mas como homem experiente que era, deslizou suavemente por aquele lindo corpo, suas grandes mãos agarrando os seios de Aline, recobrindo-os inteiramente, enquanto mergulhava sua cabeça entre as pernas da minha amiga, que começou a suspirar alto, despertando Laís, que olhou fascinada Nós duas nos sentamos, então, como espectadoras, e ficamos assistindo, atentas a todos os lances. <br />Meu irmão tinha um profundo conhecimento da anatomia, das necessidades e preferências eróticas da maioria das mulheres. Ele titilava com a língua, hábil e incansavelmente o clitóris de Aline, cujo sumo abundante, já escorria de sua linda vagina rosada, sobre o lençol. Eu me erguera e acendera a luz para perceber tudo isso. Não poderia deixar escapar nada, nenhum lance. Percebi que Laís também queria assim, todos queriam assim, na verdade, às claras, como um sexo coletivo, como a celebração do amor e da fecundação que era de todos nós. Sentindo isso, Rôdo continuou, introduzindo sua língua nos dois orifícios rosados de Aline, que gemia cada vez mais alto, em múltiplos orgasmos, enquanto os sapos e grilos, lá fora, pareciam também aumentar seu alarido, os cães a uivar e a latir ao longe. Uma sinfonia tomava todo o ar, eu senti, e então, num mesmo impulso com Laís, nos precipitamos e agarramos o imenso falo de meu irmão e o conduzimos, com as mãos, diligentemente, insolitamente, para a fenda rósea de Aline que deu um grito de surpresa, de alegria e prazer, enquanto o macho glorioso, como um touro reprodutor da nossa estância, explodia seu sêmen viscoso, branco e abundante, na vagina da fêmea receptiva e também gloriosa. Então, caiu em seu peito extenuado enquanto eu e Laís, nos largamos, e embolamos sobre eles, naquele catre um tanto estreito, para adormecermos todos juntos e nus, enroscados, numa comunhão única, que talvez nunca mais se repetisse. <br /><br />___________________________________________<br /><br />Ao amanhecer, acordei novamente no chão, sobre o colchonete, enroscada em Laís, com minha coxa entre as dela, molhada de suor e de seus perfumados sumos. Creio que a possuíra durante uma parte da noite, durante muito tempo, mas não me lembrava bem, estando meio confusa. Olhei para o leito de Aline, e encontrei-a só, adormecida. Então subi no catre, sem despertá-la, e ajoelhada ergui seus quadris, colocando seus tornozelos nos meus ombros, e levantando-a mais e mais, fiquei com sua vagina próxima do meu rosto, ela praticamente de cabeça para baixo, a bacia bem erguida. E assim fiquei durante uma hora inteira, ela adormecida naquela posição, enquanto, eu, distraída, cantarolando uma antiga canção de ninar, auria o perfume híbrido de sua vagina repleta do sumo fecundante do meu irmão. Eu estava louca? Não! Meu poderoso instinto me dizia que era preciso fazer aquilo. O sumo branco de Rôdo tinha que ser ajudado a descer, até a abertura do útero da minha amada. Eu sentia que devia fazer isso, ajudar... não sei por quê. Puro instinto, ou desejo de controle, total, de tudo? Jamais saberei. Obscuros são os desígnios do nosso inconsciente profundo, do leito insondável daquele rio subterrâneo da alma que nos conduz a nós mesmos, às nossas raízes mais profundas, ancestrais. Eu sentia que já tinha feito tudo aquilo em uma época remota, como escrava de uma rainha talvez pouco fértil; uma memória vaga daquilo me assomava a consciência, como o último sonho do despertar da manhã. <br />____________________________________________ <br /><br />Ao descermos, Aline, Laís e eu, com as roupas de cama, sujas, nas mãos, com o intuito de lavá-las no ribeirão, e enfim, para o café da manhã e para o banho de despedida, encontrei Rôdo e Galdério, no jardim, lidando com o carro, preparando-o para a viagem, enquanto sorviam um chimarrão cada um. Júlia saudou-nos carinhosamente abraçando-nos demoradamente e sussurrando coisas nos nossos ouvidos. Essa mulher maravilhosa disse a coisa certa a cada uma, que sentíamos que devíamos manter em segredo. A que me coube, só revelarei no final desta narrativa. Depois conduziu-nos ao ribeirão onde nos desnudamos, lavamos as roupas de cama, que ostentavam lindas e cheirosas nódoas (que aspirei longamente, antes de mergulhá-las no rio), banhamo-nos em águas um tanto frias, austrais. Isso nos deixou despertas e animadas, brincando de jogar água umas nas outras, aos gritinhos como crianças, logo correndo, peladas pelas margens, fugindo umas das outras, até que Júlia chegou com toalhas e nos envolveu e esfregou, aquecendo-nos. Jamais esquecerei a beleza e a delícia desses momentos. Serviu-nos, então, para nos aquecer, um maravilhoso vinho que não soubemos de onde veio, e sobre o qual ela fez segredo. Senti que era um brinde que ela nos fazia pela nossa maravilhosa e estranha noite. Ela disse, com surprendente humor, e erguendo sua taça:<br />—A vosmecês, gurias! Meu marido francês dizia:<br />“ La vie est belle, les femmes sont chères, et les enfants... faciles a faire!”<br />Caímos numa imensa gargalhada<br />Após o delicioso café da manhã, com tortas, bolos e geléias caseiras feitas por Júlia, chegou a hora da despedida. Júlia mais uma vez abraçou a cada um, menos Galdério, talvez por hierarquia, mas ao qual presenteou com uma faca gaúcha de churrasquear, que fora de seu marido, coisa que muito o honrou. Galdério a colocou na cintura e disse-lhe: “Buenas, senhora, pode contar com este peão, para o que der e vier”.<br />Afinal partimos, já com saudade daquela choupana deliciosa, para onde eu sentia que poderia voltar, que seria feliz e acolhida ao seio por uma mulher de imensa maternalidade, integral, telúrica, antiga como este pampa, cujo sangue da terra lhe corria nas veias, embora fosse germânica, francesa alsaciana, celta e... druidisa perdida no tempo.<br /><br />_____________________________________________ <br /><br />Estamos, já há uma semana, em casa. E a vida parece ter retomado seu fluxo normal, com o nosso cotidiano de pequenas alegrias e prazeres, mas também de discreta expectativa, subjacente em todos nós, sobre a gravidez de Aline. Ainda não temos a confirmação, talvez seja um tanto cedo. Precisamos esperar para ver se a sua próxima menstruação não vem. Mas eu acaricio a sua barriga, tanto quanto ela mesma, que já ostenta um olhar terno e sonhador, lindo de se ver. Percebo também que ela olha de soslaio, embora distraidamente, para Rôdo. Ela deve ter gostado muito de ser possuída por ele, mesmo daquela maneira, coletiva, sem intimidade, por assim dizer. Quanto a Rôdo, a mesma coisa: ele a olha disfarçadamente, quando Laís está por perto ou junto dele. Queria que não precisasse ser assim, e que nos considerássemos todos uns dos outros, para sempre, e que aquela nossa experiência não fosse alguma coisa isolada, de exceção. <br />Confesso que ter visto, assistido e até participado da fecundação de Aline, foi para mim algo imenso, ousado e excitante. Eu amei aquilo, e não quero jamais me arrepender... quero dizer, não suportaria perder de alguma forma Aline por causa daquilo. Aline se apaixonar por Rôdo, de uma maneira mais forte, mais profunda, do que está apaixonada por mim? Não, não posso pensar nisso. Não posso pensar na idéia de ela deixar de me amar, ou de estar apaixonada por mim, como eu por ela. Meu plano tem que dar certo. Tem que dar certo.<br />Às vezes, temo que eu tenha sido manipuladora, e que o Destino, ou Deus, me puna por isso, embora eu não veja pecado, crime ou culpa em meu plano. Uma inseminação artificial seria uma coisa hipócrita, em relação a uma pessoa como eu, e com uma relação como a minha com meu Rôdo e minha Aline. Então porquê penso isso? Creio que a minha imaginação literária, de poeta, se antecipe sempre aos fatos e relacione tudo com tudo. Tavez minha crença em destino, contribua para isso, embora eu tenha muito medo de perder a minha felicidade, e de uma verdadeira tragédia acontecer em minha vida. Vocês, leitores, já repararam que nem o estupro, a prisão, a humilhação sexual, e a flagelação frente a testemunhas, representaram uma verdadeira tragédia para mim, embora tenham me feito sofrer muito e derramar muitas lágrimas. Mas creio que nada disso atingiu o cerne da minha integridade, nada disso foi capaz de diminuir meu imenso amor próprio, ou, até mesmo, o meu orgulho. Pode até parecer “machismo” o que vou dizer, mas parece que o fato de ser mulher me tenha feito absorver ou tolerar tais humilhações, que se fosse homem, me teriam destruído. Talvez séculos de violências e invasões tenham nos tornado, a nós mulheres, paradoxalmente, mais íntegras e menos destrutíveis pela violação, freqüentemente cotidiana, imposta a nós pelos homens. Mas, também pode ser que isso se deva a minha natureza de poeta, de artista, que me faz ser tão auto- condescendente com tudo que não atinja o cerne de minha arte, que na verdade me parece mesmo indestrutível, por ser a própria alma.<br />______________________________________________<br /><br />Minha avó alemã tinha muito de feiticeira, coisa comum entre as camponesas de sua região natal. Lembro-me de que sua figura me impressionava, e nem sempre positivamente. Meu pai, naqueles dias de recém chegada de Novo Hamburgo, para morar definitivamente na estância de meus avós, mostrou-me, creio que não por acaso, uma reprodução num de seus livros de arte, de um desenho de Hans Baldung Grien (1480-1545), pintor renascentista alemão, que representava magnificamente, de maneira muito viva e dinâmica, três bruxas nuas, sendo duas jovens e uma velha, todas de longos cabelos, uma delas de pé, frontal, com um penico fumegante ou mesmo em chamas, erguido na mão, bem alto e com um pé nas costas da outra, também jovem, esta apoiada num só joelho, e contorcida, no chão. Pois bem, a velha bruxa, cujo sexo, flácido, era mal disfarçado pela posição da perna da jovem, era o retrato fiel de minha avó camponesa, e fiquei ainda com mais medo dela depois de ter visto esse desenho. Mas o que estariam fazendo as três bruxas nuas, naquelas atitudes, de dança macabra ou ritual lúbrico, captado pelo olhar onipresente do artista? Sim, porque a conotação sexual, erótica, era evidente no desenho, na nudez daquelas mulheres, captadas com realismo e em movimento frenético. Obras como essa me deram, muito cedo, uma consciência precoce da profunda natureza erótica e animal das mulheres, feitas para o sexo, e para reprodução, e que tanto mais belas quanto mais conscientes disso, ou assumidas, se tornam. Por isso mesmo, eu me fascinei muito cedo pelas mulheres livres, pelas cortesãs e prostitutas míticas da história, procurando seus mitos e biografias na biblioteca de meu pai: Lilith, Frinéia, Safo de Lesbos, Cleópatra, Messalina, Taís, Bianca Capello, Lucrécia Bórgia, Artemísia Gentileschi, Lola Montez, Gaspara Estampa, Adèle D’Affry (a duquesa Castiglione-Colonna), Florbela Espanca, e tantas outras. Muitos anos mais tarde, recentemente, meu descobridor e prefaciador paulista, o poeta, pintor e desenhista Guilherme de Faria, mostrou-me um desenho de sua autoria, feito quando era muito jovem, a bico de pena, que também representava de maneira magnífica e igualmente dinâmica uma cena similar, de dança lúbrica de feiticeiras, que faço questão de reproduzir aqui, embora seja tenebroso.<br />Mas, é claro, sempre temi o lado escuro da alma, e procurei me manter distante de toda obscuridade ou malignidade, de uma maneira quase supersticiosa, quero dizer, com receio de que essas coisas pudessem vir até mim, por elas mesmas, atraídas justamente pela minha luz, minha beleza e minha pureza ( me perdoem a imodéstia dessa colocação). Sim, porque naturalmente, na infância, eu amava a Branca de Neve, a Rapunzel e a Cinderella, como a maioria das meninas, mas mais do que isso, eu me identificava com elas, acreditando mesmo, ser a minha história verdadeira, a da minha alma. Minha mãe deixava, ou melhor, fazia questão que eu usasse os meus cabelos louros arruivados, muito compridos, até a cintura, de maneira já demodée, entre as meninas da época, mas que todos achavam lindo. Além disso, havia a tendência de me embonecarem em vestidinhos de princesa, igualmente fora de moda. Não admira eu ter crescido assim, com este ego desmesurado, e um tanto mimada, que não obstante, me conduziu para uma atitude amorosa reverente e apaixonada para com os eleitos do meu coração. Quando amo, torno-me até mesmo subserviente, colocando o objeto amado acima de mim, e não na mesma altura, embora não se possa dizer que eu sofra de baixa auto-estima, ou seja propriamente uma co-dependente, conceito bastante atual, cuja sintomatologia vem sendo bastante estudada nos dias de hoje. O que significa isso? De onde virá essa paixão, cuja nota secreta, masoquista, já me surpreendeu tantas vezes? Não consigo deixar de pensar, por exemplo, nas palavras de Júlia, quando me revelou, en passant, que surpreendeu-se ao examinar, quando cheguei desfalecida em sua casa, “minhas partes”, quer dizer, minha vagina, constatando estar ela inundada de fluido, evidenciando prazer ou preparação para o prazer. Eu acabara de ser açoitada, e a dor e o medo pareciam ter preponderado, mas... terei, então, sentido prazer naquele imenso sofrimento físico de um momento? Tenho medo de mim mesma... No entanto, esse lado obscuro, que sinto em mim, não chega a me envergonhar, o que não deixa de ser surpreendente, embora compreensível, dada a perturbadora escolha da minha alma, no terreno sexual, profundo. Mas, por outro lado, isso não se dará com quase todas as mulheres, de maneira não assumida ou consciente, como, ao contrário, acontece comigo? <br /><br />__________________________________________<br /><br /><br />Laís decidiu ir à Porto Alegre para visitar seus pais. Disse que voltará logo, e, na partida, depois de muitos braços, beijou-me demoradamente na boca, na frente de Rôdo, que apenas sorriu esperando no seu novo carrinho esporte, um Jaguar, para levá-la até à estação de trem. Aline e eu ficamos abraçadas olhando o carro partir, e depois fomos andar no jardim, sob o calor delicioso daquele dia ensolarado, depois de eu colocar meu grande chapéu de abas largas, pois quero manter a minha pele sempre muito branca, sem sardas, coisa que consegui até hoje, surpreendentemente, num lugar tão claro e luminoso como este nosso pampa.<br />No meio das flores, de mãos dadas, Aline virou-se para mim, e com certa brejeirice, exclamou;<br />—Agora você será só minha por uns dias, não é mesmo, Alma? Vamos aproveitar e você vai me contar o que aconteceu, realmente, no seu seqüestro, salvamento, sua relação com a Júlia, e com o bandido que a salvou. Conheço você, Alma. Eles também passaram pelo seu leito? Conte-me tudo, não me esconda nada, sua feiticeirinha!<br />Aquilo me surpreendeu agradavelmente. Eu poderia contar tanta coisa para Aline, e talvez conseguisse conscientizar, ao fazê-lo, certos pontos que eram obscuros para mim mesma. Eu respondi:<br />—Aline, minha linda, esta noite, no quarto, eu te contarei tudo, e tu poderás me julgar, pois só tu sabes fazê-lo com profundidade e sem me ofender. E se quiseres me dar uns tapas no bumbum depois de tudo, eu aceitarei humildemente. Mas lembra-te que, sou mãe do teu filho tanto quanto tu, hem? Por falar nisso, como vai esta barriguinha? <br />Aline agarrou-me ali, no meio das flores e beijou-me nos lábios apaixonadamente, enquanto meu coração transbordava de amor e alegria. Quem poderia nos fazer mal, se tínhamos tal cumplicidade? Mas subitamente, meu coração se nublou por uma fração de segundo, pois a essa pergunta interna, intrometeu-se a imagem detestável de meu cunhado bandido, cujo corpo não foi encontrado, nublando com isso a plenitude da minha felicidade com minhas criaturas queridas. Mas, nesse instante, as crianças, qual alegres abelhinhas, nos rodearam puxando-nos a saia, e Patrícia veio dar-nos as mãos para passearmos juntas entre as flores, distraindo e liberando novamente o meu coração. <br />Começamos todos a colher flores e a tecer rapidamente guirlandas para enfeitar nossos cabelos, entre risos pueris e exclamações enternecidas. A beleza tinha voltado novamente aos nossos dias, e nada poderia despojar-nos dessa nossa inclinação natural, legítima em nós. Éramos criaturas puras, com direito à felicidade, que nada devíamos mais a reencarnações passadas, embora no que me dissesse respeito, eu não pudesse ter absoluta certeza disso, pois tinha sido recentemente fustigada, e parece-me que isso sempre consiste numa punição. Não há injustiça no mundo. <br />Eu disse para Patrícia, num momento: <br />—Querida, tu precisas me contar, qualquer hora, como vai o teu namoro. Ele já te beijou? Vais contar-me tudo, e eu te prometo que não te darei conselhos, só ouvirei e aplaudirei, a menos que me peças. Está bem?<br />Patrícia, mais linda do que nunca, ninfeta no esplendor e talvez auge de sua beleza de Psiqué, me enternecia, e até me comovia, lembrando-me de mim mesma naquela idade, embora eu não fosse tão naïve como minha sobrinha, por culpa talvez dos livros, que eu devorava, enquanto minha sobrinha quase nada lia, pois não tivera um Vati como eu. <br />Assim, ficamos naquela suave dança, por uma hora, até Matilde chamar-nos para o almoço. <br /><br />_________________________________________ <br /><br />Passadas três semanas, afinal comprovou-se a gravidez de minha amiga, através de um teste de farmácia, e o sucesso foi comemorado por todos nós, com grande alegria e brindes com o nosso melhor vinho. Todos acariciamos a barriguinha de Aline e as crianças fizeram uma pequena fila jocosa, para beijar o seu umbigo, em meio a muitas risadas e exclamações. Os votos das crianças ao seu novo priminho ou priminha, eram deliciosos e comoventes. A felicidade desses momentos atestavam desde já o acerto de minha idéia e decisão.<br />Rôdo olhava Aline com novos olhos, claro, e a colocação de sua bela mão, forte, masculina, sobre o seu ventre a comoveu, deixando-lhe os olhos marejados, coisa que não aconteceu ao meu toque. Confesso que isso me preocupou um pouco. A relação de uma mulher fecundada com o macho fecundante seria mais forte do que a nossa relação de amor e afinidade de mulheres? Comecei a temer que sim. Mas a sorte estava lançada e eu não podia conceber que Aline me tirasse a criança ao nascer, meu direito a ela, para atribuí-lo todo ao pai biológico que era Rôdo. Sim, havia o risco, pois a cabeça podia mudar, com a revolução hormonal que estava acontecendo naquele corpo querido.<br />Entrementes eu tratei de aproveitar aquela espécie de intermezzo em nossas vidas, para pintar e escrever muito. Muitos poemas nasceram naquele intervalo, e eu me sentia criativa e feliz. Mas devo contar um episódio significativo daquele período. <br />Rôdo gostara tanto da sua experiência de transar com Aline que, naturalmente quis repeti-la. O mesmo pode-se dizer em relação à minha amada. Eu dormia com Aline no nosso grande leito, cama de casal maior até que o normal, como gosto, quando uma noite, senti uma presença no escuro dentro do quarto. Por incrível que pareça não me assustei, pois tive imediata certeza de que se tratava de Rôdo. Porque não pensei primeiro numa das crianças com medo ou carência de mãe metendo-se quase sonanbulicamente em nossa cama, como ocorria às vezes? Não sei, o fato é que na total escuridão do quarto, eu não quis ou não me atrevi a acender a luz e senti a presença de um corpo adulto que descia sobre a minha companheira enquanto eu imóvel, controlava a respiração, para não deixar passar minha emoção e parecer adormecida. Senti o cheiro adorável de meu irmão que penetrava Aline tentando controlar a sua própria respiração, o que nitidamente era difícil diante de seu imenso prazer e emoção que eu sentia ali, do lado, quase encostada neles. A cama começou a balançar e logo estavam os dois gemendo e resfolegando até eu sentir um tremor súbito que denunciou o duplo orgasmo. Triplo, eu deveria dizer, pois logo em seguida eu própria tive o meu, pela tensão erótica daquela situação inusitada e maravilhosa. Passados alguns segundos ouvi um estalido de um beijo rápido nos lábios, e a sombra deslizou e retirou-se do quarto. Então coloquei como sempre fazia, minha mão no sexo de Aline, como um movimento casual, e ela, imóvel, suspendeu a respiração, eu percebi. Sua vagina estava inundada do esperma adicional de meu irmão, como o “reforço” que ele queria deixar, expressão que ele usaria, cinicamente, e que me fez rir muito no dia seguinte. Mas, naquela noite eu dormi abraçada a Aline, degustando em minha mão, o cheiro maravilhoso dos fluidos dos meus queridos, e essas sensações, eu sei, muito pouca gente deve ter fruído neste mundo. <br /><br />_____________________________________________<br /><br /><br />No final de novembro as aves migratórias retornavam ao Pampa para acasalar e construir seus ninhos, enquanto os pequenos gaviões e corujas predavam a esmo diante de tanta fartura. Eu observava os movimentos na terra e no ar e uma nostalgia persistia em mim, como nunca. Eu esperava tanto daquela criança prestes a nascer, e mimava a minha Aline, com seu lindo barrigão, que a deixava linda, com movimentos mais suaves e delicados. Ela não andava de pernas abertas como uma “pata choca”, como costumam dizer de algumas mulheres grávidas. Não, Aline, continuava linda e suave, e eu sabia que sua criança, nosso filho, seria tão bela quanto ela e Rôdo, que estava na Europa com Laís e mandava cartões postais engraçados e carinhosos, para mim, Matilde, Aline, as crianças, e até para o seu filho que ele prometia assistir nascer, embora eu duvidasse um pouco disso. Laís o reteria, lá, eu pressentia. Tinha medo de perder seu homem, essa é que era a verdade. Ela conseguira manter segredo sobre a sua violação, com medo de perturbar sua relação com meu irmão. As mulheres são assim, eu que o diga, que demorei tanto a contar à Aline sobre o meu próprio estupro. <br />Afinal chegou o grande dia, e a casa se movimentou, como outrora, no tempo dos meus avós, com as mulheres se azafamando, com água quente, e toalhas limpas, desinfetadas, de um lado para outro da cozinha para o quarto, em meio aos gemidos e gritos de Aline, que talvez por influência minha aceitara ter um parto normal como sempre fora tradição na nossa casa, como, aliás, no pampa em geral: à maneira antiga, orquestrada pela parteira, que era a nossa Matilde, que fizera o parto de Rôdo, há quase trinta anos atrás. <br />Aline gritou e gritou, até todos nós suarmos frio, menos a experiente parteira, é claro. Mas Marco nasceu, com o nome do avô querido de Aline, Marcantonio de Marco, que assim era chamado, embora eu preferisse o nome de Werner, de meu pai. Era um bebezinho adorável e eu o senti meu filho imediatamente, que o recolhi nos braços, diretamente da vagina muito aberta de minha amada, que sangrara a ponto de eu me preocupar. Matilde tomou-me a criança dos braços e foi lavá-la em água morna fervida, numa grande bacia ali e ao lado, enquanto ressoavam todos aqueles oh! pelo quarto, cheio de mulheres. Sim porque fiz questão que minha sobrinha Patrícia assistisse tudo, para se tornar mulher, um pouco mais, e conhecer a bela crueldade da vida e da carne. Ela diria mais tarde que estudaria medicina, o que me surpreendeu. Poucas coisas na vida são mais cruas e impressionantes do que um parto. Talvez somente a dor da morte, e o estupro dos inocentes. Mas a disposição das pessoas é um tanto diferente, e o alívio geral, subseqüente, quando cessam aqueles gritos primais, os mais pungentes da vida, é próximo do orgasmo. <br />Começava então, mais um lindo período em nossa vida, e olhando o rostinho de Marco em meus braços, eu me congratulava comigo mesma por ter tido aquela idéia. Um bebê em nossa casa, depois de tudo, de salvarmos nossa estância, era a verdadeira celebração, e também a renovação de uma família que me parecia um tanto decadente, depois da morte do Vati, e mesmo de Solange. A propósito, eu percebia que, de um jeito ou de outro, coubera a mim, já há algum tempo, a liderança daquela família, dadas as ausências prolongadas de meu irmão. A mim, ironicamente, a artista doida da família, já que Lúcia sempre fora um tanto apagada e neutra, embora um enorme coração, mais prático que o meu. <br />Aline amamentava o nosso bebê ao seio, uma das coisas mais lindas da natureza. E seus seios pequeninos tinham se tornado enormes tetas, abarrotadas de leite como a das mammas italianas. Ela emagreceria novamente um dia? Seu sangue italiano, vêneto, se manifestara naquela exuberância, e eu me admirava daquela transformação, numa nova forma de beleza, percebendo quanto a natureza é sábia e adaptável. Eu experimentava colocar, por experiência e também por volúpia, o bebê com a boquinha em meu seio, pequeno de bico rosado, para vê-lo e senti-lo sugar, mas Aline logo me retirava Marco dos braços, dizendo: “Ah! Vem, filhinho, deixa essa tetinha seca pra lá, e vem mamar de verdade na mamãe”; e eu sentia que ela, consciente ou não, queria me ferir.<br />Comecei então a perceber que eu teria, como um trabalho de Sísifo, de reconquistar Aline, ou conquistar aquela nova mulher, mãe ciumenta, que aparecera, e que estava se distanciando de mim, sutilmente. Isto ficava cada vez mais difícil, e eu temia que Aline começasse a me odiar, por achar, surpreendentemente, que não tinha uma verdadeira família, pois sua mãe não se manifestara, praticamente renegando-a, lá de São Paulo, e Rôdo não aparecera para o parto, o que mais lhe doía. As coisas estavam ficando difíceis. Eu continuava cobrindo todos de ternura e amor, mas sentia a reação cada vez mais irritada de Aline, àquela minha maternalidade difusa. Eu me perguntava, com o coração apertado, se iria perdê-la em breve. Eu precisava que Rôdo viesse urgentemente, e se assumisse como pai, ou iríamos perder Aline e o bebê que partiriam, nos abandonando, eu senti. Afinal, que tinha Aline verdadeiramente com aquele pampa, ela que viera do Brás, e era urbana, até a raiz dos cabelos? <br />Mas diante daquele bebê eu me recusava a reconhecer que tinha cometido um erro. Eu sonhara, muito alto, muito idealisticamente, sem levar em conta as profundas raízes das pessoas, e do instinto fundamental da maternidade, da fêmea nutris e do macho provedor. Eu contrariara a natureza? Comecei a suspeitar que sim.<br />Então, Rôdo voltou, afinal, com grande atraso, acompanhado de Laís. Aline o recebeu com o semblante carregado, com lágrimas nos olhos, atirando-lhe imediatamente uma escova do bebê em sua testa, ferindo-o ligeiramente. Meu irmão sorriu meio sem graça e nada disse. Aquela era uma família que corria o risco de ser classificada como “desfuncional”. Não conseguíamos suprir os profundos anseios de “normalidade”, instintivos também, devo reconhecer, em Aline. É claro que o bebezinho florecia, alheio a tudo aquilo, e quando Aline passeava com ele ao colo, no nosso magnífico jardim, eu me reconciliava com a minha idéia inicial, diante daquela visão de paz e beleza privilegiada, sabendo que no Brás nada daquilo existiria, e que Aline levaria isso em conta, e não nos retiraria a criança roubando-nos o novo sonho. <br />Rôdo, depois dessa recepção, ficou um tanto arredio, pois nunca suportou ser cobrado por nada, em sua vida, prezando demais sua independência. Para ele ficou claro que Aline queria dele uma responsabilidade de pai, uma presença constante, a partir do próprio parto de seu filho, a que ele não comparecera. Chamou-me na biblioteca para desabafar comigo:<br />—Alma, o que está acontecendo com Aline? Está começando a se comportar como uma burguesa cobradora. Lembra-te da Solange? Pois é! Aquilo! Não suporto isso! Nunca prometi nada, a não ser registrar meu filho e aparecer de vez em quando. Vocês mulheres, tão maternais, que criem o bebê, e eu dou uma supervisionada, por cima, para que nada falte! Estamos combinados? Gostava mais dela quando só queria meu esperma!<br />Quase dei uma bofetada em meu irmão. Aquela última frase passara do ponto e soava quase cafajeste, não fora a franqueza absoluta e o cinismo sincero e corajoso que era a marca do meu irmão, que eu costumava apreciar. Mas respondi, pondo panos quentes:<br />—Rôdo, meu querido, não leve em consideração a atitude atual de Aline. É uma atitude pós-parto, com algum atraso. Ela se magoou por não teres vindo para assistires o nascimento do teu filho. As recém-paridas ficam muito sensíveis e precisam da proteção do macho. Isso é uma exigência de seu inconsciente profundo, de sua ancestralidade. Talvez do tempo das cavernas, quando um grande urso ou um tigre de dentes de sabre poderia entrar pela abertura. Nós mulheres continuamos com dificuldade para manejar o tacape, que nos parece muito pesado. Tu sabes...<br />Rôdo riu e me abraçou, já descontraído:<br />—Alma, Alma, continuas a mesma, sempre com as tuas metáforas, ou com tuas anedotas poéticas. Eu te adoro, sabias? Contigo sim, eu queria ter um filho, desde criança. Mas sei que nasceria um monstrinho, por todas as razões, não é mesmo? Que pena! <br />Dei-lhe um tapinha no rosto e nos abraçamos de novo, ficando muito tempo assim olhando-nos nos olhos e dando beijinhos na boca como dois namorados, até sentir o grande falo de meu irmão erguendo-se lentamente entre minhas coxas, quase arrepanhando-me as saias. Então, a custo, balançando a mão, com um assobio, e dando uma risadinha meio constrangida, bati em retirada. <br />______________________________________________<br /><br />Aline durante algum tempo chorava por qualquer coisa, estava hipersensível, mas ao mesmo tempo feliz com o nosso bebê. Eu a cobria de carinho, a ela e ao nosso Marco, criança linda e risonha, cujo semblante revelava paz e conforto, de um modo geral, embora tivesse suas pequenas crises eventuais de cólicas pelo leite, ou qualquer outro fator imponderável, que nos deixava a todos atormentados e aflitos, principalmente Aline, como mãe. Mas isso tudo era normal, e a vida na estância transcorria agradável, pois todos nos gostávamos profundamente, e estávamos conscientes disso. Gostar é ótimo quando se ama. É uma palavra que revela afinidade e tolerância. Minha amiga estava realizada, na verdade, com seu bebê, e foi amansando diante da nossa complacência, e aos poucos voltou a ser aquela Aline adorável, de ótimo temperamento, que me conquistara desde o primeiro dia, quando chegou no meu estúdio, contratada por mim, para posar para os meus quadros, na verdade para suprir minha própria carência e solidão dos primeiros tempos no meu auto-exílio paulista, como já contei no livro “Contos da Alma”, no conto que leva o nome dela, e no meu primeiro ciclo de Sonetos.<br />Mas mesmo assim, diante da maternidade poderosa de Aline, eu me afastei um pouco e voltei a ser a artista solitária, fazendo longos passeios sozinha, como se fosse o macho da caverna, com a diferença que trazia dessas excursões, pequenas flores dos prados, ou pedrinhas graciosas, como presentinhos para o Marco. Na verdade eu me sentia supérflua diante do bebê, e mesmo de Aline. Talvez nosso ciclo e minha missão tivessem terminado. Comecei a pensar assim.<br />Rôdo fora novamente viajar, e desta vez, Laís não quisera acompanhá-lo. Ela alegara simplesmente cansaço de tantas viagens. Na verdade Laís se tornara mais frágil e assustada, depois daquela grave ocorrência, que ela continuava ocultando de Rôdo e que, recalcada, minava o seu relacionamento. Percebi também que ela queria ficar comigo, como se apesar de tudo, se sentisse mais protegida ao meu lado. Essa guria me amava, e começou a ficar gradativamente mais presente em meus pensamentos que a própria Aline. Eu também a amava. Com a chegada do verão recomeçamos a tomar banho juntas e a fazer longos passeios. Ela voltou a querer dormir comigo, na minha cama, o que fez uma noite, sem cerimônia, saindo do seu quarto e sorrateiramente metendo-se nua sob meus lençóis como há tempos atrás. Aline não ocupava mais o mesmo quarto que eu, com o berço do bebê, pois acordava de madrugada para dar de mamar. O caminho estava livre para Laís, embora nos primeiros tempos tivéssemos desfrutado de uma gloriosa ménage-a-quatre, que agora não era mais possível. Tudo são ciclos. <br /><br />FIM DO SEGUNDO CAPÍTULO DE "O SANGUE DA TERRA"<br /><br />___________________________________<br /><br /><br />Alma Welt<br /><br />O Sangue da Terra<br /><br /><br />(Capítulo terceiro)<br /><br />“O Condestável Gottfried”<br /><br /><br />O condestável Gottfried suspendeu a caçada, entregando sua balestra ao seu escudeiro e estendendo a mão enluvada, apanhou o bilhete que lhe trazia um pajem que chegara a galope. Leu, e em seguida amassou o bilhete, e com ele cerrado no punho deu rédeas ao cavalo, que por sua vez galopou de volta ao castelo.<br />O fidalgo, visivelmente irado, cruzou a ponte levadiça a galope, e apeando do cavalo ainda em movimento, atravessou parte do pátio, espantando as galinhas, e saltando alguns degraus adentrou o amplo portal, e a passos largos, como um furacão, foi direto à cozinha, onde encontrou Lady Margareth, a inglesa que desposara, depois de um tempestuoso caso diplomático que incluíra paixão e intrigas palacianas, e ali em frente aos cozinheiros, copeiras e outros serviçais, homens e mulheres, agarrou brutalmente sua esposa que quis esboçar um sorriso, mas logo assustada e horrorizada, foi virada de costas e inclinada sobre a grande mesa da cozinha, teve sua ampla saia e as suas sete anáguas levantadas e suas brancas nádegas expostas. Retirando seu imenso membro rubro e vibrante, da braguilha estourada, o duque enterrou-o de imediato e brutalmente no ânus rosado de sua mulher, que soltou um imenso grito, sodomizando-a, ali, na frente da criadagem. Depois do violento orgasmo, agarrou-a pelos longos cabelos ruivos e arrastou-a pelo salão e corredores, até o quarto, onde empurrou-a sobre a cama de dossel, desfigurada e em lágrimas, atirando-lhe por cima o bilhete amarfanhado, em seguida retirando-se imediatamente, sem nenhuma palavra, cerrou a porta, trancando-a por fora, à chave. <br />Lady Margareth engravidou depois daquela noite, e durante toda a sua gestação, corria no palácio, principalmente entre a criadagem, que fora fecundada pelo ânus, coisa que muitos testemunharam, e que a criança seria, portanto, “filha de Sodoma” e nasceria, literalmente “por ali.” Ao nascer, a criança foi arrancada aos braços da mãe e entregue a um casal de camponeses para que a criassem longe dali, mas ainda em terras do duque. <br />Minha avó Frida, que eu considerava uma espécie de bruxa, contou-me esta estória quando eu tinha doze anos, sem maiores considerações pela minha inocência, para explicar as origens camponesas de nossa família, que seria descendente, assim, de um duque e “condestável”, como ela o designava, justificando nosso retorno à posse de terras, embora tão distantes daquela Alemanha medieval onde estava a origem de tudo. Nunca saberei se ela inventava aquilo, mas o detalhe da sodomia me impressionava sobremaneira e presumo que o grotesco daquela cena se devia a uma necessidade de minha avó de rebaixar tão alta linhagem, para tornar mais verossímil a sua estória. Ela queria dizer que, de qualquer maneira, éramos de linhagem espúria, pois nosso antepassado tinha sido gerado e parido “por trás”, como os criados e camponeses acreditavam.<br />De qualquer maneira, qualquer que tenha sido a verdadeira história das origens da nossa família, eu não podia deixar de admirar instintivamente o cunho folclórico de tudo aquilo, e sobretudo, a veia satírica de minha avó, seu amor do grotesco, que ela evidenciava entremeando sua narrativa com gargalhadas finas, cacarejantes, que mostravam seus poucos dentes na boca horrenda e murcha. Eu tinha certeza que estava diante de uma bruxa, mas permanecia fascinada. <br />Muitos anos mais tarde, vim a saber que aquilo era possível, senão provável, pois o esperma de um homem corria longe, na sua procura do óvulo, e escorrendo sobre a vulva, a partir do orifício anal, poderia fecundar a mulher, e que isso ocorria mais freqüentemente, até hoje, do que as pessoas supunham. Na adolescência tive um período de medo de sentar-me na banca da privada, pois amiguinhas da escola me diziam que se podia engravidar, se um homem tivesse se sentado ali primeiro, sobretudo se o assento ainda estivesse quente. Tais superstições, todas com uma pequena base real, poderiam ter assombrado a minha infância e pré-adolescência, não fora a sabedoria de meu pai, que desvelava e explicava todos os fenômenos da natureza, sem roubar-lhes a poesia e mesmo a quota de mistério, subjacente a toda vida do homem sobre a terra. <br />Entretanto, apesar do caráter picaresco daquela estória, minha avó também queria embasar um pequeno mito corrente na família, e estendendo aquela sua mão ossuda, que parecia uma garra de pássaro, e tocando meus cabelos dourados, e minha face muito branca, disse, fechando a narrativa:<br />—Alma, tu és a prova da parte nobre da nossa linhagem, com tua aparência de princesa, assim como o Werner é a própria imagem do Condestável. Quanto a Solange e Lúcia, são a parte camponesa. O Rudolf, teu Rôdo? Bem, este é um caso à parte, que te contarei outro dia. Agora vai, vai princesinha, brincar no pequeno reino do teu jardim, que te coube, afinal. <br />___________________________________________ <br /><br />Eu me dividia entre os cuidados à Aline e ao bebê, que precisavam de mim, como mãe, e à Laís como nova amante, eis a verdade. Aline via que Laís passara para o meu quarto e para o meu leito, de uma vez, mas conformou-se depois que eu lhe disse:<br />—Aline, querida, não quero ciumeiras e disputas entre nós três. Lembra-te quando eu te dividia com o Pedro? Pois bem, agora tu me divides com Laís. Podemos ser felizes todos nesta casa, se jamais cultivarmos os vícios burgueses de exclusividade e egoísmo. Lembra-te que somos criaturas de exceção! Sou uma artista e não perco tempo e energia com disputas e ciumeiras. Lembra-te, esse é o nosso pacto, desde o início da nossa relação. Minha querida, eu nada te roubarei, do amor que sinto por ti e pelo bebê. Se pudermos voltar a reunir-nos todas no mesmo leito, como naquela noite, que glória será, não é mesmo?<br />Aline, então, abraçou-me e beijou-me apaixonadamente, como há muito não o fazia. <br />Entramos, depois disso, num novo período feliz, quando nossa sensualidade chegou ao auge. Eu tinha as duas, novamente no meu leito e freqüentemente dormíamos, as três, abraçadas na larga cama que instalei no quarto de Aline para vigiarmos o bebê ou acordar quando ele chamasse com seu choro, para as mamadas. Mas confesso que fazíamos isso apenas alguns dias por semana, pois acordar toda a noite com o choro do bebê me deixava exausta. Nesses dias, quando isso acontecia, eu levantava-me antes de Aline, que ficava preguiçosa com minha presença ali, para fazer o bebê calar, pondo-o para sugar o meu seio, que aos poucos começou, talvez por somatização, a secretar uma espécie de colostro, que aliviava o bebê por um minuto, antes dele novamente manifestar sua frustração e fome, mas dando tempo para Aline conseguir erguer-se da cama. Mas isso, desta vez não produziu mais ciúmes em Aline, que ficou, surpreendentemente enternecida. Mas a primeira vez que isso aconteceu, vendo aquele arremedo de leite escorrer dos meus seios, eu fiquei um tanto abalada, pois veio, de repente, à minha mente uma memória profundamente recalcada, que nunca revelei antes nos meus textos, mas que resolvi fazê-lo agora: minha filha perdida, Psiqué, morta com menos de dois meses de nascida, fruto do meu amor por Gino, o violinista, filho do “maestro liutaio” Bertellazzi,, e do qual contei nossa história na novela “Narciso”, da “Trilogia Mítica”, inédita, e que termina com a descrição do meu parto. Nunca quis mais falar disso, que me fez chorar por um ano inteiro antes de procurar, afinal, alguém para amar, para me salvar, e que veio a ser justamente Aline, que escolhi a dedo num cadastro de modelos, por ser mulher, bela e modelo nu de pintores, como narrei nos meus “Sonetos da Alma”, e depois no conto “Aline”, já publicado. <br />Como dizia, meus seios, apesar de pequenos, ficavam doloridos e vazando esse líquido estranho, que não chegava a ser nutriente, para o pobrezinho do Marco. Esse fenômeno, perturbador, no início, e logo enternecedor, não durou muito, naturalmente, mas fez-me novamente desejar, por minha vez, ter o meu próprio bebê. Só que eu não podia confiar em homem nenhum e não podia contar com Rôdo para isso, naturalmente. E eu comecei a devanear, com a idéia de voltar a ser mãe, a gestar, mesmo, dentro da minha própria barriga. <br />Mas muita água teria que correr antes disso ser novamente possível.<br /><br />__________________________________________________ <br /><br />A avó Frida continuou a contar, durante um período, a pedido meu, as histórias do Condestável Gottfried e da sua pobre esposa inglesa Lady Margareth, que para o resto de seus dias foi possuída somente pelo fiofó, e a seco. É claro que com o tempo, ela também, somaticamente começou a secretar um fluido lubrificante, por ali, o que amenizou as coisas para a coitada. Minha avó ria tanto quanto eu com aquela estória, que desconfio que ela tinha inventado inteiramente, e começo a suspeitar que foi dela que herdei minha imaginação literária, e meu humor satírico, que não exploro muito, mas já denunciado por alguns. <br />Verdadeiro ou não, não importa, o mais incrível quanto àquela lady, foi ela ter tido muitos filhos, depois daquele primeiro entregue aos camponeses; e pelo fato de que as coisas não se repetem sempre da mesma maneira, a tal teoria do escorrimento de sêmen, não colava mais, o que nos faz deduzir que o responsável por aquelas inseminações continuava sendo o desconhecido amante de Milady, que não parecia nominalmente na estória e cuja identidade permanece um mistério. O fato é que o duque passou a ter uma fama de sodomizador emérito, a quem as mulheres, que tinham dificuldade de conceber, recorriam em peregrinação, vindas de longe, de outros castelos. Na tardou a começar a receber também camponesas, e por isso foi considerado muito caridoso e magnânimo, sendo que essas criaturas mais rudes freqüentemente eram trazidas pelos seus próprios maridos estéreis, e nessas ocasiões eram recebidas no celeiro do duque, sobre a palha, para que o cenário e o leito adequado as ajudasse a conceber. <br />Diante da minha divertida estupefação, afinal, de guria de doze anos, minha avó revelou o segredo daquilo. Tudo não passava de um truque do duque que amava aquela modalidade, a de Sodoma, e fazia parceria com o amante de sua mulher, já que ele mesmo era estéril. Com isso, as mulheres saíam coniventes com o truque, para poderem se vangloriar, depois, da estirpe nobre de seus rebentos, pois o cavaleiro anônimo era de fato plebeu, camponês mesmo, mas bonitão e de impressionante virilidade e fertilidade, possuindo uma ferramenta estupefaciente e abismal.<br />Louvado seja Deus que inspira no homem soluções para todos os problemas! <br />______________________________________________<br /><br /><br />Com as crianças nos rodeando, felizes, nós três, Aline Laís e eu, tínhamos a nossa ménage, que não escondíamos delas, confiantes de que a nossa pureza e autenticidade não destoariam, naquele contexto familiar inusitado, mas profundamente saudável, que construíamos instintivamente. Quantas vezes, as crianças invadiam nosso quarto, de manhã bem cedo, subindo na nossa cama, onde estávamos, as três, ainda mal despertas, nuas sob os lençóis! Patrícia, por emulação, querendo se sentir mais próxima e também mais mulher, às vezes entrava debaixo dos lençóis conosco, o que me produzia um ligeiro escrúpulo, que eu tratava de disfarçar. Afinal, nós três, mulheres feitas, éramos amantes mesmo, parceiras sexuais bastante assumidas a essa altura, o quanto é possível sê-lo, no ambiente provinciano de uma estância, no extremo sul desse nosso país preconceituoso.<br />Se Rôdo estivesse aqui, provavelmente estaríamos formando o nosso quatrilho, como há algum tempo atrás. O importante era sentirmo-nos felizes e irmanadas, exercitando a sensualidade pura dos nossos jovens corpos, saudáveis e belos. Nós nos sentíamos como jovens espartanas ou atenienses, e queríamos brincar no nosso jardim florido, totalmente nuas, no meio das crianças, naquele verão maravilhoso. Mas isso, infelizmente não era possível, dada as presenças dos peões, de Galdério e da própria Matilde, que embora percebesse, mantinha-se discreta quanto essa nossa forma de ligação e amizade sem peias. Mas, um dia, ela me disse:<br />—Alma, minha guria, deves tomar cuidado com o que dizem, de ti. Desde o teu julgamento que estás na berlinda, na boca do povo, que te absolveu, é verdade, porque se comoveu contigo. Mas aqui, perante esta peonada, deves tomar mais cuidado do que com o povo urbano. Sabes o que dizem, não sabes? Abanam a cabeça quando te vêm, murmurando: “Que lástima, tão bela... não gosta de homem, que homem a quererá a sério? É mulher para uma só noite”. Vês, Alma, deves tomar cuidado, para não te desrespeitarem. <br />Fiquei furiosa. Quase atirei algo que tinha nas mãos. Gritei, pela primeira vez na vida, com minha querida babá:<br />—Que falem, que falem! Mesquinhos! Nada lhes devo! Não sou para o bico de nenhum deles. Eu amei um artista, um virtuose do violino, um Orfeu, um deus grego! Não deixo por menos! E que homem, senão Rôdo, chega aos pés destas duas mulheres? Ai! Não agüento a vulgaridade!<br />Matilde ficou chocada com a minha reação. Seus olhos se encheram de lágrimas como os meus. Abraçamo-nos, enquanto eu explodia num pranto copioso. Ela me fizera ver a realidade do mundo lá fora, da maldade do mundo que eu tão facilmente esquecia. <br /><br />_______________________________________<br /><br />Lady Margareth estava já no seu quarto rebento, e continuava andando como pata choca, após os longos períodos de gravidez. O povo dizia que era pela continuada técnica de Sodoma, e que seus filhos todos seguiriam o manual. Mas a verdade é que, talvez por aquela razão, aquele era um ducado feliz, pois tal prática, de um jeito ou de outro aproximava o grão-senhor do seus súditos, embora por trás, coisa que não acontecia em nenhum outro feudo.<br />Então, após longo período de paz, em que a população do feudo cresceu graças ao Grande Sodomita, estourou afinal a guerra necessária, que deveria evitar a fome, com a supressão de expressiva parte da população jovem, e a reacomodação dos mais espertos, senão dos mais aptos. A batalha de Wolfsburg, também chamada a batalha dos lobos, pois esses foram os que mais lucraram, com o campo de vinte mil mortos e feridos, o Sodomizador-mór, como também era chamado, venceu seus inimigos e submeteu-os a todos à especialidade que o consagrara, o que motivou uma revolta para além dos seus domínios, que acabou por derrubá-lo politicamente, já que pelas armas o vencedor era ele. O rei da Prússia exigiu sua demissão como condestável, e que confinasse sua prática a intra-muros do seu castelo. E que fosse mais discreto, desistindo de instituí-la como tradição de seu feudo.<br />O duque e seu ducado iniciavam sua decadência. Gottfried começou a definhar, com o término da Era Feliz, que ele, paradoxalmente, iniciara com a suposta humilhação pública, ou de copa e cozinha, de sua mulher estrangeira, de ruiva cabeleira e penugem. E alvas nádegas. <br />Não sei, realmente, se esse episódio me foi também contado por minha avó Frida, ou se eu o inventei. De qualquer modo, tem tudo para ser verdadeiro. <br />__________________________________________ <br /><br />Patrícia me procurou no pomar, para ter uma conversa sobre algo que a inquieta. Olhei seu lindo rosto, de uma perfeição comovente, com seus doces olhos de gazela, transparentes, cuja expressão guarda aquela pureza infantil, que os seres humanos não deviam perder nunca. Ela disse: <br />—Tia Alma, queria lhe fazer uma pergunta. Mas não sei como fazê-la... é sobre ti, Aline e Laís. Foi algo que Pedrinho me disse, que não entendi direito.<br />—Querida- eu disse- o quê teria o Pedrinho dito, que te perturbou? Foi isso, o que ele disse te perturbou? Conta-me, exatamente, suas palavras, para eu poder te responder. <br />—Ele disse, tia Alma, que Aline é tua namorada, e que Laís também é. Como pode ser isso, tia Alma? Pedrinho está mentindo, não é?<br />—Não, querida, não está. Pedrinho é um amor, nunca mente, tu sabes, e gosta muito de todos nós. Elas são mesmo minhas duas namoradinhas queridas. Não vês como a gente namora? Quando você for moça mesmo, isto é, adulta, você vai ver que há muitas maneiras de namorar e que a gente pode amar muitas pessoas, dos dois sexos. Desde que sejam bonitas, principalmente por dentro. Se não, porquê iríamos namorá-las, não é mesmo? <br />Patrícia sorriu, deu-me um beijo, mas eu senti que a minha resposta não foi totalmente satisfatória. Pedrinho, como típico menino, embora muito puro, teve ter feito no mínimo um ar de mistério, ou de descoberta de um segredo, ao dizer aquilo à sua irmã. E portanto, ficara, no ar, um tom de coisa proibida, que minha resposta não podia levar em conta, para não levantar a lebre. Patrícia não estava pronta para saber que sua tia perpetrava algo, que grande parte do mundo condenava, às vezes mesmo, como abominação. Como levantar questões tão complexas, diante de um bichinho tão ingênuo, puro e despreparado como a minha sobrinha? Solange, a tinha preservado do contato com as realidades da vida, por pura dominação, pois não conseguira poupá-la do mais sórdido: sua relação com um homem sem caráter, um criminoso, sem escrúpulo que ela por fraqueza ou ambição pusera dentro de casa, junto a seus filhos, trocando afinal insultos violentos nas horríveis discussões, diante deles, que lhe causaram a morte, chocante, na frente daqueles anjinhos. Mas, a verdade é que, eu percebi naquele momento, que não tinha uma boa resposta para minha sobrinha. Nem tudo na vida tem real explicação. Há um mistério persistente, na vida e... no coração humano.<br /><br />_______________________________________________ <br /><br />Passamos um verão delicioso, onde reinou a harmonia, entre seres que se amavam, conscientemente, e que sabiam desfrutar as benesses e privilégios do destino. Rôdo telefonava e mandava cartões de diferentes partes do mundo, e logo de regiões mais remotas, se é que se pode hoje dizer isso, da Rússia, do oriente médio e depois do extremo oriente. Eu dormia as minhas noites, feliz, nos braços de minhas duas namoradas, observando também elas se amarem cada vez mais, o que me parecia um milagre alcançado. Mas... havia uma sombra que me incomodava, que se insinuava em meu sono, e que me fazia acordar algumas noites, sobressaltada, com o coração disparado. Pesadelos que se desvaneciam antes de eu poder me lembrar deles, mas que eu sabia a que se referiam. Uma noite senti as chicotadas nas minhas costas e no meu bumbum. O monstro me chicoteara em meu sonho. Outra vez foi pior: dolorosamente estuprada, meu estuprador tinha dupla face, que misteriosamente eu não via, e no entanto reconhecia, a fusão dos rostos de Pedro e Geraldo. Acordei sobressaltada, com o coração acelerado, e colocando instintivamente minha mão sobre meu sexo, verifiquei aterrada, revoltada, que estava molhada, e não era de xixi. Meu corpo me ironizava, minha alma me traía. Como poderia sentir qualquer prazer naquela intrusão, naquela violência, naquela invasão de minha privacidade mais íntima? Eis aí, outra dessas coisas para as quais não tenho explicação. Comecei a ansiar pela volta do meu irmão, pois sempre pensei nele como meu protetor, aliás, não sei bem porquê, já que nunca estava por perto quando fui atacada. Talvez por que Rôdo, no meu inconsciente, funcionou sempre como um arquétipo da masculinidade, já que o meu pai era mais do que isso, era um deus. <br />Aline, que agora sabia do ocorrido com Pedro, me abraçava apertado, nesses momentos, condoída, com o coração apertado, e revoltada com seu ex namorado, dizendo: “aquele monstro,.. ele me paga!”. Laís chorava junto comigo, lembrando-se da sua horrível violação. Como podíamos, na verdade ser completamente felizes, com essas memórias? Mas, a verdade é que esses pesadelos estavam se tornando mais freqüentes por se tratar de uma premonição. Eis porque voltavam agora, num momento que tinha aparentemente tudo para ser feliz. <br />Sim, aconteceu. Geraldo reapareceu finalmente, na estância, como eu temia, pegando-nos, no entanto, mais uma vez desprevenidos.<br /><br />__________________________________________ <br /><br /><br />Eu passeava, às vezes, sozinha, pelos arredores do casarão, principalmente quando queria escrever poesia. Procurava o bosque, que me inspirava com seu silêncio sonoro, cheio de agradáveis modulações, de insetos, e dos raios de luz filtrados entre as copas, que faziam ver o ar saturado de pólen, dançando infinitamente, indo e vindo do nada, como a própria alma. Eu lançava novos ciclos dos meus sonetos, num estado de espírito próximo do sublime, somente aquém daquele instante indizível do orgasmo, mas na verdade, diferente, pois extenso, duradouro. Os momentos de Inspiração, em que a alma respira o ar puríssimo do mundo Ideal! <br />Foi num momento assim, tão raro e fecundo, que, no entanto, fui apanhada pelo mal, mais uma vez, desabando num súbito abismo que era interior e exterior ao mesmo tempo. Meu cunhado me surpreendeu mais uma vez, com o revolver na mão, apontando-me, vindo das sombras do seu inferno intruso, de seu reino do mal. Meu coração quase parou. Eu estava horrorizada, aquele homem abominável voltara e me apanhara numa armadilha, afastada de casa, num lugar ermo, distante do casarão. Eu quis correr, mas ele me agarrou pelo braço. E puxou-me para junto de si, dizendo com sua boca detestável muito junto à minha:<br />—Peguei-te novamente, cunhadinha! Agora não me escapas, vais me pagar definitivamente tudo o que me deves. A começar pelo teu corpo, que tanto me tentou, sempre, como uma maldição! Agora estamos sós, não há ninguém que se interponha, nem sequer com um olhar. Ninguém verá! Ninguém para te socorrer. Vais saber o que é um homem, lésbica safada! Vais aprender a gostar!<br />Eu me senti, mais uma vez perdida e horrorizada, quase desmaiei de medo. Geraldo estava com o cabelo todo branco, envelhecido de rosto, mas com o mesmo ríctus detestável de desprezo, que era a marca de suas feições. E a mesma força física, que me fazia debater-me, impotente. Eu esmurrava seu peito e mesmo sua face, sem resultado, a não ser espicaçá-lo mais. Ele me lançou sobre o solo alcatifado de folhas secas, úmidas e frias. Eu me debatia, empurrava seu peito chorando e gritando, num estado de terror. E... mais uma vez me urinei toda, como uma criança num pesadelo. Eu estava, ainda por cima, sem calcinha debaixo de minha saia leve, indiana, vaporosa, como usava naqueles dias, menstruada, quando me afastava do casarão, para curtir meu sangue escorrendo pelas minhas pernas, com volúpia narcísica, enxugando-me, a espaços, com um grande lenço vermelho, que enrolava na cintura, para disfarçar o sangue, ao meu retorno. Agora isso se voltava mais ainda contra mim. Eu, não sabendo, tentei usar isso em minha defesa. Gritei, balbuciando:<br />—Geraldo, Geraldo, não! Estou menstruada, vais sujar-te. Fiz xixi, estou imunda! Não vais gostar. Deixa-me! Não! Não! <br />Ai! Aquilo, aquelas palavras só fizeram aumentar o seu desejo, e eu já sentia o seu membro, enorme, suspender-me a saia, enquanto com uma mão ele me segurava pelos cabelos e com a outra, me rasgava a blusa e agarrava o meu seio, com enorme força. Eu gritei de dor, enquanto seu pênis, forçando-me, adentrou minha vagina, infelizmente ensopada de sangue e xixi, o que facilitou sua intrusão. Ele começou a mexer os quadris, vertiginosamente, com grande rapidez, e explodiu seu sêmen espúrio dentro de mim. Eu quis morrer. Dei um soluço. E um longo grito. Agora sim, me sentindo suja, conspurcada, larguei-me, cessando de me debater, enquanto ele ainda se mexia, agora lentamente, para curtir a lambança que se passava ali em baixo. Um estranho silêncio caíra sobre o bosque, eu incrivelmente reparei, naquela situação de derrota e humilhação supremas em que estava. Invadida, suja, usada. Os insetos e passarinhos tinham cessado seus cantos e eu ouvia somente os estalidos melados, obscenos, da minha vagina sendo bombeada, curtida pelo monstro lúbrico. Então ele retirou seu membro de dentro de mim, e mostrou-o, coberto de sangue e esperma, para humilhar-me com aquela visão, e limpou-o em mim, esfregando-o no meu rosto, na minha boca, enquanto gargalhava. Cerrei os olhos como uma criança diante do pesadelo, e ouvi um tiro. Abri os olhos imediatamente e vi o corpo de Geraldo, seu cabelo branco no ar, desabando sobre mim, o choque de seu peso quase esmagando-me. Gritei mais uma vez, empurrando aquele corpo, retirando-me penosamente de debaixo dele, aos gritos, virei-me, de joelhos, e vi o meu salvador, o jovem bandido do seqüestro, da flagelação e da casa de Júlia, aproximando-se com um rifle na mão. Ele matara Geraldo, afinal, o sangue do monstro empapava o meu vestido, confundindo-se com o meu próprio. Eu, imunda e desfigurada, estendia os braços para aquele homem, o cavaleiro do Walhalla, que mais uma vez chegara tarde, e no entanto... me salvando. <br /><br />__________________________________________ <br /><br /><br />As estórias do Condestável Gottfried cessaram. Mas elas tinham servido para me aproximar de minha avó, que eu agora não via mais como uma bruxa, mas como uma druidisa ou bardo de saias, que narrava as sagas picarescas do nosso passado germânico e celta, já que havia sangue inglês e irlandês, envolvidos nas nossas origens familiares. Não muito tempo depois disso, eu iria velar seu corpo no salão da estância, toda de preto no caixão, com seu grande nariz adunco, quase encontrando a ponta aguda do seu queixo proeminente, e sua boca sumida, sem lábios, enrugada, que completava o retrato de feiticeira que me impressionava tanto, e que eu, de certa forma, admirava. Seu longo cabelo branco (ela nunca fizera o coque usual das velhinhas), estava esparzido sobre os seus ombros esqueléticos e misturava-se às flores. Eu olhava fascinada, embora não vertesse uma lágrima, pois minha avó não me comovia, estranhamente, pois eu a associava ao sentido humorístico da vida, achando, mesmo, acreditem, que naquele momento, a melhor forma de homenageá-la seria contar uma anedota histórica ou folclórica, coroando o seu fecho com uma grande gargalhada coletiva. Esse pensamento, me fez sorrir ligeiramente, o que foi notado por minha mãe que me deu um ligeiro tapa no rosto. Eu nunca seria compreendida por minha mãe. Como poderia, afinal, eu, a exquisitinha alegre, a extravagante, ao seu ver, uma excêntrica precoce apesar de minha ingenuidade encantadora, deixar de ser incompreendida por aquela criatura convencional que... no entanto, me amava, isso sim, incompreensível? Diante daquele tapa, me comovi finalmente, mas comigo mesma, com minha solidão em relação à minha mãe, da qual arranquei um movimento de cabeça aprovativo às minhas primeiras lágrimas, adequadas, naquele velório da nooa bizarra matriarca, estranha... e querida, afinal. <br /><br />_________________________________________ <br /><br />Meu salvador, o jovem bandido, estendeu–me a mão para me erguer, pois estava ajoelhada e atônita. Mas não consegui manter-me de pé e desabei. Ele então, pousou o rifle na relva e ergueu-me como uma pluma em seus braços, e logo pôs-me nas costas dobrada de bruços sobre seu ombro, e apanhando novamente a arma com a mão esquerda, saiu andando comigo, para fora daquele bosque. Ele ia direto para o nosso galpão, para apanhar uma pá, ele dizia, enquanto andava. Pedi para pôr-me no chão, pois estava meio de cabeça para baixo, e sentia-me enjoada. Ele então me fez deslizar de seu ombro e colheu-me nos seus dois braços e continuou a carregar-me assim, digamos, de maneira mais cômoda e... romântica. Exausta, apoiei o rosto no seu largo peito e adormeci, sentindo-me afinal protegida, como uma criança. Dentro do galpão, despertei quando ele pousou-me sobre a palha e pegando uma pá, disse-me:<br />—Senhorita Alma, fique aqui, logo virei cuidar de ti. Agora vou enterrar o corpo, para que não o encontrem.<br />Caí novamente num sono profundo, de depressão, eu acho. Quando voltei a mim, despertada por um ligeiro sacudir em meu ombro, revi o meu salvador e ainda tonta, ou deprimida, perguntei-lhe o seu nome.<br />— Meu nome é Günter– ele revelou — e perdoe-me ter chegado tarde. Mas creio que ele iria matá-la, senhorita. Ele mereceu o que lhe coube. Estive no rastro dele durante meses, para terminar o serviço, desde que soube que escapara apenas ferido do primeiro tiroteio. Agora, não precisas mais temê-lo, nunca mais. Acabou. Está debaixo da terra e só eu sei onde. <br />—Günter,—eu disse—eu preciso vomitar, por favor, erga-me para que me apóie na balaustrada.<br />Ele ajudou-me a vomitar, e eu percebi que o fez com solicitude e quase com ternura. Esse homem era surpreendente, e eu me perguntava apenas porque chegava sempre tarde, e cuidava de mim depois de eu ser vitimada, nunca antes. Era um homem frio, na verdade, um matador, isso é o que ele era! Eu ter sido estuprada era um detalhe; sua meta pessoal, matar Geraldo, provavelmente por razões que eu estava longe de saber, era a sua missão, afinal cumprida. Eu recomecei a chorar, dizendo:<br />–Günter, estou machucada, estou muito suja... veja, de sangue, preciso me lavar. Tu poderias me levar até o riacho, para eu banhar-me, pois não posso chegar assim no casarão. Não quero assustá-las, às gurias e às crianças. Preciso chegar o mais composta possível, não posso contar a eles o que aconteceu. Por favor, carregue-me novamente, até o rio. Ai! Vou vomitar novamente.<br />Eu me sentia péssima, mas ele me carregar, novamente, foi um grande reconforto, e aninhei-me em seu peito, enquanto ele caminhava. Aquilo era a única coisa que poderia me fazer bem, agora, entregar-me como uma criança nos braços poderosos de um homem forte, que cuidaria de mim. Confesso que queria que ele me lavasse como um bebê... Eu senti que se ele fizesse isso, eu estaria salva, eu me recuperaria para os homens, para o ser humano.Do contrário, eu correria o risco de encolher, de virar-me para dentro, eu senti assim. <br />Günter carregou-me, ao crepúsculo, e eu me admiro hoje, de ninguém notar as nossas andanças, eu, nos braços de um homem enorme, e mais ainda do que se seguiu, no riacho. Aquele homem notável, despiu-me e entrou no rio comigo, completamente vestido, amparando-me dentro d’água, e lavou-me, sim, lavou-me inteira segurando-me como um bebê numa banheira. E eu me salvei, pois instintivamente me entreguei completamente àquele banho, fazendo inclusive que enxaguasse com as mãos enormes, carinhosas e suaves, minhas partes mais íntimas e doloridas. Só assim me salvei. <br /><br />___________________________________________<br /><br />Eu voltei ao casarão com o vestido molhado, lavado no ribeirão, mas nos braços do bandido que todos ali já conheciam de vista. Isso assustou-os muito, mas eu pedi que não se alarmassem e não o entregassem. Contei a todos, reunidos na sala, somente parte da história, omitindo naturalmente o estupro que sofrera. Contei que fora salva de ser morta por Geraldo, no momento em que este ia atirar em mim, pelo tiro certeiro e salvador de Günter, que já uma vez me salvara, episódio que eles já conheciam. As crianças acabaram apertando-lhe a mão. Aline permanecia desconfiada. Ela sentia quando eu lhe omitia alguma coisa. Mas nada disse, apenas olhava Günter com frieza. Pedrinho, menino necessitado de herói masculino, já que para ele a heroína era eu, olhava o jovem bandido com admiração. Os gêmeos, ao saberem que o pai fora morto, estavam confusos, sem saber o que sentir, pois aquele sempre fora ausente, ou brutal. Creio que todos estávamos aliviados. Sentíamos que agora não tínhamos mais inimigos. E que a vida poderia correr novamente, sem sobressaltos. <br />Quanto a Laís, olhou-me nos olhos e reconheceu a sombra do estupro. Sim, a sombra do nosso estuprador comum, e soltou um estranho e longo gemido, que ninguém entendeu, exceto talvez Aline. Nós teríamos que ter uma longa conversa, as três, e elas teriam que me perdoar, pela minha dor, pela minha fraqueza, de mulher, que não podia protegê-las, não podia proteger ninguém, éramos todos carentes e frágeis, ai de nós! Por quê Rôdo não voltava?<br /><br />________________________________________<br /><br /><br />Alma Welt<br /><br />O Sangue da Terra<br /><br />Capítulo quarto<br /><br />Estórias das amadas<br /><br />Nossa vida entrava na normalidade, e estávamos todos aliviados e felizes, de certo modo. Mas, o que significa isso, na verdade? Ser feliz... Será realmente possível, uma vez que todos carregamos uma “caixa preta”, de sofrimentos passados? Essa caixa pesa, com sua tampa fechada. E se a abrimos, os vapores mefíticos e os miasmas das dores passadas são liberados, mas ameaçam nos sufocar, como às pobres Pandora e Psiqué.<br />No dia seguinte ao do estupro, eu tive a minha conversa com Aline e Laís. Eu ainda estava abalada, e ficaria por muito tempo. Assim, minha confissão, se devo dizer assim, acabou sendo dramática, pois choramos muito, abraçadas no final. Aline estava horrorizada, pois nem sequer sabia do estupro de Laís, e tudo veio à tona naquela hora da verdade. Não poderia mais haver segredos entre nós, eu prometi a uma Aline quase furiosa. <br />Eu lutava interiormente para não deixar-me contaminar pela própria dor da minha experiência, quero dizer, para não assumi-la como trauma, se é que isso é possível num caso de violência extrema, como a que me ocorrera. Eu sentia que a essência, o próprio sentido da minha singularidade, da minha história e personalidade, se fundamentavam na “alegria mais profunda do que a dor” nitzscheana, que era como que um legado espiritual de meu pai. Eu não podia sucumbir, ser enfim derrotada por um ser do mal, como o finado Geraldo. Se eu não recuperasse a minha alegria, minha joye-de-vivre, seria a vitória daquele crápula, e eu, Alma Welt, que sentia um certo sentido de missão na minha felicidade e beleza, pois elas embasavam toda a minha obra de artista, tinha muito ainda o que dizer, transmitir ao mundo. Eu sou assim. Tenho consciência dos meus dons e um sentido de compromisso sagrado com eles. Minha sensualidade? Faz parte da minha alegria. Amo o prazer, os prazeres. Sou hedonista confessa. E tenho tesão de viver. <br />Continuei, portanto, a viver o mesmo estilo de vida: o sexo com os meus amores, o meu sexo permeando tudo, todas as minhas atividades, a minha poesia, como meus banhos de rio. A minha pintura, como os prazeres da mesa. A contemplação da natureza, como os prazeres da literatura e da música.. O gosto de chorar pela beleza, pela própria sensibilidade, pela nostalgia e mistério da beleza. Pela suave dor de existir em plenitude, em pureza intrínseca.<br />Mas, dada a estranha recorrência de certo tipo de violência sofrida por mim em minha vida, agressões à minha beleza, e mesmo, insisto, à minha pureza, desde a infância; episódios que venho narrando nos meus livros confessionais, eu sinto que devo meditar e descobrir, se possível, as razões desses fatos terem acontecido e estarem se repetindo até hoje comigo. A razão é uma só: minha feminilidade extrema, quer dizer, a sensualidade assumida do meu sexo, vivido num corpo que é a própria imagem da sexualidade. Quero dizer, tudo em mim, no meu corpo e na minha alma, é feito, construído mesmo, pela natureza, para o toque, o olhar, o olfato, enfim: os cinco sentidos do prazer do outro... e da penetração pelo outro. Estarei fazendo o elogio do estupro? Ou, pelo menos, justificando-o? Espero que não. Estou procurando uma explicação, não um antídoto. O veneno... eu o conheço, não me diz respeito. <br />Com isso, quero dizer que entrei num novo período introspectivo, um pouco mais silencioso, de reflexão, que foi confundido com depressão, pelas gurias. Confesso que o ocorrido comigo deixou seqüelas, claro, pois eu não tinha a mesma segurança desabrida de antes. Eu temia estar sozinha em lugar ermo, no bosque, por exemplo. As meninas quiseram voltar lá para ver se identificavam o “túmulo” de Geraldo. Tanto insistiram que as acompanhei. Mas não percebemos nenhum vestígio, o serviço tinha sido muito bem feito pelo Günter, e não seria dessa vez que identificaríamos o local do enterro do vilão. Melhor assim, eu não estava preparada ainda para qualquer emoção forte relacionada àqueles fatos tão violentos, pois identifiquei o local do meu estupro, e saí correndo dali. O bosque nunca mais seria o mesmo para mim.<br />Quanto a Günter, meu salvador, este ficou escondido na estância por dois dias, somente, para esperar um parceiro que ele chamou por telefone para vir buscá-lo de carro. Nós não o denunciaríamos jamais. Houve uma visita da polícia para fazer as últimas perguntas antes de encerrar o caso, e eles davam Geraldo por morto (eles não sabiam quanto isso era agora verdade), mas alertavam-me para o fato de que havia um dos bandidos seqüestradores ainda foragido. Eles não poderiam imaginar o quanto eu sabia disso... Aliás, confesso que a lembrança daqueles momentos, no rio, me faziam devanear. Nunca um homem tivera aqueles desvelos tão ternos e suaves comigo. E eu ainda sentia seus toques em mim. Como esquecer uma coisa assim. Desejava profundamente que aquele bandido voltasse. Não contei jamais às gurias aqueles detalhes do meu salvamento. Nem tudo pode ser dito entre as pessoas que se amam. E eu amava os segredos, que desvelo somente aos meus leitores sem rosto. <br />Eu via que as minhas meninas precisavam da minha atenção, uma como jovem mãe e a outra, em processo de recuperação do trauma sofrido. Minhas maravilhosas gurias! <br />Laís era uma moça vinda da classe média alta, mas que se afastara da família, um casal de engenheiro e advogada, que tinham um sítio de lazer, nos arredores de Porto Alegre. Seu pai traíra a mãe, que sendo advogada, arrasara o ex-marido nos tribunais, e o perseguira juridicamente tanto, que Laís saíra de casa. Mas essa era, naturalmente, a versão de Laís, escolhida pelo seu amor por seu pai. Ela abandonou a faculdade, o curso de direito, por causa da atuação de sua mãe. E se pôs a viajar de mochila pelo Brasil, e em seguida pela Europa. Rôdo, no seu Porsche, a encontrara numa estrada do sul da França pedindo carona. Ali começaria um romance jovem e descompromissado, a princípio. Ela elevaria seu padrão de aventuras, para os cassinos e pousadas requintadas, e os jogos de pôquer de altas apostas, do seu companheiro, sempre um tanto perigosos, que lhes acarretaram alguns apuros, fugas e perseguições. Mas sempre acreditei que Rôdo nunca roubou no jogo. Seu caráter não permitiria. Era, sim, um bom blefador, e destemido, o que produziu desconfiança ou ciúmes entre jogadores. Assim creio eu. Mas, percebi também, que Laís guardava um segredo quanto a algo ocorrido em Biarritz, que ela não tinha coragem de me contar e que começou a espicaçar a minha curiosidade. Eu haveria de descobrir, um dia, algo perturbador. <br />Aline, por sua vez, tivera uma infância feliz no bairro do Brás em São Paulo, no meio da colônia italiana de seus pais e avós, e me admira que ela não tenha aquele sotaque italianado paulista, falando, ao contrário, um razoável português, baixinho, com voz suave e macia, que é sua característica mais encantadora, um milagre (de Santa Queropita?), dadas as suas origens. Aliás, por isso mesmo, é muito engraçada a imitação caricatural que ela faz da voz e do sotaque de sua mãe e avó. Quanto a mim, a esse respeito, é bom que o leitor saiba que também falo muito baixo e suave, com o mais belo sotaque do Brasil, o da colônia açoriana de Santa Catarina, de minha mãe. Aliás, só por isso, reconheço que deveria ser mais grata a ela, do que demonstro. <br />Mas, voltando a Aline, o fato de se tornar modelo nu, de pintores, só foi tolerado depois de algum tempo, pela família, pelo fato de seu avô materno, Marcantonio, falecido nos anos 80, ter sido um pintor acadêmico, aliás, bastante bom, que usava modelos, para belos nus, dos quais, aliás vi alguns exemplos na casa deles, no seu bairro. Na ocasião da visita, com Aline, presenteei sua simpática avó, muito idosa, com um retrato nu de Aline feito por mim, que encantou a velhinha, que o pendurou imediatamente ao lado de outro nu, dos anos quarenta, que retratava uma amante de seu marido, bastante bonita, e de quem a avó de Aline sabia muito bem a história, segundo minha amiga me contou. Aquilo me pareceu notável, no meio de uma colônia tão tradicional, e com a fama de gelosi, que não costuma tolerar as traições, freqüentemente banhando-as em sangue. Mas isso, segundo Aline, se refere mais aos italianos do sul, da Calábria e da Sicília, o que não era o caso da família de Aline. Não sei. O fato é que dona Giulia, mantinha em sua parede o retrato de uma amante de seu marido, e minha imaginação voou. Infelizmente, Aline não soube me fornecer mais dados sobre aquela estória que deveria ter lances interessantes. Bem, para que serve a imaginação, não é mesmo? Bem posso imaginá-la, e por isso contarei aqui, aos poucos, essa estória familiar insólita, segundo a teoria Novalina da poesia, como “o autêntico real absoluto”. Não haverá meio de não ser verdade.<br /><br />_____________________________________________________<br /><br /><br />No final de fevereiro, Rôdo voltou, sem avisar. Chegou de madrugada no seu carrinho esporte, e entrou no nosso quarto para pegar-nos, as três, na cama dormindo nuas e abraçadas, naquela noite quentíssima. Mas, nossa ménage era duradoura e levantou-se imediatamente em nós, que nos alvoroçamos, felizes. Foi assim: ao vê-lo ali ao pé da cama, sob a luz acesa sem cerimônia por ele, com aquele seu sorriso safadinho, dei um grito de alegria, que despertou as outras duas, e erguendo-me nua, atirei-me em seus braços. Aline e Laís fizeram o mesmo, e todas ficamos abraçadas a ele, que foi arrastado para a cama, embolados, enquanto arrancávamos suas roupas. Que saudade daquele guri! Que saudade do seu sorriso e de seu corpo maravilhoso, másculo, musculoso! Depois da fecundação de Aline, de que todos participamos, não havia mais barreiras ou inibições entre nós quatro. Ele fazia parte de nós. E a alegria por seu retorno confundia-se com a fome de nossos corpos jovens, por aquele corpo mais firme, viril, que tinha aquele atributo complementar, essencial, e enorme, que foi disputado ou dividido entre nós três. Na nossa crescente empolgação, emocionadas e arfantes, quase sem fôlego, fizemos, instintivamente, muitas das variações do Kama-sutra, coletivamente. Felizmente era ainda de madrugada, e as crianças não acordaram com o barulho, os risinhos, e gritinhos que dávamos. E quando caímos exaustos, enlaçados e enroscados, para voltar a dormir, fui a única que fez um esforço para levantar-me para trancar a porta à chave, evitando assim o encontro das crianças, pela manhã, daquela cena que poderia talvez chocá-las ou confundi-las. Congratulo-me comigo mesma por esse esforço, quase sobre-humano, antes de cair exausta, de volta, sobre eles.<br />De manhã repetimos algumas variações, mas preguiçosamente e... foi outra experiência maravilhosa! Cada uma de nós pegou o enorme falo de meu irmão e introduziu nas outras duas, como um brinquedo, mas lentamente, ritualmente, como um abraço, uma recepção de boas vindas, sem mais a intenção do orgasmo. Devo dizer, que estando no meu período fértil, pedi que elas o fizessem, em mim, por trás, bem lubrificada com o caldo delas mesmas. Foi dolorido, apesar disso, devido ao calibre exagerado de meu irmão, que, a propósito, ficou especialmente comovido nesse momento, e não se conteve: ejaculou dentro de mim. Então, chorei de comoção e felicidade, pedindo para ele ficar ali, quentinho, melado, bastante tempo dentro de mim, até escorregar sozinho, amolecido. Foi lindo. Meu irmão tinha sido condignamente recepcionado. <br /><br />______________________________________<br /><br /><br />Naturalmente, depois daquela noite, e manhã, queríamos repetir aquela experiência em todas as oportunidades que conseguíamos. Estávamos altamente erotizadas e felizes, mas tínhamos que disfarçar por causa das crianças. Isso produzia mais excitação e emoção, e assim estávamos vivendo mais intensamente do que nunca. Foi um dos períodos mais gloriosos de nossas vidas, pois avalizada pela experiência comum, eu podia extravasar o antigo e tantas vezes reprimido desejo pelo meu irmão, que agora estava livre, solto e testemunhado pelas minhas amigas, que eram cúmplices e parceiras minhas, nisso também. Era perfeito. Rôdo, percebendo isso, soltou-se como nunca antes comigo, e sua virilidade dava conta ainda das outras duas, enchendo-nos, às três, de seu branco, viscoso e... maravilhoso sumo.<br />Havia ainda os banhos de rio, as cavalgadas nuas, sempre os quatro, e as brincadeiras no galpão, sobre o feno. Vocês conhecem isso: quanto mais fazíamos, mais queríamos fazer. <br />Estávamos nesse período sob a égide do epicurismo, se posso dizer assim. Em épocas assim, perdemos um pouco a perspectiva e as metas de futuro perdem o sentido. Eu não pensava mais em fazer exposições ou planejar edições de meus livros, embora continuasse escrevendo poemas e contos por puro prazer, o que é melhor. Como o ato de criar pinturas ou textos só tem sentido no olhar do outro, isto é, se olhados e lidos, bastava-me ler os meus poemas e mostrar os meus quadros para os meus queridos, que me cercavam, que desfrutavam tudo de mim, para o meu próprio prazer: meu corpo, minha mente e... minha alma. <br />Mas é preciso que eu diga, que para mim, como artista, tudo faz sentido se o meu fluxo criativo não se interrompe. Enquanto estou me expressando o mundo faz sentido, o mundo gira. O desejo está justificado por si mesmo, e a beleza do momento fica registrada, não se perde no tempo e no vazio. O tempo deixa de ser um ralo devorador, e o mundo não é um bueiro de ações automáticas sem sentido. Como escreveu Eça de Queiroz: “A arte é tudo, o resto e nada”. <br />Acompanhando, assim, os lances da minha felicidade anímica e corporal, saíam telas e mais telas, poemas e contos. Resolvi escrever as “estórias das amadas”, ocorridas realmente ou não, com Laís e Aline, pois as verdadeiras estórias são aquelas “do que poderia ter sido”, como disse Fernando Pessoa. Por isso, vou contar aqui mais um pouco da estória da avó de Aline.<br />Dona Giulia mantinha dependurado o retrato nu da amante de seu marido, o pintor Marcantonio de Marco, e isso era um fato corriqueiro, assimilado pela família, que simplesmente não percebia o insólito daquela situação. Aline cresceu sem reparar muito naquele retrato, e foi preciso uma pessoa de fora da família, mas profundamente ligada a ela, como eu, para levantar esse fato como questão. Qual tinha sido a relação de Dona Giulia com aquela bela mulher, amante do seu marido, para que ela mantivesse o retrato na sua parede, junto com outros retratos pintados por seu marido, inclusive os dela própria, desde moça, em diferentes idades? Esse era o mistério, que Aline não sabia me ajudar a desvendar. Então presumi o seguinte:<br />A linda modelo de Marcantonio tinha sido sua primeira amante, o grande amor de sua vida, e posado para ela no dia em que lhe entregou sua virgindade. Isso era visível nos olhos do modelo, naquela pintura, bem como insinuado simbolicamente na imagem de um pote, ou vaso rachado, e com um buraco, mas que tinha uma única rosa vermelha desabrochada, nele, ali, sobre um criado mudo ao lado da cama onde estava sentada o modelo.<br />Bem, esta moça maravilhosa, amada por Marcantonio, morreu no parto do filho deles, gerado naquele dia da primeira relação, e da pose para o retrato. A criança, que sobreviveu, foi entregue pela família da moça, que se chamava Fabrizia, a um orfanato, já que Marcantonio não via mais a moça havia meses, pois fora afastada dele pela família inimiga. Marcantonio nunca soube do nascimento e da existência da criança, seu filho, mas conservou o retrato, que continha um filho seu potencialmente representado naquele ventre magnífico, cujo umbigo fora pintado de maneira magistral e... abismal (esses detalhes pictóricos me chamaram a atenção). Dois anos mais tarde, Marcantonio conheceu, namorou e noivou de Giulia, a avó de Aline, com quem se casou. Sua mulher ficou sabendo dessa estória de seu marido pintor, e comovida com o triste destino da moça, mesmo sem saber da existência da criança, pendurou o quadro na parede, dizendo: —“ O retrato de Fabrizia ficará sempre conosco nesta casa. Não permito que você o venda jamais. O primeiro amor é sagrado e eu sou a primeira a reverenciá-lo, pois que você é o meu primeiro. Ela velará pelo nosso amor, eu sei, de onde ela estiver, pois uma beleza assim, só pode vir da generosidade”.<br />Resolvi conferir essa estória totalmente deduzida (acreditem se quiser), através de uma pesquisa a posteriori. Combinei com Aline que viajaríamos de ônibus com o Marco, até o bairro do Brás, em São Paulo, para apresentá-lo à avó Giulia, bisavó dele. Assim eu teria a oportunidade de colher um único dado que poderia iniciar a pesquisa sobre o paradeiro e a existência do filho de Fabrizio e Marcantonio que devia ser um homem ou mulher de meia idade, que fora criado em orfanato, provavelmente até a maioridade. <br />Minhas deduções baseavam-se num processo de desenvolvimento lógico, que eu considerava quase infalível. O “quase” era por conta de acidentes imponderáveis do destino, ou pelo menos não presumíveis de antemão: as chamadas “ironias”. Vejam, por exemplo, Aline se tornara um modelo nu, de pintores, sem reparar nessa coincidência, claro, já que nada a ligava ao retrato, em sua mente. . Mas batizara nosso filho com o nome de Marco derivado de seu avô, continuando, cumprindo, ou corrigindo assim o destino de Fabrizia, que não pudera acalentar o seu bebê, que provavelmente teria esse nome, do pai, se eles tivessem podido continuar juntos. Mas a criança teria nascido sem o conhecimento do pintor, pois Fabrizia dera a luz e morrera entre os seus pais que renegaram a criança, fato monstruoso, claro. <br />Assim fizemos a viagem, quando Marco tinha quase um ano, e diante de Giulia, em sua casa no Brás, fiz-lhe a pergunta que iniciaria a procura:<br />—Dona Giulia, qual o nome de família de Fabrizia, o modelo desse quadro? <br />A idosa senhora, muito espantada, contra-argüiu :<br />—Mas, Alma, como sabes que ela se chamava Fabrizia? Nunca revelei isso a ninguém. Nem mesmo à Aline. Como você ficou sabendo?<br />—Dona Giulia, perdoe-me, isso não vem ao caso É apenas um dom meu. Mas preciso saber o sobrenome da moça, pois seu filho que deveria se chamar Marco ou Marcantonio, pode estar vivo, embora possa também já ter falecido, foi criado num orfanato e só a família de Fabrizia pode dar-me o nome e endereço dessa instituição. Preciso saber o destino do filho ou filha de Fabrizia, pois se faleceu, tenho certeza de que o nosso Marco é a sua reencarnação. <br />Aline ficou boquiaberta, como sua avó. As duas protestaram:<br />—Mas Alma, como podes saber disso? Isso tudo é imaginação sua. Ninguém nunca soube nada sobre Fabrizia, depois que se separou de Marcantonio, sua história perdeu-se. Que loucura, Alma! Que imaginação!<br />—Não, não, queridas—eu disse—Minha intuição não falha, vocês vão ver. Temos o dever de saber o destino dessa infeliz criatura, que é parente de vocês, e compensá-la, por um segundo, pelo menos, se estiver viva. Ou reverenciá-la em nosso pequeno Marco, o que é mais provável. <br />As duas ficaram atônitas, mas Giulia forneceu-me o nome de família de Fabrizia: Aldobrandi. <br />Dormimos na casa da Avó de Aline, que era a sua casa também, onde passara a sua infância. No dia seguinte, de manhã, procurei na lista o telefone dos Aldobrandi. Havia vários telefones de pessoas com esse sobrenome, mas optei pelo primeiro, e atendido uma senhora, eu me apresentei como uma escritora que estava fazendo uma pesquisa para um livro sobre a colônia italiana de São Paulo. A senhora, que disse chamar-se Lina, aceitou me receber, dando-me seu endereço, no Brás mesmo. <br />Antes ainda do almoço, partimos, Aline e eu, deixando Marco com a sua bisavó. <br />Depois de poucos minutos, estávamos diante do portão de um casarão antigo, decadente, mas que denotava ter sido faustoso no passado. Recebeu-nos uma senhora idosa, de aspecto fino e altivo, com os cabelos pintados, e com um belo penteado matronal. Depois de nos fazer sentar e oferecer-nos um licor, que aceitamos, eu lhe perguntei:<br />—Dona Lina, eu soube que a senhora teve uma filha chamada Fabrizia, que morreu jovem, não é mesmo? <br />Dona Lina ficou um tanto surpresa, e perguntou-me como eu sabia disso. Respondi-lhe que nós escritores, como os jornalistas, também cruzávamos informações e consultávamos arquivos de bairro, como os dos tabeliões e cartórios, essas coisas. Isso pareceu tranqüilizá-la. Mas ela não parava de olhar Aline, de maneira inquieta e surpresa. Afinal ela disse:<br />—Essa moça, como é mesmo o seu nome? Aline? Vocè me lembra muito minha filha Fabrizia. Ela era assim, quase igual em tudo, a você. Sim, minha filha morreu muito jovem, e me faz muita falta. <br />—Dona Lina, sei também que Fabrizia morreu de parto, não é verdade?<br />A italiana levou outro susto e voltou a indagar, quase em pânico:<br />—Sim, sim, mas como você pode saber disso? É algo que nunca comentamos com ninguém. E no seu atestado de óbito não consta isso, por exigência do meu marido, quero dizer... Como você descobriu isso? <br />—Dona Lina, fique tranqüila. Minha pesquisa tem uma finalidade espiritual. Estou convencida de que tenho de descobrir o paradeiro ou o destino da criança que nasceu no parto de sua filha. Se estiver viva é uma pessoa de meia idade e precisa saber de muitas coisas, para ser compensada de ter sido separada de sua mãe, pela morte dela, e de sua família, por outras razões. <br />Dona Lina ficou assustadíssima, com o coração acelerado, e preocupadas, corremos a providenciar na sua cozinha um copo d’água, com a empregada. Afinal, tranqüilizada por nós, disse:<br />—Menina, não sei quem você é, mas isso é bruxaria, ninguém poderia saber disso. É um segredo de minha família, aliás somente meu, e de meu marido, que o levou para o túmulo, que eu esperava também levar. É também um pecado de família, pois... (ela calou-se). <br />—Eu sei, eu sei tudo, Dona Lina, ou quase tudo. A criança foi entregue a um orfanato, não é mesmo? A senhora e seu marido consideravam uma vergonha Fabrizia ter tido aquela criança, solteira, sem casamento, e sem o consentimento de vocês, não é mesmo?<br />Dona Lina ficou rubra, desta vez de cólera, e de repente revoltou-se. Disse quase gritando:<br />—Não vou dizer mais nada! Você é uma feiticeira, mocinha. Como pode saber disso? Não falarei mais nada. Não revelarei nada! Fora daqui! Fora! Não quero mais vocês aqui. Façam o favor de se retirarem! <br />Saímos as duas, muito constrangidas e frustradas com o desfecho. Não saberíamos o nome da instituição e a data da entrada da criança. O resto da pesquisa ia ser muito difícil. Então, quando já estávamos na rua, andando, fomos chamadas por um homem de meia idade, que correndo um pouco nos alcançou, e ofegante, nos disse: <br />—Senhoritas, ouvi tudo, sou o filho dela, e quero contar a vocês o que sei. O nome do orfanato é San Genaro, e fica no Bom Retiro. E foi no dia 30 de novembro de 19... , vocês encontrarão seu registro de entrada, no arquivo da instituição, se ela existir ainda. Senti que deveria revelar isso a vocês, porque me impressionou muito o que você disse à minha mãe. Mas se voltarem a estar com ela por qualquer razão, peço-lhes que não lhe contem o que revelei a vocês. Está bem? Adeus! <br />Ficamos uns segundos paradas na rua, olhando-o afastar-se de volta ao casarão, entreolhando-nos com um sorriso e um suspiro, depois batemos as palmas das mãos. A seguir pegamos um táxi, e tocamos para o Bom Retiro. Lá perguntaríamos pelo orfanato. <br />Depois de algumas paradas para pedir informações, afinal estávamos diante do prédio do Orfanato, uma espécie de palacete caindo aos pedaços.<br />Tocamos a sineta e um porteiro depois de olhar-nos bem, deixou-nos entrar, pensando, certamente, que duas moças bonitas e finas, querendo entrar, só podiam ser pessoas da sociedade querendo ajudar ou ser voluntárias nos cuidados às crianças. Deixou-nos entrar sem perguntas. Fomos direto procurar a diretora do estabelecimento. <br />Era uma senhora simpática, Dona Esther e após apresentar-nos, contei-lhe uma estória que a impressionou, para que me permitisse olhar os arquivos, para encontrar a ficha da criança que deu entrada naquela data fornecida pelo filho da Dona Lina. Foi-nos permitido, e depois de procurar nuns arquivos muito velhos, encontramos a ficha correspondente àquela data. Tratava-se de um menino que entrou sem nome, e que a diretora, na ocasião, batizou com o nome de Andrei, um nome russo, por ser a origem dos antepassados dela. Perguntamos à Dona Esther sobre aquele interno, e ela lembrou-se: Andrei saiu do orfanato com vinte anos, como jardineiro. E que excelente jardineiro ele era! Despedira-se muito grato a todos, e nunca mais voltara. Nunca souberam da vida dele fora do orfanato. Ficamos desoladas. Se o Andrei saíra e não mais voltara terminava ali a minha pesquisa, não haveria como seguir-lhe o rastro fora daqueles portões. Ou haveria? Talvez um golpe de sorte.<br /><br /><br />Esse golpe de sorte aconteceu de novo: à saída fomos interceptadas no portão por outra senhora idosa, que nos disse:<br />—Ouvi a conversa que vocês tiveram com a diretora. Sei algo sobre o Andrei. Ele faleceu o ano passado, como jardineiro de uma família muito rica, que parece que o apreciava bastante. A família Monteschiaro. A mansão deles fica aqui no Bom retiro, na rua.... mas não me lembro do número. Mas é fácil de encontrá-la, pois o terreno da casa ocupa quase a quadra toda. Boa sorte para vocês nessa procura, que não sei a que se deve, mas só pode ser coisa boa, porque vocês têm umas carinhas de anjo. <br />Sorrimos, demos-lhe um beijo e despedimo-nos agradecendo. Estávamos na pista novamente. Do quê? Eu pressentia de quê. <br /><br /><br />______________________________________<br /><br /><br /><br />Naquela temporada maravilhosa na estância, com minhas duas namoradas, com Rôdo e as crianças, meus amores todos, eu vivi os momentos mais quentes de minha sexualidade. Quero dizer, os mais eróticos mesmo. A ménage-a-quatre tinha sido retomada, e a verdade é que os três pareciam querer me devorar, mais do que eu a eles. Eu me deixava manusear e invadir por Aline, Laís e Rodo, com todas as armas que dispunham: dedos, lábios, seios, línguas e... o imenso falo de meu irmão que selava tudo, nos cobria como éguas, ou como cadelas. Como vacas? Também. Era maravilhoso, sermos banhadas por seu esperma abundante, embora perigoso, pois somente Laís poderia se dar ao luxo de engravidar agora. Eu tinha que estar sempre tomando pílula, pois era impensável conceber um filho de meu irmão. Poderia nascer degenerado, e transformar nosso prazer em tragédia. Mas éramos todos muito bem informados e atentos, apesar de tudo. E pudemos fruir essas deliciosas sensações da ménage, sem problemas e sem culpa. A não ser...<br />Sim, houve um problema, Matilde percebeu e chocou-se. Minha babá era moralista, afinal, sua formação era tradicional, de origem rural, muito rígida. E censurou-me amargamente:<br />—Alma, isso é pecado. Vais pagar isso de uma forma ou de outra. É uma pouca vergonha, minha filha. Não vês? Com tuas amigas? E com teu próprio irmão? Deus nos perdoe. Onde foi que eu errei ao criar o Rôdo, e também ao educá-lo? Sim, porque o Rôdo é obra minha. Nem a dona Ana, nem o doutor Werner, se ocuparam tanto dele como eu . E ele age assim agora? És tu, Alma, a responsável. És estranha, sempre foste. És indomável, rebelde e fora dos padrões das pessoas normais. Olha que vais pagar caro se o povo souber, se descobrir.<br />—Matilde—eu respondi— tu não contarás nada para ninguém, não é mesmo? Estou feliz, estamos todos felizes, as crianças também.Veja, não há mal quando há felicidade. Tu não podes entender, mas confia em mim. Sei o que faço. Meu pai aprovaria. Ele mesmo me ensinou a ser livre, e a amar fisicamente, que é a maneira mais sincera que uma moça bonita pode demonstrar o seu amor. Tudo mais são repressões e superstições. Não podes compreender, mas eu te peço, Matilde, cala-te e não te preocupes. Quem já foi absolvida pelo povo, como eu, naquele julgamento, não tem mais nada a temer. Lembra-te: “a voz do povo...”<br />Matilde ficou olhando para mim, triste ou assustada, não sei, e abanando a cabeça negativamente. Mas não disse mais nada. <br /><br />_____________________________________________ <br /><br />Segui com Aline para a tal mansão dos Monteschiaro, para tentar saber do Andrei. Lá chegando, uma impressionante mansão, muito bem conservada e pintada, indicava que aquela família não estava decadente, pelo menos não aparentemente. Pensei no nosso casarão da estância que já apresenta sinais de deterioração, e suspirei. Tocamos a campainha e uma voz no interfone nos interrogou. Apresentei-me como a escritora Alma Welt e perguntei sobre o Andrei, que eu precisava entrevistá-lo, pois encontrara a família dele. O portão se abriu automaticamente, ao mesmo tempo que um porteiro apareceu para receber-nos e conduzir-nos até a porta da mansão, muito distante do portão, e belíssima. Ali nos esperava uma linda senhora, elegante, que examinando nosso aspecto, sorriu e fez um gesto para entrarmos e sentarmo-nos em grandes poltronas em torno de uma mesa de centro fenomenal, em frente a uma lareira que parecia o palco de um teatro de marionetes, maravilhosa. A sala toda era um espetáculo, e lancei o olhar em todas as direções tentando assimilar as maravilhas que havia ali, quadros, esculturas e objetos de alta qualidade e requinte. Começamos a conversar. Eu disse: <br />—Senhora Monteschiaro, desculpe-nos visitá-la sem nos apresentarmos ou combinarmos antes ao telefone. Mas estamos vindo direto do orfanato SanGenaro, que criou Andrei, seu jardineiro. Sou Alma, escritora poeta e pintora, e tenho motivos para acreditar que Andrei, o seu jardineiro é tio da minha amiga aqui, Aline de Marco.<br />Contei-lhe a estória do pintor e sua modelo, e a tragédia no nascimento de Andrei. A senhora Monteschiaro ficou comovida e disse: <br />—Senhorita Alma, isso tudo é incrível! Eu nunca soube de nada disso. Apenas sabia que Andrei tinha sido criado num orfanato, de onde viera direto parta o meu jardim, onde foi feliz. Era um ótimo jardineiro e nós o queríamos muito bem. Era um excelente caráter, mas mais do que isso, era um rapaz muito puro. Infelizmente morreu no ano passado com cerca de 50 anos de idade.<br />Fiquei imediatamente abalada com aquela notícia. Perguntei à senhora:<br />—Mas senhora Monteschiaro, quando foi que morreu, em que dia, mês e hora. Pode dizer-me?<br />—Alma, posso chamá-la assim? Foi no dia 14 de novembro, às 2 horas da madrugada, em seu leito, no quarto que fica nos fundos do jardim. Morreu dormindo, e o legista calculou mais ou menos a hora, lembro-me bem disso, pois morreu dormindo, seu coração simplesmente parou, como um passarinho.<br />Troquei um olhar perplexo com Aline. Era a mesma hora, dia , mês e ano do nascimento de Marco. Não podia ser simples coincidência! Pedi para dar olhada no quarto dele, e para ela dar mais informações sobre a vida dele. Mas havia pouco a ser contado, e nada a ser visto no quartinho anódino, pois já se passara quase um ano e havia outro ocupante naquele quarto. Uma vida simples, senão monótona, de um homem puro e bom, em meio às suas flores, num belo parque em torno a uma mansão de gente muito boa e generosa. A essa altura, Aline e eu, muito comovidas, já estávamos segurando as mãos da senhora Monteschiaro, enquanto ouvíamos. Depois a beijamos, não aceitando o convite para o almoço, pois estávamos abaladas e comovidas com a morte de Andrei e... seu renascimento em Marco de Marco, que viera para corrigir o destino de Fabrizia, por via de Aline, a herdeira de sua bela profissão de modelo nu.<br /><br />______________________________________ <br /><br />No final de Abril, passeando, sozinha, em meu jardim, em meio às flores, uma bela amanhã, de repente ouvi um assovio, e lançando os olhos em torno, divisei atrás da sebe do nosso caramanchão florido, o rosto, o tronco e o braço de Gunther, meu querido bandido. Ele me acenava, disfarçando, ressabiado, logo se escondendo ali dentro. Ele voltara! Fui, sem hesitar, ao seu encontro, com alegria. Assim que me aproximei da entrada, ele me puxou para dentro, pelos ombros, e me beijou nos lábios ardentemente. Meu coração palpitava. Eu estava emocionada. Meu salvador me queria, ele me amava! Sim, era isso que eu pensava, naquele momento, romântica que sou. Diante da minha receptividade, ele me fez deitar, imediatamente, sobre a relva daquele espaço cercado, que permitia privacidade. E erguendo minha saia, puxou minha calcinha, retirou-a e cheirou-a, com grande prazer e naturalidade. Aquele gesto, acabou de me cativar e, então, puxei-o sobre mim para recebê-lo inteiro, aquele homem enorme, cujo calibre só se comparava ao de Rôdo. Então penetrou-me com delicadeza, lentamente, com cuidados, apesar do tamanho desmesurado de seu pênis, que me causou um pouco de dor. Mas eu queria tudo, queria até mesmo sofrer nos braços daquele homem, como se o fato dele ter-me salvado duas vezes, lhe desse o direito, agora, de me causar tanta dor quanto quisesse. Por quê sou assim? Na verdade, jamais saberei totalmente. Eu queria que ele me tomasse com força, e que dissesse coisas assim:<br />—Vem, minha Alma, dá-me tudo, quero penetrar-te até o sangue correr, quero todos os teus orifícios, todas as tuas aberturas, que selarei para sempre com o meu esperma, para fecundar-te, para perpetuar a minha estirpe de bandido.<br />É evidente que ele não disse isso, mas faltou pouco, e no fundo, em seu silêncio, era mesmo o que queria dizer, para mim era claro e... comovente. Ele se movimentava devagar, subindo e descendo, para não me machucar, pois seu membro, além de grosso, era muito comprido e ele sabia que podia bater no colo do meu útero, de maneira perigosa e dolorida. Mas ele sabia o que fazia. Sem perguntar se eu estava fértil ou não, explodiu seu sêmen dentro de mim, que estava enganchada, avidamente nele, com minhas longas e brancas pernas muito erguidas, abarcando seus rins.<br />Então, subitamente senti uma presença ali perto, e erguendo um pouco a cabeça, dei com Patrícia de olhinhos arregalados e mão na boca, de espanto. <br />Ela vira tudo, em detalhe. No ângulo em que estava, vira até a penetração, explícita, o que para ela deve ter sido especialmente chocante. Uma menina, ingênua, preservada, que nem sequer ousava sonhar tais coisas com o namoradinho, por quem era apaixonada! Eu tentei erguer-me imediatamente, mas estava penetrada, enganchada naquele homem, e tive dificuldade, tornando as coisas mais patéticas. Levantei-me afinal, empurrando Gunther, e correndo atrás de Patrícia, que chorava, correndo. Alcancei-a antes de ela atingir a varanda, e abracei-a, enquanto ela soluçava, com o rosto afundado em meio peito. Ela balbuciava:<br />—Tia Alma, Tia Alma o que era aquilo? Porque tu estavas fazendo aquilo com aquele homem? Não é só com o marido que a gente faz isso? Ah! Tia Alma era tão... assustador!<br />—Patrícia, Patrícia, —eu disse— me perdoe, eu devia ser mais cuidadosa. Mas olhe, deixa-me explicar-te... Se souberes mais coisas, não vais te assustar mais. Eu devia ter conversado mais contigo! Olha, é assim mesmo, entre homem e mulher e... não precisam ser casados, não. Casado é bom também, quando se ama, mas o importante é o amor.<br />—Mas Tia Alma, tu amas o Gunther? Ele é um bandido, não é? Como podes amá-lo? E Aline, e Laís? Tu disseste que as amava! Não entendo mais nada, tia! <br />—Patrícia, minha querida, lembra que eu te disse que podemos amar muitas pessoas, ao mesmo tempo? Eu, pelo menos, posso. Talvez isso não seja comum, mas eu sempre fui assim, e, olha, não sou a tua tia querida? Não sou boa? Não sou hipócrita. Entendes esta palavra? Não sou fingida. Reconheço que certas coisas devem ser feitas mais discretamente. Mais reservadamente, mas... Tu me perdoas? Quero-te tanto minha querida! Sinto tanto ter te chocado... <br />Patrícia ficou ali, muito tempo, com o rostinho entre meus seios, e seus soluços terminaram. Ela me abraçava apertado e eu sentia o quanto aquela criatura inocente e pura me amava. <br /><br />________________________________________ <br /><br /><br />Eu continuei encontrando-me com o Gunther. Mas agora tomando muito cuidado, e fora dos limites do nosso jardim. Era quase um mistério como ele aparecia e desaparecia, sem ser notado pelos peões, e suas mulheres, nossas colhedoras de uvas. Ele era um mestre no despiste, e na ocultação. Eu, no início não ousava perguntar a ele o local de seu esconderijo. Sim porque ele devia estar baseado em algum “covil’ de bandido, conforme minha imaginação. Ele estava sempre armado, e eu sabia que ele receberia à bala, qualquer pessoa que o ameaçasse, principalmente a polícia. Ele devia estar fora do território brasileiro, já que estávamos relativamente próximos da fronteira uruguaia. Mas suspeito que ele permanecera ali, nas nossas terras, somente por minha causa. Tive essa comprovação, quando lhe ofereci dinheiro, para sua fuga. Ele pareceu ficar constrangido, e respondeu:<br />—Alma, queres te livrar de mim? Porquê me ofereces dinheiro para eu partir? Esqueceste que eu te devolvi todo aquele dinheiro roubado por teu cunhado? Não preciso de nada, a não ser de ti. Não vês que ainda não parti porque estou apaixonado por ti? Não me queres mais? <br />Experimentei uma grande alegria com aquelas palavras, e o abracei apertado. A verdade é que aquele homem, forte e aven tureiro, desvinculado de tudo, solto no mundo, ao seu bel prazer, ou ao sabor <br />das tramas de um destino intenso e radical, me fascinava, me hipnotizava, me fazia sentir mais feminina do que nunca, pois não esperava de mim, nada de forte ou independente. De mim, que ele salvara duas vezes, de maneira tão romântica, malgrado as violências escabrosas que antecederam sua ação salvadora. A estrutura intrínseca de nossa estória era romântica, eu sentia. E ele, com seu cavalheirismo nato, de cavaleiro antigo, era digno desse timbre romântico que existira desde o início da nossa relação. Lembrei-me do quadro de Magritte, que representava um violino pousado de pé sobre um colarinho branco engomado, sobre uma mesa . “Un peu de l’âme des bandits”, o título do quadro, dava a exata conotação do sentido que eu via no mistério do destino marginal daquele homem, que, na verdade, não estava “à margem”, mas no centro mesmo da verdadeira ação do mundo. No olho do furacão que não percebemos.<br />Uma vez consciente disso, eu não me preocupei mais com o perigo que ele corria, e com os nossos destinos, agora cruzados. <br />Gunther me amava, o quanto um bandido pode amar. Ele era um homem frio, e misterioso. No entanto, sua delicadeza para comigo revelava a sua capacidade de ternura, e eu sentia que podia confiar num homem assim. Mas ele queria me levar com ele. Essa idéia absurda tinha a sua lógica: se eu aceitava ser dele na cama, ser preenchida por ele, recheada por ele de seu leite viril, por quê não o seguiria até à morte? Estava aí o perigo. Ele era um homem simples, no fundo, e por isso já me considerava dele. Então, eu lhe disse:<br />—Gunther, querido, sou tua somente nos nossos momentos... Podes entender isso?Não poderei seguir contigo, ser mulher de bandido. Tenho minha família, meu deveres para com ela. Deves partir, pois já sabem de tua presença aqui na estância, e podes ser delatado à polícia por algum peão. Em mim tu podes confiar, devo-te a vida, jamais te entregarei, mesmo se for presa por isso. Serei fiel ao meu amor por ti, meu bandido, mas deves aceitar os meus termos. Também sou uma mulher livre, apesar dos meus vínculos de família. Mas não irei contigo. <br />Gunther olhou-me profundamente, com o seu olhar indefinível, que podia causar um certo medo, mas que eu aprendera a confiar. Eu era sagrada para ele, porque me possuíra depois de me salvar, e ele jamais me faria mal. Ele voltaria sempre, de tempos em tempos, eu sabia, pois afinal, eu, Alma Welt, era o “repouso do guerreiro”, para um bandido especial, amoroso. E sabia, de antemão, que um dia choraria por sua morte, talvez mesmo sobre o seu corpo maravilhoso, crivado de balas. <br /><br />_________________________________________<br /><br />A pradaria estava mais verde do que nunca, e as flores brotavam até mesmo no pasto, as pequenas flores, as sempre vivas, os “cardos” do Pampa. Eu voltei a cavalgar, agora com Laís, já que Rôdo viajara a Porto Alegre para vender mais um lote de peças do nosso tesouro. Aline, depois da maternidade, não cavalgava mais, era compreensível, mas seu último resquício de ciúme era justamente quanto a essas cavalgadas, que ela considerara uma marca especial, exclusiva da nossa relação. E ficava com o seu... o nosso bebê, no colo amamentando-o, sentada na cadeira de balanço, olhando um tanto tristemente para nós, que nos distanciávamos a galope.<br />Às vezes apeávamos, Laís e eu, à beira do nosso açude, para, despindo-nos, banharmo-nos totalmente nuas, naquelas águas deliciosas, claras, onde se podia ver os peixes junto às margens. Continuávamos, pois, audaciosas, ou imprudentes, pois podíamos ser vistas, pelo menos de longe. Mas eu não me importava, nós nos sentíamos ninfas do pampa, com todo o direito: pela nossa beleza, pela nossa alegria, e pela integração que sentíamos com a natureza. <br />Depois voltávamos, para o casarão, refrescadas, com os olhos brilhantes. Somente o galpão nos era vetado, pois fora ali que Laís fora violada, e ela nunca mais quis deitar-se sobre palha. <br />Então, à nossa volta, Aline, depois de botar o bebê para dormir, queria participar de nossa cavalgada... no leito, onde se esmerava. Ela tinha medo de perder-me. Ela não fazia mais cenas, mas, na nossa ménage, tinha performances sutilmente diversas entre mim e Laís. Ela mordia Laís, e enfiava-lhe os dedos com certa força, para machucá-la um pouco. Pobre Laís, que já fora tão ferida no seu corpo e na sua alma! Eu precisava ter uma conversa sobre isso com Aline. Mas antes que pudesse ter essa conversa, ele me surpreenderia uma noite, mais ainda. Tirou de sua gaveta, de sob as roupas, um artefato de silicone, um imenso pênis bastante realista, inclusive com veias saltadas e a cabeça um pouco avermelhada, presumo que para ser mais convidativo. Tinha correias ligadas à sua base, e ela, afivelando-as às suas ancas, envergou aquilo, ereto imenso, sobre o seu púbis. Era um pouco grotesco e ... assustador. Mas não pudemos deixar de soltar uma imensa gargalhada e de fingir fugir dela em torno da cama. Afinal ela nos “obrigou” a ficarmos as duas de quatro sobre o leito, com nossas ancas empinadas e nossas vaginas bem expostas. Ela iria nos aplicar um “corretivo”, segundo ela disse. Em meio a gargalhadas e gemidos fomos possuídas pela nossa Aline, que desta vez nos surpreendera. Ela parecia querer nos derrotar, com os movimentos de sua pélvis, quase violentos. Quanto a mim, ela se superou, depois de experimentar minha vagina. Introduziu aquilo no meu ânus, de tal forma, que literalmente me “arrombou”. Eu percebi que ela queria, daquela forma me punir, ou firmar o seu domínio. Laís era primitiva em sua alma, eu percebi naquele momento, mas... tudo nela me enternecia, e confesso: gostei do que ela fez. Eu sentiria dor ali atrás, durante três dias, e seria sua escrava voluptuosa. O único perigo era nos viciarmos naquela maravilhosa brincadeira. E naquela variação inusitada e dolorosa. <br /><br />______________________________________________ <br /><br />Aline gostara de brincar de dominação, no nosso leito. Era uma forma dela compensar-se pelo que ela perdia com a maternidade em relação a nossa disponibilidade, minha e de Laís, de sair por aí, pelo”mundo”, a galope. Depois, havia também a sua suspeita do que acontecera entre mim e Gunther. Pobre Aline, no fundo devia sofrer, de ciúmes, pelo tanto que me amava, carnalmente. Quanto a isso, vou fazer uma declaração definitiva, a vocês, meus leitores: <br />Declaro solenemente que não acredito em dicotomia entre corpo e espírito e numa suposta espiritualidade que exclua o sexo, ou que pretenda pairar acima dele. É justamente esse pensamento discriminador que considero filho da hipocrisia e, portanto, da escravidão e da repressão. O sexo para mim é sagrado quanto mais pleno, livre e total. Eu só acreditaria num deus que soubesse copular, por isso sou devota de Zeus, o Grande Fodedor. Sexo é espírito, fiquemos, pois, combinados. Dito isso, prosseguirei nas minhas confissões, de minhas alegrias corporais e de minhas dores, não menos gloriosas. <br />Sim, eu queria sentir meu corpo: seus deleites e suas dores que me fazem sentir tão viva. Desenterrei de uma velha arca, um rabo-de-tatu do meu avô, de couro cru. Eu iria instigar Aline a açoitar-me com ele. <br />Leitor querido, se quiseres interromper a leitura de meu livro, faça-o agora. Ou continue para sempre! <br /><br />__________________________________________ <br /><br /><br />Laís conhecera Rôdo, numa estrada da Provence, pedindo carona. Começara ali um affaire itinerante pelas cidades do sul da França, que continuaria em Cannes, e na Côte D’Azur inteira, onde os dois fariam uma interessante parceria, no pôquer, desfiando um rosário de cassinos até a Costa Brava, na Espanha. Mas foi em Biarritz, que algo saiu mal. Rôdo, caiu em desgraça, após uma rodada, e provavelmente de maneira injusta foi acusado de desonestidade. Ambos foram interceptados na estrada, após uma perseguição perigosíssima, em que Rôdo, sendo um excepcional piloto, teria levado vantagem, com seu Porsche, não fosse uma bala que lhe furou um pneu, quase fazendo-o capotar. Obrigados a parar, foram arrancados do carro, e surrados brutalmente. Rôdo e Laís tiveram suas roupas arrancadas e deixados nus, na estrada, despojados do dinheiro que ganharam no jogo, e só tiveram o carro poupado de ser destruído, provavelmente para evitarem um caso policial que Rôdo levantaria, em que o corpo de delito seria o próprio veículo. Laís me contou que ficaram muito machucados, caídos na beira da estrada, completamente nus. Mas o pior foi o detalhe humilhante: os bandidos jogadores pouparam Laís do estupro, talvez para evitarem denúncia de crime hediondo, mas urinaram demoradamente, cinco homens, sobre Rôdo e Laís desmaiados, no chão. <br />Esse episódio doloroso, me foi contado por Laís num momento confessional muito íntimo, e eu percebi então como ela era muito mais sofrida do que eu percebera no princípio, até acontecer a terrível violação que ocorreria com ela em nosso galpão. Entretanto, mesmo com essa coincidência, duas violências sofridas, de um jeito ou de outro no âmbito de Rôdo, ela não fizera essa associação em seu espírito, e permaneceu entre nós. Ela percebia que nós a amávamos realmente, e isso era suficiente para compensá-la de tudo. O destino, sempre insondável em seus desígnios, fora um tanto brutal no preço que cobrara a ela para pô-la em nosso caminho, que lhe parecia tão essencial. Agora eu estava disposta a dividir todo o amor que tinha por Rôdo e Aline, com ela, embora consciente de que não conseguia protegê-la, eu mesma, que tantas vezes fora, também, vitima de brutalidades. <br />Mas eu imagino que a chave mesma, desse apego de Laís, a Rôdo e a mim, estava na indestrutibilidade da nossa aliança com a felicidade e a alegria, que ela via em nós. Nossa capacidade de recuperação, pelas bases sólidas de crença na vida, na beleza, na Arte e no Amor, que era a herança verdadeira de nosso pai. <br /><br />_________________________________________ <br /><br /><br />Naquela primavera nossa paixão carnal atingiu seu paroxismo. Nós nos procurávamos a todo momento, ou saíamos de mãos dadas, os quatro, e por isso éramos olhados de maneira desconfiada pelos peões, suas filhas e mulheres. Mas como éramos gentis e humanos quanto a seus problemas e necessidades, conseguíamos neutralizar, até certo ponto, os preconceitos renitentes de suas moralidades tradicionais. Eles não tolerariam a explicitude, claro, e tentávamos esconder nossos momentos de verdadeira orgia, que amávamos tanto realizar. Nunca me esquecerei dos lances radicais que praticávamos e tenho saudade daquilo, até hoje. <br />Meus fiéis leitores, vocês devem estar querendo saber daquele rabo de tatu do meu avô, não é mesmo? Pois bem, ele foi usado, sim. Eis como:<br />Aline e Laís estavam inquietas aquela noite. As crianças tinham ido dormir cedo, depois de ouvirem-me contar uma linda estória como eu fazia todas as noites, para todos, inclusive os adultos. Até Matilde, saia da cozinha e vinha ouvir minhas estórias. Porque, graças a Zeus, não tínhamos televisão na estância, nem nunca teríamos. Então depois da estória e do beijo em cada um deles em suas caminhas, eu me sentia livre para viver uma parte “adulta” da minha personalidade, que coincidia com a minha libido desabrochada, irrequieta. Meu olhar mudava, diziam minhas amigas. Eu perdia a inocência? Não acredito. A libido não tem idade, e a minha era pura e edênica, nascida sob o signo infantil da minha macieira, e ninguém, nem minha mãe em seu caráter repressivo, conseguira domá-la. Mas admito que meus olhos verdes adquiriam um acento felino, selvagem. Eu ficava, admito, “meio louca”, às vezes. Nessa noite eu retirei de sob as minhas calcinhas, na cômoda, aquele rabo-de-tatu, do meu avô, objeto a que já me referi. Ele dava medo só de olhar, com o seu couro cru e áspero, trançado. Pus-me nua, e disse às minhas gurias:<br />—Aline, Laís, hoje quero sofrer. Não discutam e me obedeçam, por enquanto. Depois eu obedecerei a vocês. Vamos brincar de escrava branca. Comecem me amarrando à guarda da cama, com esta corda. Assim, assim, Laís, bem forte. Ai! Quero sentir dor! Meu coração não cabe no meu peito, vou sufocar de entusiasmo de viver, se vocês não me reduzirem. Eu não caibo em mim. Dêm-me dor! Dêm–me alguma dor!<br />Aline começou a bater com o rabo-de-tatu em minhas costas, a princípio fracamente, e logo aumentando a intensidade e a força das chibatadas, e descendo até as minhas nádegas brancas, que ficaram logo avermelhadas. Laís estava horrorizada, e as duas estavam tão ofegantes quanto eu. Eu gemia e me contorcia, balbuciando, em lágrimas de dor e de prazer:<br />—Aline, bata-me, bata-me, meu amor. Eu mereço, sou uma guria levada, eu vou ser boazinha, eu vou ser a sua escrava, lamberei seus pés, limparei a sua sujeira!<br />Aline interrompeu a sessão de chibata, subitamente indignada, com os olhos úmidos, atirando o instrumento de tortura, longe, contra a parede e saiu correndo do quarto, para colher Marco em seu berço, no quarto ao lado. Começou a acalentá-lo e a encostar sua boquinha rosada em seu seio, embora estivesse adormecido. Suas lágrimas corriam. Eu fiquei desolada e envergonhada. Laís estava perplexa e... horrorizada. Minha necessidade vital de sofrer não levara em conta a atitude de violência que eu impingia a seres tão delicados, que não podiam exercer esse papel, sob pena de violentarem suas naturezas. Eu teria que desistir dessa modalidade de prazer? Dei-me conta, então, que ela surgira, ou desabrochara, melhor dizendo, depois da minha flagelação por um verdadeiro inimigo. Por isso Júlia detectara o meu prazer devassando a minha vagina, após a tortura cruel, verdadeira, a que me submetera o meu inimigo. Então, nada poderia substituir a realidade da dor e da crueldade paroxísticas do ódio verdadeiro? Eu comecei a chorar, enquanto era desamarrada por Laís.<br />Eu chorava pela minha necessidade de vida, da crueldade da vida, que nada podia satisfazer a minha sede de realidade, de toque, do sangue da terra! <br /><br /><br />FIM do Capítulo Quarto (Estórias das Amadas) de O Sangue da Terra<br /><br /><br />Aguarde o próximo (e último) capítulo do romance "O Sangue da Terra" de Alma Welt, um epílogo entitulado "A Vinha de Dioniso"<br /> <br /><br /><br />13/07/2005<br /><br />______________________________________________________________<br /><br /> ALMA WELT<br /><br /> <br /><br /><br /> A VINHA DE DIONISO<br /><br /><br /> Quarta e última parte do romance “A Herança” <br /><br /><br /><br /> A Vinha de Dioniso<br /><br /> Capítulo Primeiro <br /><br /><br /> A Rainha Devassa<br /><br /><br /> Desta varanda, sentada em minha cadeira de balanço, avisto o meu Pampa inteiro à minha frente, até o horizonte, que parece chamar-me, nestes dias magníficos. Aqui vivo cercada das minhas queridas crianças e dos meus amados Rôdo, Aline e Laís. <br /> Meu irmão vai e vem, do mundo, no seu carrinho esporte, e o balanço de suas ausências e retornos marca o ritmo anímico que coincide com as estações nesta estância, como em meu coração incestuoso e ardente.<br /> Entretanto, espero ainda algo que corresponde à parcela mais romântica desta nova fase da minha vida. Sim, pois meus amores assumidos, que me cercam, tornaram-se familiares e... cotidianos. E vocês, meus leitores, sabem o quanto necessito do mistério, da nostalgia e mesmo da... exceção, em minha vida. Do perigo? Também, mas sobretudo das emoções do lado escuro da alma, aquele lado que não conheço bem, e que me instiga, apesar do medo. <br /> Ando pelas pradarias, a pé, ou cavalgando com minhas amigas e amantes. Mas freqüentemente o faço só, solitária, olhando os longes, e o entorno, como quem espera, espera. <br /> Aline e Laís sabem deste meu novo “desvio”, quer dizer, desta paixão, e estão perplexas, senão amedrontadas. A verdade é que perderam a segurança comigo, e agarram-se, agarram-se a mim, com medo de perder-me. <br /> Aline tem o “nosso” bebê, o pequeno Marco, mas sente que não tem um marido, e seu filho não tem um verdadeiro pai. Não quero dizer, com isso, que ela esteja arrependida de sua “produção independente”. Ela sabe que eu não poderia, obviamente, fazer esse papel, e Rôdo, o pai biológico, é tão somente isso, por enquanto. Irá ele, algum dia, “assentar o facho”, e permanecer junto ao seu filho, para ajudá-lo a crescer, a seguir, pelo menos, o seu exemplo de jovem aventureiro? Não creio. Somos uma “família desfuncional”, evidentemente. Mas como nos amamos, todos, uns aos outros! <br /> Meu coração inquieto, no entanto, me leva a sonhar e esperar... sempre, sempre.<br /><br /> _____________________________________________ <br /> <br /> Quando eu tinha uns treze ou quatorze anos, pus-me a escrever poemas, diariamente, que funcionavam como um diário secreto, para driblar a minha mãe, que certamente invadiria minha privacidade se eu mantivesse um diário em prosa corrente.<br /> Nos meus versos eu fazia uso de um simbolismo oculto, sem abusar de metáforas, de maneira que meus pensamentos pareciam obscuros, mas inofensivos. E assim, Ana Morgado, minha mãe, desinteressou-se dos meus versos e nunca percebeu que a verdadeira história e percurso da minha alma já estava ali, camuflada, de maneira sutil, e os segredos do meu coração foram preservados... até certo ponto. <br /> É verdade que um ano antes, eu fora flagrada com Rôdo, peladinhos os dois, sob a nossa macieira, fato que já contei sobejamente em diversas ocasiões, nos meus textos em prosa e em verso. Mas isso não evitou que nós, Rôdo e eu, continuássemos a desenvolver nossas relações tão profundamente físicas, como já narrei.<br /> Mas, o meu universo interior, de base romântica, transcendia em muito qualquer namorico, e a ardência do meu coração me levava a vôos insuspeitados pela visão tacanha de minha mãe, que quisera tão somente montar guarda na minha “xotinha”, essa é que é a verdade. Em vão. <br /> Eu continuei me encontrando com Rôdo, de maneira mais hábil e secreta. E naquele bosque em que muitos anos mais tarde, recentemente, eu fui violentada pelo meu cunhado Geraldo, ali, quase no mesmo local, numa clareira oculta, ali, eu me encontrava com Rôdo, e entregava-me a ele, de todas as maneiras. Num dos meus ciclos de sonetos, eu contei o episódio do balanço, que armáramos num galho forte da minha macieira. Na verdade, isso se passara na nossa clareira secreta, no bosque. Mas vou transcrever aqui essa narrativa do meu ciclo de “Sonetos Ocultos”:<br /><br />(Transcrever aqui, em duas colunas, o ciclo dos dez “Sonetos Ocultos”, de Alma Welt)<br /><br /><br /> ....................................................................................................................... <br /><br /> <br /> Agora, eu me sentia no limiar de uma nova fase em minha vida. No fundo, eu sabia a que se referia essa espécie de expectativa calma, de espera. O novo amor que se instalara em mim, com a força da exigência romântica do meu coração, era, vocês sabem, o de Gunther, o meu “amor bandido”, o cavaleiro do Walhalla, que se insinuara em minha vida a partir de um olhar meu de desespero, um bilhete de pedido de socorro e depois de sua ternura insuspeitada, e momentos de delicadeza inusitados num homem assim, desraigado, soldado da fortuna e bandido romanesco. <br /> Eu olhava o horizonte, ali, da minha varanda, freqüentemente com o pequeno Marco engatinhando ali, perto de mim, puxando-me a saia até eu colocá-lo deitado sobre as minhas compridas coxas, para brincar com os seus pezinhos, e sorrindo para ele, contemplar o seu sorriso maravilhoso. Mas eu sempre estava sondando os longes com o meu olhar, como um fanal da pradaria, por onde viria, navegando na ondulação das coxilhas, o meu amor, nascido na adversidade e que tinha promessas nunca feitas, de uma plenitude incompreensível, porque sem raízes e sem futuro. <br /> Eu deveria cumpri-lo, esse amor, com seu potencial trágico, já meu “cavaleiro” era um fugitivo da polícia, procurado por mais crimes do que eu quereria saber. Mas, eu conhecia uma parte do seu coração, que avalizava minha entrega, minha confiança no seu caráter. Ele tinha razões secretas para todos os seus crimes, um álibi fundamental, um ponto de partida trágico, alicerçado na honra. Eu assim acreditava. Eu tinha a certeza do coração apaixonado. E esperava, esperava.<br /> Eu estava cercada dos meus amores, que me olhavam inquietos, sentindo-me partir aos poucos, para uma aventura que não as incluía, e tentavam chamar-me a atenção,Laís e Aline quase desesperadas. As crianças, por seu lado, tinham uma atitude mais sábia e confiante, e permaneciam calmas, brincando entre elas. Elas confiavam em mim. Eu as decepcionaria? Seria capaz de decepcioná-las? Certamente que não. <br /> Por quê, então, esperava? <br /><br /><br /> ____________________________________ <br /><br /> <br /> Rôdo estava novamente longe, rodando pela América Latina, pelos países andinos, com uma nova companheira, uma chilena que ele conhecera em Porto Alegre. Laís não se importava mais. Tampouco Aline, que já se resignara a ter “um pai ausente” para o seu filho. A propósito, é preciso que eu conte que Aline, tendo novamente experimentado asa delícias da penetração fecunda, estava insatisfeita comigo e ansiava entregar-se a um homem, ter um novo filho, e olhava-me com um laivo de ressentimento. O quê podia eu fazer? Usar, ao menos, aquele falo de silicone que ela mesma providenciara, adquirindo-o em São Paulo, num Sex-Shop, escondida de mim? E, no entanto, ela é que o usara ativamente em mim e em Laís. Eu me recusava a usar aquilo, afivelá-lo em minhas ancas, apoiado em meu púbis. Eu me sentiria grotesca. Laís, também, nem pensar. E assim, estávamos todas insatisfeitas, pela primeira vez, em nossa tríplice relação. O quê tinha acontecido? O quê se perdera? Eu nunca fora viril na minha maneira de ser na cama. Sou bem mais passiva do que ativa, embora já tenha experimentado, no ardor da relação, a introdução do meu punho inteiro dentro de Aline, depois do seu parto, que a deixara muito mais aberta, vocês sabem. Mas falta-me o verdadeiro componente ativo, o Animus, que em mim é muito rebaixado. Basta dizer que não sou capaz sequer de dirigir um carro, e sempre necessitei de motorista. Em São Paulo eu só andava de táxi, embora tenha experimentado o metrô, às vezes. Bem, mas isso não vem ao caso. Eu tenho a tendência a divagar, a perder o foco. A questão é que eu não poderia ser o “macho” dessas mulheres que me cercam, simplesmente isso! Pronto, essa é que é a verdade! E se elas não vão embora, por outro lado, é porque realmente me amam, mais do que gostariam, ou do que lhes é conveniente.<br /> Freqüentemente, na cama, elas me assaltam, exasperadas, e por sua vez me penetram e me machucam, com os dedos, com os punhos, com as unhas e com os dentes. Começam já a bater em minhas nádegas muito brancas, com as palmas, e a mordê-las. E seus beijos, então? Deixam marcas inconvenientes, que tento disfarçar com pomadas para não escandalizar as crianças. Aline, recentemente, prendeu meu clitóris com os dentes, e não o soltava mais, ameaçando decepá-lo. Fiquei apavorada. Começo a crer que corro perigo, com estas duas louquinhas desesperadas. <br /> A verdade é que a solidão, inerente a este Pampa, neste casarão perdido no meio da infinita pradaria, no meio desse mar de coxilhas, produz um gradativo enlouquecimento em pessoas como nós. A beleza perpétua, o isolamento, o tempo que se escoa mais lentamente que em outras partes do mundo, com exceção das montanhas, como os Andes, segundo me diz Rôdo em seus postais, isso tudo nos mina, nos corrói gradativamente, cobrindo nossa alma como um musgo à pedra, produzindo uma vertigem de decadência, profundamente romântica e demencial. Somente as crianças parecem imunes a esses venenos corrosivos, do tempo e da solidão. Elas têm um impulso ascendente, que já nos falta, a nós, que embora jovens, já sentimos a vertigem do abismo, uma volúpia de soltar o corpo e rolar, agora que atingimos o auge dos nossos potenciais e de nossa beleza de mulheres. Ai! Que será de nós, loucas mulheres, se não chegar um cavaleiro? Três cavaleiros? Levem-nos com vocês, homens fortes, seguros! Vocês existem? Homens maduros, talvez, que nos apartem como rezes, escolhendo uma, cada um. E nos levem, para desfrutarem de nossa beleza, possuindo-nos e fecundando-nos, até o nosso sangue e sumos escorrerem entre seus lábios e dentes fortes! Estamos aqui, venham! Ai! venham!<br /> <br /> ____________________________________________<br /><br /><br /> Então, finalmente, eu avistei, uma manhã, ao longe, um cavaleiro que vinha a passo, e depois a trote em direção ao casarão. Eu me ergui da cadeira de balanço desta varanda e fiquei alerta, tensa e... logo trêmula, inclinada para a frente. Ergui um braço, apontando, depois o outro, e começava a precipitar-me, ofegante, quando fui agarrada por Aline e Laís, que gritavam: <br /> —Não, não, Alma, não vá! Não nos deixe! Alma, sua louca, tu não podes! Não podes!<br /> Laís, de joelhos, agarrara-me as pernas. E Aline segurava-me os braços por trás. Eu me debatia. Desvencilhei-me delas com violência e corri. Corri em direção ao cavaleiro, que se aproximava agora a galope!<br /> Diante dele, Gunther, o cavaleiro, que fez o cavalo estacar, quase empinando-o, eu estava ali, no meio da pradaria, de braços estendidos, com um sorriso estampado em meu rosto, olhos brilhantes e úmidos.<br /> Gunther apeou do cavalo, e abraçou-me. Eu me afundei profundamente naquele peito forte, que me abarcou toda. Senti-me pequena e ao mesmo tempo plena, plena. Por alguns minutos, não precisei de mais nada. Mais nada, na vida.<br /><br /> ____________________________________________ <br /><br /><br /><br /> O avô Joachim me assustava, com a sua catadura de nenhum amigo, seus lábios finos como uma fenda na queixada poderosa, quadrada, no rosto comprido de imenso nariz. Com dois metros e alguns centímetros de altura, e mãos enormes, falava pouquíssimo e trabalhava muito. Eu, simplesmente não podia compreender um homem assim. Tanto mais que o Vati, meu querido Vati, era falante, doce, carinhoso, embora também forte. Como pudera sair assim, nascido daquele casal estranho, de alemães, tão diferentes do povo deste sul, de homens falantes, cantadores e extrovertidos? Meu avô considerava os gaúchos uns “gargantas” (ele fazia um gesto com as costas da mão, sob o queixo, que me desagradava pelo seu desprezo). Quanto à minha avó, já contei como ela revelou-se interessante, com sua veia picaresca, de bruxa gargalhante, cheia de estórias inusitadas, e algumas receitas alemãs, de origem camponesa, que me cativaram o paladar. Mas o Vati, saíra cedo da colônia, do vale do Itajaí, para estudar na Europa, e se tornara um homem culto até à erudição, abrindo assim um abismo, aparentemente, entre ele e seus pais, ou mesmo seus ascendentes camponeses. Quem, como ele, tocava os clássicos, desde Bach até os grandes românticos, tinha percorrido um longo percurso, transpondo em si mesmo um abismo cultural e até mesmo social, milenar. Eu sou a sua herdeira. E só recentemente pude enxergar em mim mesma algo da raiz camponesa, da rusticidade e talvez do primarismo em minha estrutura emocional, quando me atraí, e me apaixonei por um homem forte e simples, monolítico, como o Gunther. O que teria esse jovem bandido para me atrair, já que o mundo propriamente “intelectual” não existia dentro dele? Ele era todo instinto e combate. Um guerreiro. Um antigo germano, um viking. Mas os guerreiros sempre foram grandes amantes primários, irresistíveis. Eu me lembrava imediatamente de Odisseu, ou de Aquiles, ou ainda do jovem Páris, que seduziu a mulher mais bela do mundo, Helena, esposa do seu hospedeiro, o rei Menelau, de Esparta. Esses guerreiros deviam ter algo irresistível às mulheres de seu tempo, e até hoje fascinam quem lê os seus feitos. Talvez porque eram, simplesmente, homens de ação, mas no sentido mais pleno e profundo da expressão. Assim eu via Gunther. É verdade que Rôdo, também, sempre me deu essa impressão, e por isso mesmo a minha atração por ele, desde menina. Eu, uma artista, sonhadora e... amorosa. Apaixonada pela beleza, pela música, a poesia, a pintura, e a dança. Pelas crianças. Eu me surpreendia com essa atração primitiva pelo homem de ação, pelo guerreiro, pelo homem forte e até mesmo brutal, simplesmente porque não via vulgaridade nele. Sim, a única coisa que me causava repulsa no ser humano, a vulgaridade, não havia nele. Ele podia matar... os seus inimigos, ele podia roubar os ricos e acumuladores, que nada disso diminuía a minha atração por ele. Como disse alguém: “O que é um assalto a um Banco, comparado a um Banco?” Sim, eu sempre o absolveria de tudo, ou quase tudo, desde que não houvesse verdadeira crueldade, ou melhor, vulgaridade. O demônio da vulgaridade. Eu via, como exemplo de oposição a um homem assim, justamente o meu finado cunhado, monstro bestial, o Geraldo. Eis onde a vulgaridade o levou. Quando penso nisso, sinto-me conspurcada e impura, só de lembrar. Sou pura, sou bela, e amo o ser humano em sua diversidade. O meu guerreiro pode tomar-me, plantar-me um filho no ventre, um guerreirozinho ou uma donzelinha, que estará tudo bem. Tudo certo. Quero ser a fêmea vaporosa de um guerreiro coberto de ferro da cabeça aos pés. A armadura de aço me fascina, só os homens fortes se revestiam delas. Os fracos se cobriam de seda. <br /><br /> ____________________________________ <br /><br /><br /><br /> Gunther entrou em minha casa e “teve” que ser aceito por todos. Aline, Laís, Matilde, Galdério, tiveram que aceitá-lo. Afinal, eu sou uma “rainha” de minha estância, essa é que é a verdade. Era hora de assumir o meu papel, definitivamente. A minha vontade devia prevalecer. Era o que se impunha, pelo encadeamento de circunstâncias, começado muito tempo atrás, com a morte do Vati. Talvez mais atrás ainda, no velório de Frida, que me chamara princesa, quando era ainda menina. Quanto às crianças, elas já respeitavam o Gunther desde que eu o apresentara a elas como o meu salvador nos momentos de grandes perigos. Elas estavam predispostas a amar o herói. <br /> Aline e Laís não tardaram a ficar fora do quarto, ouvindo nossos gemidos de prazer. Meus gritos de êxtase e alegria. Nunca fui tão cruel, como nesses dias. Agora tenho medo disso... em mim. Como pude fazer isso com elas? Eu estava louca de amor, ou desejo. Mas não me arrependo. Não se trata disso. Estou apenas perplexa com as reviravoltas da paixão, e comigo mesma, por nunca chegar a me conhecer verdadeiramente. Que mistérios, que vulcões existem dentro de mim! De onde vem esse fogo volúvel, esse fogo-fátuo de desejos, alguns inconfessáveis? Mas confessarei. Sim, tudo. Estas páginas servem para isso. Contarei coisas que uma moça não conta nunca, pelo menos neste século, nesta virada de século. Não tenho mais peias, nem mordaças. Contarei como depois de ser tomada “mil vezes” pelo meu guerreiro, como que ouvindo os soluços de minhas gurias amantes atrás da porta, afinal chamei-as para que participassem, pedindo ao Gunther que as conclamasse para o nosso leito, que as possuísse para eu ver, e para ouvir os seus gemidos de prazer e de dor. Eu continuava “generosa”, eu repartia meus amores, meus dons e privilégios. Elas pareceram compreender, nos primeiros dias e noites, embora não sem acumular ressentimentos, principalmente Aline. Ela esperou ver-me só, no quarto, um dia, para gritar: <br /> —Alma, sua bruxa, você é má! Olhe o que está fazendo conosco, com todos nós! Você no fundo é depravada. Olhe, olhe o que está acontecendo conosco! Somos animais na cama desse bruto. Ele é belo, mas é frio, ele não ama. E você, nos ama? Não sei mais! Você nos manipula, você sempre nos manipulou, essa é que é a verdade, até mesmo quando pede para nós a açoitarmos! É você que comanda, e sempre por um capricho insano, que nos corrói por dentro, você não vê? Olhe o que está acontecendo com Laís: tornou-se uma marionete, um belo farrapo humano. E eu? E eu? Vou pelo mesmo caminho! Mas eu tenho um filho para criar, não vou mais corroborar seus caprichos, que não param, não cessam e tendem a se tornar mais graves. Você tem que parar. Tem que mandar embora esse homem. Ele não é um príncipe, ou cavaleiro. Ele é só um bandido, você não vê? <br /> Eu fiquei estarrecida com esse desabafo de Aline, mas depois de hesitar um segundo, protestei:<br /> —Aline, querida, o que é isso? Como podes dizer isso de mim? Eu sempre fui assim mesmo, e te amo, desde o princípio. E você me amou me conhecendo, sabe que reparto, que não tenho ciúmes, que amo o amor e o sexo, não aceito peias nem repressões. Não sou uma burguesa, e tu, parece, às vezes, ter recaídas nesses padrões do Brás. Somos artistas, lembra-te? Tu és um modelo nu, glorioso, de artistas, não te esqueças. Não deixa os padrões morais pequeno-burgueses te dominarem, subirem dentro de ti, vindos lá de trás, da família italiana, de classe média. Não fomos felizes? Não te dei um filho, de um jeito ou de outro? Por quê te queixas? <br /> Aline, furiosa, respondeu-me com uma bofetada. Ela interpretara como cinismo as minhas palavras. Talvez fossem mesmo, pois eu sempre admirara o cinismo, cujo modelo mais pleno e assumido, sem vulgaridade, eu vira sempre em meu irmão. Botei a mão sobre o meu rosto, onde ela o esbofeteara, e permaneci calada, um tanto chocada, por um minuto. Depois continuei:<br /> —Aline, perdoa-me. Não me expressei bem. Mas acho que estás sendo injusta: não tenho essa força de... manipulação. Olha dentro de mim. Perscruta teus próprios desejos. Veja se já não estavam todos aí, desde sempre. Nada posso, se vocês não quiserem. O prazer, o desejo, para mim são sempre belos e sagrados. Sou feliz, apesar de tudo, de toda a dor. Esse é o meu segredo. Quero a vida, quero tudo, quero todas as experiências do coração e dos sentidos. Não posso parar se me ordenam. Só quando meu próprio coração o faz. Vem, Aline, beija-me agora, e vê como sou sempre a mesma!<br /> Coloquei sua mão sobre o meu seio, que palpitava emocionado, e ofereci-lhe meus lábios. Ela retirou a mão e recuou, virou-se, ia sair, mas estacou paralisada. <br /> Então, virou-se e atirou-se em meus braços, devorando-me de beijos, mordendo meus lábios. E dizia: <br /> —Alma, Alma, sua louca, eu a amo, eu a amo. Sou sua. Faça o que quiser, mas não deixe de me amar, não me dê ao Gunther sem cobrar meus beijos, ao mesmo tempo. Sim, me dê a ele, sem descolar meus lábios dos seus! Ele é só um instrumento. Você é minha deusa. Toma-me, toma-me agora, que estamos sós! <br /> Ela arrancou nossas roupas e atirou-se sobre mim no leito, como nunca, numa sede desenfreada, enquanto o pequeno Marco, no quarto ao lado, no seu berço, começou a chorar e a chamar. <br /> <br /> _______________________________________ <br /><br /><br /> <br /> Estávamos vivendo num extremo, no limite. Nossa libido, estimulada pela nova experiência, nos embriagava. E era maravilhoso estarmos vivos! Gunther se instalara em meu quarto, e já não disfarçava, andávamos pela estância inteira, cavalgávamos, os quatro, até muito longe, nos limites das nossas terras. Banhávamo-nos no açude e no ribeirão. Íamos até a nossa cachoeira, para brincarmos, todos nus, antes do almoço que nos congraçava à grande mesa, com as crianças, que estavam adorando aquela fase, embora o Gunther fosse lacônico, e sempre um tanto misterioso. Patrícia era a única que ainda tinha uma certa reserva quanto ao Gunther, chegando a manifestar isso, um dia:<br /> —Tia Alma, quando o Gunther irá embora? Eu preferia quando éramos somente nós aqui, sem ele. Por quê o tio Rôdo está demorando? Por quê tu não o chamas, de onde ele estiver. Sentimos tanta falta dele! <br /> —Patrícia, querida—eu respondi—Tio Rôdo voltará breve. Eu prometo que, quando ele voltar, Gunther terá ido embora. Mas tu tens que saber que o meu novo amigo voltará, de tempos em tempos. Eu gosto dele. Ele me ama, sabias? Ele nunca me fará mal, nem a nenhum de vocês. Eu te garanto.<br /> —Mas, tia, não é isso... é que ficas diferente, com ele aqui. Tu pareces menos forte, e até perguntas coisas a ele, que nem te responde. E, no entanto, ages depois como se ele te tivesse dito o que fazer. Estás toda melosa com ele. E ele é estranho, é frio, não reage como todas as pessoas... Não confio nele. <br /> Fiquei olhando aquele rosto lindo, puríssimo, acariciando a sua face, e meditando. Ela tinha uma certa razão. Eu estava dominada por uma paixão, me tornara submissa. Gunther se instalara “como um posseiro” como disse Chico Buarque, e não tardaria a ditar as regras. Eu tinha que reagir... a mim mesma. Mas, como fazê-lo? Pois eu ficava molinha quando ele me tocava. E adorava ser manipulada por ele. Possuída, sim, possuída. Com força. Ai! A nossa volúpia de abandono, de nós mulheres, nas mãos dos homens! Isso vinha de muito longe. Eu já o estava servindo como uma escrava, gradativamente me submetendo mais e mais. Mas devo reconhecer que o Gunther, talvez por me ter como uma criatura sagrada, diferente de tudo o que ele vira em sua vida, me respeitava ainda, e não abusava demais da minha submissão voluntária, fora da cama. Sim, porque longe do nosso leito eu ainda era uma rainha, ou pelo menos uma princesa, para ele. Ele me admirava. Mas, de noite, nas nossas noites ardentes, ele fazia coisas incríveis comigo, que seu instinto de macho e predador lhe ditava. Não me deterei sobre esses detalhes, embora possa fazê-lo, eventualmente, pois vocês, meus leitores sem rosto, sabem que isso não é problema para mim, e até gosto de fazê-lo. Sim, vou contar um pouco: <br /> Gunther colocava-me em posições complicadas, até de cabeça para baixo, mas o seu maior prazer era mesmo a sodomia, que me fazia imediatamente recordar as estórias do Condestável Gottfried, de minha avó Frida. Comecei a associá-lo mais e mais àquele personagem, e a temer engravidar... por trás! Ele me enchia do seu esperma abundante, e eu andava cada vez com mais dificuldade, um tanto descadeirada. O pior, é que, Aline e Laís também estavam passando pela mesma situação. Também eram sodomisadas na minha frente, todos juntos no mesmo leito. Aquilo tinha o valor simbólico da submissão, eu percebi, no inconsciente de todas nós. Para Gunther representava a sua dominação natural, instintiva, de macho. Aquilo era perigoso, pois estimulava seu instinto masculino, de prepotência e domínio, e podia estender-se gradativamente para fora do leito, e eu acabaria por perder completamente o governo da minha estância. Tive que fazer um imenso esforço para reagir.<br /> Uma manhã, acordando com grandes dores no ânus, e dirigindo-me com dificuldade até a cozinha para pedir um café da manhã à Matilde, encontrei-a com a expressão severíssima, dizendo-me:<br /> —Alma, guria, tu estás um trapo! Olha para ti! O que estás fazendo contigo? É isso que consideras romântico? Mal podes andar! Pensa que não imagino o que esse homem faz contigo? Eu conheço a vida, conheço a nós mulheres. Tu não te envergonhas de te submeteres assim, afinal, a um estranho? Preferia a tuas lambanças com teu irmão! Essa é a verdade. Pelo menos estava tudo em família! Ai! A que ponto chegamos, para eu dizer isso! Alma, tu tens que parar. Manda esse homem embora, antes que seja tarde demais, e te transformes num farrapo, numa sombra de ti mesma. És uma princesa, como dizia tua avó, e também o teu pai. Ou não? És uma escrava? Não serei a escrava de uma escrava! <br /> Fiquei ali diante dela, de cabeça baixa, olhando-a de baixo para cima. Matilde tinha razão. Ela me amava como uma mãe ideal, se posso dizer assim. Ela via o perigo que eu corria. O perigo que eu era para mim mesma! Sempre via as coisas por esse lado. No fundo, ela me conhecia como ninguém! Talvez Aline já me conhecesse assim. E Patrícia, num nível mais inconsciente, de sensibilidade pura. Eu lhes devia, a todas elas, a integridade da minha alma, e até do meu corpo, que corria igualmente perigo. Eu tinha que reagir. Procurei Gunther no limite do meu jardim, e caminhamos de mãos dadas na pradaria, muito longe, naquela manhã esplendorosa, seguidos por pequenas borboletas amarelas que me encantavam. Paramos, eu me virei para ele, e disse:<br /> —Gunther, querido. Deves ir embora. Eu sinto que é chegada a hora de partires. Tive um sonho: a casa estava cercada e ouviam-se tiros. Eu tinha um rifle na mão, e atirava pela janela. Senti um calor imenso no peito, botei a mão ali no meu seio e a olhei coberta de sangue. Então, uma angústia, como uma dor imensa, me acordou. Isso é um presságio, Gunther! Deves partir, pois o cerco está se fechando, eu o sinto. Tenho medo de que morras, e eu contigo. Esta noite consultarei a minha macieira, queimarei as ervas sagradas diante dela. Ela dirá o dia e a hora que deves partir, e o rumo que deves tomar. Algum dia nos reveremos. Isso é tudo, por enquanto. <br /> —Alma—ele respondeu com aqueles olhos azuis sem muita expressão— Tu sabes que eu não ficaria um minuto a mais, sem que me queiras junto a ti. És a rainha, como dizes, e eu teu cavaleiro. Eu me acostumei com essa tua maneira de dizer as coisas. Eu te compreendo. Deves ter razão. Eu partirei no dia e hora que anunciares, pela tua macieira. <br /> Beijei mais uma vez os lábios do meu cavaleiro, e tive que fazer o primeiro esforço para não me deitar ali, na relva, entre as flores, com ele sobre mim, à vista dos peões e das colhedoras de uvas que nos olhavam de longe, com a mão em aba sobre os olhos.<br /><br /> ___________________________________________________<br /><br /><br /> A noite era de lua cheia, magnífica e estrelada. Mas o clarão era tanto, que tive dificuldade de enxergar o Cruzeiro do Sul, e aquelas que associamos ao Negrinho do Pastoreio. Eu colhera ervas durante o dia todo, e com elas numa cesta, dirigi-me, acompanhada de Aline, Laís, Patrícia e Gunther, ao pomar, e armei a trípode diante da minha macieira, a “Ara”. Comecei a queimar as ervas olhando atentamente a coluna de fumo que subia para a lua. Estávamos nós quatro, mulheres, vestindo túnicas finas sobre a pele. Gunther estava como sempre, mas sem paletó, e com a cartucheira com seu revólver no peito, com aquele seu suspensório de gangster. Ele não se desgrudava de sua arma, e eu não pediria jamais que ele se desarmasse. Não se pede isso a um cavaleiro, nem mesmo diante do altar. Somente diante do Graal o guerreiro deve estar nu e desarmado. E o Graal, não o tínhamos ainda em nossa estância. Talvez um dia eu providenciasse a transposição desse mito, para cá, para o Pampa, para a nossa estância e meu vinhedo. Mas o Graal que eu via por aqui era a “Taça de Dioniso”. Estávamos cercados da sua vinha; e sua taça, eu a tinha nas mãos, e era uma cuia de chimarrão, rústica, onde coloquei um tanto da última garrafa do nosso vinho herdado de meus avós, o “Ara dos Pampas”, e molhamos os lábios de cada um de nós. A seguir, invoquei: <br /> —“ Ó Ara, macieira da minha vida, diz-me, pela luz desta Lua magnânima, o que devemos fazer! Gunther deve partir? E quando? Diz-me o dia e a hora! Ele corre perigo? Diz-me, ó minha macieira, dê-me um sinal!” <br /> Todos os olhos estavam voltados para mim, indo e voltando da macieira e da trípode, para o meu rosto. A curiosidade, eu percebi, era a nota dominante naqueles rostos, afinal ingênuos. Mas eu estava mesmo imbuída, e sempre acreditei na realidade da inspiração, e sentindo uma súbita brisa que inclinou a coluna de fumo na direção do campo aberto, fechei os olhos e disse: <br /> —“Sim, minha Ara, eu vejo a direção, do oriente, do levante, do sol nascente. Gunther deve partir ao nascer do sol, na direção do próprio arrebol, às seis da manhã em ponto ele deve estar marchando, na pradaria, esta manhã, mesmo”. <br /> Fiz um longo silêncio, tenso, afinal relaxei e abri os olhos. Então “desfaleci” nos braços deles. Gunther tomou-me nos braços e carregou-me de volta para casa. Eu me sentia uma intrujona, uma charlatã, embora o próprio Gunther sutilmente corroborasse a minha atuação. Eu tinha vontade de sorrir, ao mesmo tempo que sentia uma dor persistente no meu peito, uma angústia crescente, enquanto era carregada pela última vez, nos braços do meu “guerreiro do Walhalla”. <br /> <br /> ____________________________________________<br /><br /><br /><br /> A Vinha de Dioniso<br /><br /><br /> Capítulo Segundo<br /><br /><br /> A Ausência de Dioniso<br /><br /><br /> Estávamos novamente sós, no casarão, isto é, faltava-nos a proteção de Rôdo, já que o Galdério, coitado, nunca fora muito operante. Eu me sentia só, com Aline e Laís, com todos. Eu estava insuficiente, depois da perda do meu guerreiro. Eu o vira afastar-se, de madrugada, depois de possuir-me quase com desespero, enchendo de seu sumo todos os meus orifícios, e sugando-me toda, meus fluidos e minha saliva, como quem carrega seus tanques para uma jornada de guerra. Eu quis retê-lo dentro de mim, e apertei o seu grande falo com meus músculos internos, ordenhando-o de maneira prodigiosa e exasperada. Ele teve que desvencilhar-se afinal, retirando-se de mim, de dentro de mim, com esforço, ou não poderia partir. <br /> Agora eu estava novamente só, cercada de mulheres que não me supriam mais. Eu sentia como se me sugassem a sobra das minhas energias. A química não funcionava mais. Ou, os pólos não eram antípodas, a corrente não fluía. Eu precisava do pólo oposto. Gunther me viciara em seu branco visgo, em sua lança rubra de guerreiro, desculpem-me a imagem um tanto óbvia. Mas era assim. <br /> Eu não conseguia olhar Matilde sem um laivo de ressentimento, como se ela fosse a feitora de uma espécie de escravidão, agora sim, eu sentia isso. Eu me sentia refém de algum dever para com os outros, para com as pessoas que me eram caras, e não gostava de me sentir assim, comprometida. A artista em mim ansiava por liberdade, disponibilidade, amplidão. Comecei a dar pequenas patadas nas minhas queridas, poupando somente as crianças, que para mim eram sagradas, Patrícia entre elas. <br /> Aline chorava, Laís soluçava. Olhavam para mim como cachorrinhas carentes. Aline amamentava o Marco olhando-me nos olhos, perscrutando-me. Eu estava distante, e sem energia. Custei a dar-me conta de que estava sob uma pequena depressão crônica. Eu não conseguia escrever ou pintar, e confesso que preferia tentar masturbar-me, sozinha, lembrando do Gunther, a deixar-me manipular por minhas queridas, que agora eu rejeitava. Eu ficava horas olhando a pradaria, ou andando a esmo por entre as flores do jardim, sem colhê-las, sem tecer guirlandas, que eu pensava nunca mais coroar-me junto com elas, as gurias, que me pareciam escravas como eu, não mais princesas.<br /> <br /> __________________________________________<br /><br /><br /> Epílogo<br /><br /> Então, Rôdo voltou. Mais uma vez, meu irmão adorado voltou. E eu, vendo o seu carro ao longe, vermelho, como uma bola de fogo que tornaria a aquecer a minha alma hibernada, eu me levantei da cadeira de balanço e gritei, até desfalecer de uma alegria súbita, a que me desacostumara. <br /> Acordei em seus braços, com o seu sorriso sobre mim, seus brancos dentes fortes, perfeitos, em seus lábios maravilhosos, de onde saiam as palavras mágicas, de cura, de ressurreição:<br /> —Alminha, continuas a mesma, princesa. Sempre exagerada, não é? Desmaias ao ver-me? Tenho que avisar-te com grande antecedência, talvez? Ah! Minha irmãzinha, vem, vem aos meus braços!<br /> Ele me abraçava e me apertava junto ao seu peito, profundamente, e... eu queria afundar-me nele, penetrar no seu peito e perder-me ali para sempre, dissolvida em sua alma e em seu coração. Éramos um só, de alguma maneira, eu sentia. E isso sempre fora um mistério em nossa casa. Neste casarão, neste jardim, e neste Pampa onde eu me via agora cavalgando para sempre, com meu cabelo louro ao vento, ladeada por um vinhedo infinito, que tinha, pairando sobre ele, a máscara sorridente de meu pai, o grande cirurgião-pianista, o alquimista da vinha, o maestro que continuaria orquestrando a harmonia de nossas vidas para sempre. <br /> Rôdo, Aline, Laís, Patrícia, Pedrinho, Matilde, Galdério, Alícia, Lúcia, Hans e Christian, e o nosso pequeno Marco, eram a nossa orquestra de câmara, de um concerto que levaríamos até o fim, até a eternidade, no meio de um vinhedo perfeito, a vinha de Dioniso, a vinha amorosa de meu pai. <br /><br /> ________________________<br /><br /><br /> FIM <br /> Do romance O Sangue da Terra<br /><br />01/08/2005Lúcia Welthttp://www.blogger.com/profile/07605250870392022092noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-1144945790463198462.post-28671934481172726292007-10-28T07:22:00.000-07:002008-01-18T14:34:40.748-08:00O RETORNO DOS MENESTRÉIS (Romance de ALMA WELT)<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZU10pV0pemAn85qPWN9lNUFdTyxcin7LhN7y5K5IwTvZLrwKt9cDbRz1iuWf0Z6o9OH_J9py0E9EXu7WD1v5hOea5KCzi5_FY0dbAv09JgmHd8GYwMc0sYv4eIqW8tPwcwqZAt7SCttgU/s1600-h/Cordel+2.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiZU10pV0pemAn85qPWN9lNUFdTyxcin7LhN7y5K5IwTvZLrwKt9cDbRz1iuWf0Z6o9OH_J9py0E9EXu7WD1v5hOea5KCzi5_FY0dbAv09JgmHd8GYwMc0sYv4eIqW8tPwcwqZAt7SCttgU/s320/Cordel+2.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5156947403743065410" /></a><br /> Xilogravura de Guilherme de Faria representando Alma e Josué voando no Pavão Misterioso sob a mira do canhão de Ludugero.<br /><br /><br /><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhYJ9mi9QRo0dA3JtXn6nDyPaqFFL-5TIGw1LXBnUTmJJmJXolzRjKEA11kbOV0wz05uJTrkaTY9a2wdESXRg-GIKHflDt9UhtbA2LzYJ5F8hpTHL_P8bBF6HjwsoIe6tZpBXp9PWcjaJL_/s1600-h/Pav%C3%A3o.jpg"><img style="display:block; margin:0px auto 10px; text-align:center;cursor:pointer; cursor:hand;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhYJ9mi9QRo0dA3JtXn6nDyPaqFFL-5TIGw1LXBnUTmJJmJXolzRjKEA11kbOV0wz05uJTrkaTY9a2wdESXRg-GIKHflDt9UhtbA2LzYJ5F8hpTHL_P8bBF6HjwsoIe6tZpBXp9PWcjaJL_/s400/Pav%C3%A3o.jpg" border="0" alt=""id="BLOGGER_PHOTO_ID_5134212832451719234" /></a><br />"O Sonho de Alma Welt com o Pavão Misterioso'- óleo s/ tela de 100x100cm, de Guilherme de Faria, que ilustra a capa do romance "O Retorno dos Menestréis", de Alma Welt. A pintura original pertence à coleção do Instituto Paulo Gaudêncio, São Paulo, Brasil.<br /><br /><br /><br /><strong>O RETORNO DOS MENESTRÉIS</strong><br /><br /><br /><br /><br />ALMA WELT<br /><br /><br />(Romance)<br /><br /><br /><br /><br /><br />"Ah! A Alma em seu delírio!<br />Por vezes branco qual lírio,<br />Às vezes negro sombrio<br />Como um tenebroso rio...<br /><br />Mas no final, atenção!<br />Volta o riso, eis a meta<br />Do vôo deste Pavão<br />Que sonha a alma desperta." <br /><br /><br />Versos retirados do cordel “O romance do Cordelista”<br />de autoria de GUILHERME DE FARIA<br /><br /><br />Alma Welt<br /><br />O Retorno dos Menestréis<br /><br />Capítulo Primeiro<br />_________________<br /><br /><br />A Procura do Sertão<br /><br /><br />Vida, que bom mistério<br />Amá-la com sua dor!<br />Mas sem a levar muito a sério<br />É que encontras seu valor...<br /><br />das “Trovas Picaras III”, Cordel de <br />autoria de Guilherme de Faria<br /><br />Depois de cinco anos, estou de volta, a caminho de Olinda, essa cidade encantadora, onde fui tão feliz por dois anos e de onde parti para o sertão para encontrar o Pavão Misterioso, com Josué, um amor da minha vida, e com os menestréis, numa saga que contei resumidamente no meu conto “Na Trilha dos Menestréis”, já publicado em livro, em São Paulo. Digo em livro, porque meu descobridor e prefaciador paulista vem há anos publicando meus poemas em forma de edições de folhetos de cordel, como gênero editorial, claro, pois não sou cordelista no sentido do gênero literário nordestino, infelizmente, como ele próprio, o Guilherme de Faria faz tão bem, apesar de ser paulistano, nascido e criado às margens (como ele diz) da rua Augusta, o que é, no mínimo, um fenômeno. <br />Descendo no aeroporto de Guararapes, pego um táxi para Olinda carregando apenas a minha mochila de viagem, com o mínimo possível dentro, mas com tudo o que preciso: presentes para Fiora, mulher do meu marchand italiano, o Giuseppe, para o Mateus o filhinho do casal, para Anunciada a babá do menino, e para Josué, que espero ardentemente reencontrar. Quem leu meu conto sabe do que estou falando. Para os novos leitores, adiantarei que tive uma estranha relação com este jovem sertanejo que tocou as fibras ancestrais de um coração nordestino que eu não imaginava sequer ter tido, antes de encontrá-lo. A experiência desse encontro predestinado, foi tão forte que eis-me de volta depois de muito lutar, “escabrear” como diria um sertanejo, contra esse destino, ou simplesmente esse reencontro no sertão de nossas vidas, sob a égide mágica do Pavão Misterioso. Mas vocês, meus leitores, vão logo entender o que estou querendo dizer. <br />Ao descer do táxi na rua de São Bento, numa altura próxima do famoso mosteiro, com a mochila na mão e logo colocando-a nas costas como um andarilho ou peregrina, nitidamente forasteira, com minha alvura bandeirosa de sulista, ou melhor de descendente germânica, atraio os olhares ostensivos das janelas e alguns ocultos, que pressinto. Não estarão me reconhecendo? Sou Alma, já estive aqui há cinco anos e vocês já pareciam gostar de mim, por quê não saem para saudar-me? Ah! Deixem para lá, aí vem os meninos querendo contar a história de Olinda, aquela cantilena... Mas são outros! Aqueles que conheci já cresceram, sumiram? Mas... haverá sempre “meninos de Olinda”, pobrezinhos, e contadores da mesma história que lhes permite sobreviver...<br />Bato à porta do casarão colonial do Giuseppe, e quando a porta se abre caio nos braços de Fiora que grita de alegria, chamando o marido. Logo recebo o abraço espalhafatoso do italiano, que diz com aquele sotaque: “Belíssima! Ma stai belíssima, Alma. ‘Cosa fai per stare sempre cosi? Bah! Que patzo. Tu sei ancora giovanne !” <br />Logo Anunciada aparece, e eu a abraço percebendo que está com os olhos cheios de lágrimas. Olho-a bem, comovida que está, e beijo-lhe as faces molhadas, enquanto Fiora parece estranhar tanta deferência com a mucama. Minha amiga não sabe o que ocorreu há cinco anos, comigo, em relação ao irmão desta sertaneja, cujo acalanto ao Mateus desencadeou toda aquela saga em que me vi envolvida. Não pude deixar de pensar e buscar dentro de mim, as raízes profundas daqueles acontecimentos, e estou, na verdade, voltando pelo chamado dessa imagem fortíssima que está dentro de minha alma puxando-me para lá, para o sertão. Olinda é só um ponto de partida, onde colhi a ponta do fio da meada, para penetrar nesse labirinto, onde no centro está, não o Minotauro certamente, mas o Grande Pavão Misterioso, que assombra ou encanta tantas noites minhas desde então. <br />Depois de ser levada ao quarto de hóspede para me banhar e voltar à sala e à cozinha para tomarmos um lanche típico, eu sou instada a contar tudo o que vem me acontecendo em São Paulo que eu possa compartilhar com eles. Fiora agarra-se a mim, carente que está de uma amiga do “seu nível”, aqui nesta cidade que, na verdade, lhe continua estranha. Anunciada, eu reparo, fica ali num canto da cozinha, discretamente bebendo minhas palavras, mas olhando-me muito. Terá o seu irmão lhe contado o que se passou entre nós? É bem possível. Ela parece fascinada. Bem, ela já o era há cinco anos atrás, quando cantava o “boi da cara preta” para o Mateus com sua melodia castelã, diferente da do sul, que me encantou e me fez perceber que ela teria sido uma dama da corte... bem, mas vamos devagar, meus novos leitores, não quero assustá-los, não estou delirando ainda... embora pressinta que isso possa novamente acontecer aqui nessa terra auspiciosa, que me arrasta para domínios insuspeitados, que confesso, tanto me assustaram e... assustam ainda. Estará tudo aquilo na minha alma, ou na minha cabeça tão sugestionável? Ah! A facilidade com que me apaixono, e piro! Como posso confiar em mim mesma? Sou uma delirante, com minha alma de poeta, isso sim, com meu invencível entusiasmo pela beleza do mundo e das pessoas. De algumas pessoas, de tantas pessoas! O ser humano é grande! Ninguém me provará nunca o contrário, malgrado tanta miséria, tanta infelicidade... tanta crueldade! Mas, vejam: um único ser humano belo, no mundo, já seria prova de uma estirpe divina, e do potencial feliz de toda a humanidade. Deus quer assim: que encontremos o fio da meada do destino superior, no meio do labirinto humano, do Dédalo da Vida! <br /><br />_______________________________<br /><br />De noite, depois dela cumprir as suas tarefas, chamo Anunciada ao meu quarto para conferir com ela estes cinco últimos anos, no que diz respeito a nós três, ela, seu irmão Josué e eu. Ela diz, emocionada, pausadamente:<br />—Ah! Dona Alma, meu irmão não a esqueceu! Ele parece que parou de viver. Está no ar, esperando descer há cinco anos. Ele não chora, não, não é isso. Parece adormecido, esperando, esperando... a senhora. Fizemos de tudo, pois pensávamos que a senhora nunca mais voltaria, para acordá-lo desse sono estranho. Ele trabalha como um sonâmbulo, e a única coisa que ele faz é desenhar um máquina em forma de pavão, uma engenhoca voadora, os planos todos forrando o quartinho dele em Recife, e na casa de meu pai, que morreu há dois anos, desgostoso com Josué. Eles brigavam muito, meu pai não se conformava. Sabe o que o velho dizia? “Josué seu cabeça dura, seu jegue, essa moça era uma princesa, era só olhá pra ela, não era pro teu bico. Tu és um bronco, chucro, que pensavas? Que ias ser príncipe no seu castelo? Lé com lé, cré com cré, nunca ouviste? Agora estás aí feito um farrapo humano, ou pior, feito um sonhadô ridíco. <br />Ofegante, eu perguntei nesse momento, à mucama:<br />—E aí, Anunciada, o que teu irmão respondia, podes dizer-me?<br />Ela hesitou, de olhos baixos, depois ergueu-os e revelou o coração e o segredo de seu irmão, de uma maneira que eu própria não esperava:<br />— Ele disse uma vez, uma única vez ele disse tudo, ele respondeu ao velho, de uma vez por todas: “Eu a tive nos braços, pai, ela foi minha! Eu a possuí até o seu leite e o seu mel escorrer em mim. Seu sangue, eu lambi para secar-lhes as feridas da caatinga, na sua pele de seda. Eu bebi o seu hálito perfumado, meu pai, eu fui ao céu. Eu voei com ela, no Pavão Misterioso, na minha alma. E ela... ela me amou, meu pai, ela voou comigo! Agora quero morrer!”<br />Não consegui reter um soluço. Ou um gemido. Deixei as lágrimas rolarem. Olhada com ternura, por Anunciada, que segurou-me a mão, eu disse:<br />—Anunciada, minha irmã, é verdade, é verdade, eu o amei, eu me entreguei ao seu irmão naquela caatinga áspera, no meio dos espinhos, sangrando, a primeira vez, depois por todo aquele sertão, de volta, até estarmos completamente loucos ou bêbados de paixão. Estávamos vivendo num sonho perigoso, delirante. Tive medo, sempre tive medo desde a primeira vez que o vi. Teu irmão ecoou dentro de mim, como se o conhecesse, de uma outra vida. Aliás, sei que foi isso mesmo! Já nos conhecêramos e por isso foi tão forte! Mas, eu não podia, eu não queria continuar com aquilo, tive medo de me perder naquele amor, no meio daquele pó, naquele sertão bruto. Tive medo de me embrutecer. Eu estava errada, eu sei. Eu iria talvez me elevar, não cair, mas eu sou fraca, tive medo, tudo em volta era tão rude! Mas, seu irmão, Anunciada, eu sei, ele não é rude, ele é... um príncipe guerreiro, couraçado de seu gibão, armado da cabeça aos pés, em sua alma. Ele foi o construtor do Pavão, eu acredito, outrora, a máquina de voar que assombrou este sertão. E eu voei com ele no Pavão, numa outra vida, eu quase me lembro, como certamente voltei a voar em seus braços. Anunciada, me perdoa por tanto sofrimento de teu irmão! <br />A mucama me abraçou, soluçando as duas, e assim ficamos muito tempo abraçadas, numa suave dor que nos irmanava em torno do infeliz Josué, que tivera a desgraça, como diria seu pai, de reencontrar esta princesa aqui, decaída. <br /><br />__________________________________________ <br /><br /><br />Naquela noite, como era de se esperar, fui assombrada por vagas visões em meu sono, com sensações um tanto eróticas, deliciosas. Mas o Pavão não fez a sua aparição no sonho, surpreendentemente. Entretanto, eu tive a sensação de estar sendo beijada nos lábios e tocada ali, em baixo, por mãos femininas. O que poderia ser? Eu mesma, minha Anima me provocando? Não sei responder. Acordei com uma dormência nos lábios, como naquela noite na rede, na casa do velho Malaquias, o pai de Anunciada e Josué. Só que agora esse formigamento estava ocorrendo ali, na minha vulva, também. Eu tinha a nítida impressão de que alguém real me beijara e me apalpara enquanto eu dormia. Guardei, no entanto, essa desconfiança para mim, no café da manhã, à mesa com Fiora e Giuseppe, para não parecer ridícula ou paranóica. Meu marchand italiano, dizia com uma mistura de línguas, no seu sotaque delicioso:<br />—Alma, vucê parece que teve sempre qüi, que non nos dexô há cinqüe anni. Non né, Fiora? Mangia, mangia, figlia. Dispois vucê vai me mostrá as obra que a fatto.<br />Ele se referia ao portfólio que eu trouxeram com as fotos de algumas das minhas obras destes cinco anos. Mas eu, na verdade, não estava ali, por isso. Aquilo se tornara secundário, e minha verdadeira motivação ao voltar à Olinda, era refazer o itinerário da trilha dos Menestréis, se é que isso era possível. Seria possível encontrar o fio da meada, tantos anos depois? A vida permite uma secunda chance? Em geral, não, eu sei. Mas meus sonhos tinham se intensificado em relação àquela experiência, depois de anos, e não o contrário, e me arrastaram para aqui. Agora, depois da revelação do sofrimento, da espera e das palavras de Josué, ao seu pai, reveladas por Anunciada, eu não poderia mais me furtar a um reencontro, desse no que desse. Não se faz amar e sonhar a alguém em vão... ou impunemente. Quem atravessa nossa própria trilha é porque estava no nosso destino escrito. Josué, pelo tanto que sofrera por mim, me merecia. Talvez eu é que não o merecesse, pois eu fora fraca ou covarde. Mas, por outro lado... também aquilo fora destino. <br />Naqueles dias, eu me senti em casa, junto de Fiora e Giuseppe, e brincando muito com o Mateus que estava com quase seis anos, e que me recebeu, como se me reconhecesse, criança adorável. Eu nunca esquecera de como Fiora o colocou cavalgando o meu ventre, como o ‘‘boy on a dolfin” ainda deitada na cama, ao despertar naquela manhã, há cinco anos atrás, em que fui chamada para encontrar Josué, na cozinha, quando me conheceu e confirmou o convite insinuado por Anunciada, para acompanhá-lo naquela expedição predestinada, em busca do Pavão. Mas agora, Fiora agarrava-se a mim, mais ainda (eu já sentira o seu apego naquela época). Ela sabia agora por quê eu voltara, e sentia que não tinha muito tempo, antes de... declarar-se. Sim, minha linda amiga, casada com o meu marchand, resolveu procurar-me na segunda noite de minha hospedagem. Tarde da noite, ela, hesitante, estranha, bateu na porta do meu quarto, e eu abrindo, abraçou-me imediatamente, suspirando e gemendo, dizendo:<br />—Alma, Alma, não agüento mais, eu amo você Alma, eu adoro você, deixe-me beijá-la Alma, há tanto tempo que quero fazer isso, minha linda. Dá-me, dá-me teus lábios, dá-me teu corpo, que não resisto mais. Eu sonho com você. Há anos, desde aquela época. Agora que você voltou quero ser sua, e que você seja minha, pelo menos uma noite, esta noite, Alma. Não me recuse! (ela dizia isso tudo, ofegante de emoção, agarrando-me e beijando-me sem parar). <br />Conduzia-a ao meu leito, ou foi ela que o fez, não sei bem, e deitei-me com ela por cima, deixando que ela me tivesse, que fizesse tudo o que quisesse comigo, pois uma paixão assim, merecia. Merecia tudo, meu corpo, e meus beijos, por uma noite ao menos, mas inesquecível! Assim deixei-a me despir, o que ela fez com afoiteza, com sofreguidão mesmo, e vendo-me nua, arregalou os olhos, dizendo:<br />—Alma, é inacreditável, você é linda demais! Sua pele é branca como alabastro, sem nenhuma mancha, marquinha, sem uma verruga, um defeito... uma pinta sequer! Isso não existe, não é possível, você nunca toma sol? Você vive à noite? Chega a dar medo... quem é você, Alma, qual é o seu segredo?<br />Ela me devorava de beijos, me lambia, e não tardou a descer lá embaixo, como eu previa, para sentir o meu cheiro, daquelas partes, isto é, da minha vulva, que ela naturalmente já encontrou ensopada, e do meu ânus, que felizmente estava bem lavado, até por dentro, hábito que eu adquirira depois de perceber que esse botão nas mulheres, rosado como o meu ou não, era, de longe, a preferência nacional, senão mundial, essa é que era a verdade, embora não necessariamente limpo, perfumado, lavadinho e enxaguado, assim. Por alguma misteriosa razão as pessoas o preferem sujo mesmo.<br />Fiora começou lamber-me atrás, e na frente, sugando em seguida o meu clitóris, e mordiscando-o, enquanto eu gemia, com um prazer imenso, que eu não imaginara antes, com essa italiana. Deixei-me abrir toda, enquanto ela levantava muito minhas pernas para expor-me toda, enquanto enfiava a língua nos meus dois buraquinhos, alternadamente. Então virou-me de bruços bruscamente, com força, e abriu minhas nádegas expondo-me aos olhos do... seu marido! Sim, Giuseppe entrara sem que eu percebesse, nu por baixo de um roupão, e com o pênis enorme em riste, que avistei, num relance, olhando para trás. Mas não me alarmei, nem muito menos saltei da cama como se podia esperar de uma situação assim, grotesca e inesperada. Eu sempre me entrego ao sabor das circunstâncias, adepta do Tao, que sou, deixo fluir! E assim fui empalada por trás por aquele imenso falo previamente lubrificado, eu bem notei (tudo fora premeditado por eles!), quente, viscoso, que provavelmente tanto sonhara com isso, durante anos. Fiora abrira minhas nádegas, e mantinha-as abertas para observar o pênis de seu marido entrando e saindo das minhas entranhas até que ele gozasse dentro, junto com seus próprios orgasmos múltiplos de surpreendente voyeuse.<br />Depois de uma hora de orgias indescritíveis, em que o italiano maduro revelou-se um atleta campeão, capaz de três orgasmos, revezando-nos em todas posições possíveis (algumas impossíveis), adormecemos todos juntos, enroscados, no leito enorme, de hóspede longamente aguardada, agora eu sabia. <br /><br />____________________________________<br /><br />Acordei naquela manhã, sozinha no leito, lembrando-me dos lances da noite, do incrível ménage, e cheguei a pensar que tudo não passara de um sonho ou de um delírio. Teria aquilo tudo acontecido mesmo? Mas sentindo então as minhas partes e, pondo a mão e olhando-as, não tive mais dúvidas, eu estava dolorida, na frente e atrás, e cheia de resquícios. Levantei-me com dificuldade e caminhando quase penosamente, fui tomar uma ducha matinal. Depois vesti-me para descer à cozinha para o café da manhã com os meus ousados hospedeiros, que eu quase temia confrontar, por constrangimento... vergonha mesmo. <br />Ali, naquela maravilhosa cozinha, que parecia a de uma casa-grande colonial, em pleno século XVIII, restaurada que fora pelo marchand com esse propósito, encontrei-os me esperando, e me festejaram, desejando-me bom dia, com naturalidade. Digo festejando, porque Fiora, encantadoramente disse:<br />—Bom dia, querida, e seja bem vinda na sua primeira manhã nesta casa! Você dormiu bem?(ela sorriu) Desculpe-nos alguma coisa... Mas você vai gostar tanto daqui que não irá mais pro sertão, espero. Anunciada me contou os seus planos. Ah! desta vez, não, não a deixaremos ir! (o Giuseppe olhava-me sorrindo, e os dois pareciam ligeiramente irônicos ou maliciosos, mas com carinho real).<br />Um tanto envergonhada diante daqueles olhares, dos dois que pareciam percorrer meu corpo, rememorando-o, já que o conheceram tão bem, eu sorri, mas de olhos baixos, concentrando-me na organização do meu café, até que os ergui e os enfrentei com meus olhos verdes, mais firmes, assumidos. Fiora estremeceu, eu percebi, enquanto Giuseppe olhava intrigado para nós duas. Fiora levantou-se da sua cadeira do outro lado da mesa e veio até mim, agarrou-me o rosto e beijou-me os lábios, dizendo com firmeza e convicção:<br />—Não, Alma, você não irá embora desta casa. Não deixaremos, não é Giuseppe? Agora você é nossa, é nossa ouviu? Nem que tenhamos que pôr uma corrente no seu lindo tornozelo. O sertão! Você está louca, aquilo mata. E o Josué que não apareça por aqui, toco-lhe os cachorros em cima, já avisei a Anunciada. <br />Olhei bem Fiora nos olhos para ver se ela estava brincando, mas estremeci percebendo que seus olhos faiscavam! A italiana revelava-se, estava apaixonada por mim, e era possessiva, de uma maneira estranha, pois me compartilhara com seu marido, dera-me a ele, numa verdadeira armadilha. Tremi, então, naquele momento, percebendo que já era mesmo prisioneira deles. Levantei-me da mesa, voltei ao meu quarto e apanhei minha mochila. Passei por eles novamente, olhando-os desafiadoramente e dirigi-me para a porta. Mas ao torcer a maçaneta para abri-la, vi que estava trancada. Não consegui sair. Virei-me encostando minhas costas na porta, assustada:<br />—Que brincadeira é essa, Fiora, Giuseppe? Vocês estão brincando, não é? Deixem-me partir, eu lhes peço. Josué espera por mim! Faz cinco anos, estou atrasada!<br />Fiora, respondeu com um olhar triste, mas duro ao mesmo tempo:<br />—Não, Alma, você não partirá. Não antes de cessar esse impulso no qual se atirou, nesta vinda. Tens que ponderar muito, e conseguir convencer-nos mas não por argumentos, da sensatez do seu propósito, que nos parece insano. Nós já lhe conhecemos, Alma, é uma delirante, e temos de protegê-la de você mesma. O Pavão Misterioso! Está louca! Eles enfeitiçaram você com aqueles mitos do sertão. Quando voltou, a esta casa, há cinco anos atrás, retornando da sua “expedição do Pavão”, estava louca, delirou três dias no leito. Estava marcada de espinhos, e havia como que um no seu coração. Nós é que sabemos o que você passou, na sua alma, eu e o Giuseppe, não é, Beppe? Pensávamos que íamos perdê-la, sua razão vacilava numa estranha fronteira, de um sertão, sim de um sertão da sua cabeça. Não podemos deixá-la partir, para o seu bem!<br />Para o meu bem! Mais uma noite como a de ontem e eu morro! Virei-me novamente e forcei inutilmente a porta. Então escorreguei ao longo dela e sentei-me no chão, desolada. As lágrimas corriam em meu rosto e senti-me fraca, impotente. Realmente não poderia sair agora, assim... fui praticamente carregada de volta ao meu quarto, ao meu leito, por Fiora e Giuseppe, e minha amiga ficou longo tempo sobre mim, acariciando meu rosto e dando-me beijinhos, em lágrimas também. Voltei a adormecer, transformando num sonho o corpo de Fiora sobre mim, no corpo de Josué, possuindo-me com todas as dores dos espinhos da caatinga, sobre cuja noite infinita e estrelada, pairava o Pavão Misterioso. <br /><br />________________________________________________ <br /><br />Naquela tarde, sem ter saído mais do meu quarto, recebi nova visita de Anunciada, um tanto furtiva, que olhando muito para trás em direção à porta que adentrara, disse-me:<br />—Dona Alma, eu não podia estar aqui. Dona Fiora me proibiu de me aproximar da senhora. Parece que a senhora é prisioneira dos meus patrões, não é? Olha, não posso nem avisar ao Josué que você está aqui, ele não tem telefone, e estou igualmente prisioneira. Como vai acabar isso, dona Alma, estou com medo. Nunca vi os meus patrões fazerem uma coisa assim. Parece que eles acham que a senhora está louca por pensar que ama meu irmão. Eles me interrogaram muito e proibiram-me de falar com a senhora!<br />—Anunciada, não tem um jeito de eu fugir pelos fundos, por uma outra porta que não pela rua de São Bento? Não conheço bem esta casa. Leve-me a uma saída pelos fundos.<br />—Não, dona Alma, aí é que tá o problema. A casa dá para a Ribeira na rua de baixo, mas é muito alta, o quintal tem um muro altíssimo e áspero, e a senhora é muito delicada para descer aquele muro, é muito arriscado. Se a senhora fosse uma moleca! Mas com essa pele, essas mãos finas e esses pés tão delicados, seria horrível. A senhora ficaria toda esfolada. Aliás, do jeito que senhora voltou do sertão. Também acho que o Josué não devia levá-la pro sertão, a senhora é uma princesa que nem toma sol, de tão branca. Aquilo ia acabar com a senhora! <br />Olhei o rosto puro de Anunciada, seus olhos límpidos de cabra, aqueles olhos sertanejos de pureza ímpar e aproximei meus lábios de sua boca cheia, saliente, desejável, e beijei-a. Ela pestanejou, surpresa, e logo uma lágrima assomou nos seu olhos, e ela pôs a mão no peito, dizendo ofegante:<br />—Dona Alma, não faz uma coisa dessa comigo, não passo de uma mucama, como você dizem, e chucra. A senhora é uma princesa! Não devia... fazer isso. <br />Passei-lhe uma vez mais a mão no seu rosto, sem responder-lhe. E ela se retirou, emocionada e confusa. Mas se eu tinha sido espontânea no meu carinho! Não tinha porque me recriminar a mim mesma, embora estivesse ainda com o gosto de seus lábios nos meus... <br />Eu sabia, no entanto, que eu lidava com outra cultura, com hábitos muito diferente dos meus. Eu estava no mundo... deles! <br /><br />___________________________________________ <br /><br />Passei nos dois dias seguintes a trancar a porta do meu quarto por dentro, para evitar a visita noturna do casal. Creio que eu estava um tanto revoltada. Mas ao terceiro dia eles entraram e repetiram aquelas façanhas. Eu me senti fraca para resistir a mim mesma, pois os dois eram especialistas naquele ménage, essa é que era a verdade. Além disso, Fiora era um enigma, pois parecia autêntica em sua paixão por mim, embora me dividisse com o seu marido. E eu, vocês me conhecem, no fundo adoro a “sujeição voluntária”. Logo tornei-me a escrava sexual daquela dupla estranha que ao mesmo tempo era um casal tão normal, tão devotado ao filhinho. Mateus continuava brincando comigo, adorável, em meu colo, enquanto, ao mesmo tempo, eu sentia as dores e congestionamento nas minhas partes, como seqüelas das orgias da noite anterior. <br />Mas após uma semana daquela espécie estranha de prisão, eu já era prisioneira de minha própria sensualidade, um tanto mórbida, pois me deixava usar cada vez mais, de forma radical, chegando ao meu indefectível masoquismo. Era como se eu quisesse, no fundo, morrer por dissipação. E suave sofrimento... até o momento em que, uma noite, eu retirei da minha mochila, diante de Fiora, aquele rabo de tatu de couro cru, trançado, de meu avô, entregando-o a ela, surpresa, dizendo:<br />—Eis o instrumento da minha paixão, de todas as minhas paixões! Faça-me sofrer, mais do que já estou sofrendo. Dá-me minha dor, Fiora, já que és mesmo minha “carrasca” e feitora. Não sou tua prisioneira? Dá-me então a minha dor na carne, que já a tenho na alma!<br />Eu bem que percebi o meu próprio tom melodramático, mas aquilo expressava a essência do que eu estava vivendo, embora fosse tão patético. Eu sou assim! Desnudei-me, então diante dela. <br />Fiora, a princípio hesitante, de olhos arregalados, tomou a chibata em suas mãos e ergueu-a. Eu dei-lhe minhas costas e curvei-me um pouco, humildemente. Estremeci sentindo a primeira lambada nas minhas espáduas. Então, de repente, a porta se abriu e Giuseppe segurou o pulso de sua mulher, tomou-lhe o relho e retomou, ele mesmo, a tarefa. Com a violência de homem, com a força de um carrasco da Inquisição, enquanto eu gemia e chorava voluptuosamente, logo penetrada pelo imenso ferro em brasa do italiano com a ajuda prestimosa de sua assistente Fiora, rainha das sombras dos porões de Olinda, na minha imaginação incendiada. <br /><br />_____________________________<br /><br />Fiquei vários dias de molho no meu quarto. A doce Anunciada vinha me tratar as costas e as nádegas, desolada, abanando a cabeça. Nessa tarefa ela era alternada pela própria Fiora, que torcendo o fatos transformou aquilo sutilmente numa punição cabida por uma suposta tentativa de fuga, esquecendo que fora idéia e iniciativa minha. Ela dizia:<br />—Está vendo, minha linda? Você não deve mais tentar sair daqui. Não vê que não tem o controle de si mesma, e se destruiria logo naquele sertão? Logo estaria apanhando do Josué, e com um relho de couro cru de cabra, que você não conhece, e que faz o rabo de tatu do seu avô parecer uma fita de seda. Ah! Minha linda, fica aqui conosco para sempre, que a amamos tanto. Venha, dê-me esses lábios que não posso olhar para eles sem querer beijá-los.<br />Deixei-me beijar, é claro, eu deixava tudo, certa de que meu destino não dependia mesmo de uma reação de minha parte e de que o que tivesse de acontecer aconteceria. Depois, eu estava tendo tanto prazer naquele sofrimento! Ao pensar nisso, lembrei-me do meu psicanalista em São Paulo, o doutor Platus, e quis ligar para ele. Implorei à Fiora:<br />—Fiora, deixa-me ligar interurbano para o meu psicanalista. Amorzinho, deixa-me falar com ele, pois estou muito confusa, e temo ficar louca. Ele segura um pouco a minha cabeça.<br />Fiora passou-me o telefone, mas ficou ali, ostensivamente me vigiando.<br />—Alô, Alô, doutor Platus? Sou eu a Alma. É... Estou em Olinda na casa de Fiora, de Giuseppe, meu marchand. Olha, não estou bem, não, tive uma recaída daquilo. Estou me maltratando muito, estou lanhada da cabeça aos pés! Quê? Isso não importa, doutor, tu sabes, sou eu mesma. Qualquer um é o instrumento. Ai, doutor, o quê é isso, hem? Por quê preciso sofrer, por quê preciso apanhar, se sei, sempre soube que sou inocente e... pura, não é doutor? Tu sempre me disseste que sou pura, a mulher mais pura que conheceste! Por quê doutor, porquê tu nunca conseguiste me explicar, desvendar esse enigma? Doutor, tenho que parar de querer sofrer! Eu vou morrer doutor, e as pessoas envolvidas não têm culpa, sou eu, doutor! Ah! Ajuda-me! Ajuda-me! <br />Nesse momento Fiora, interferiu, tirando o fone de minha mão, dirigindo-se ao doutor no outro lado da linha, mas olhando-me no fundo do olho:<br />—Doutor, doutor Platus, sou Fiora, a amiga da Alma, prazer... quero dizer, não nessas circunstâncias, mas olhe, ela está bem, é exagero dela. Estamos cuidando dela. O senhor a conhece, ela é melodramática, vive um perpétuo romance em sua cabeça, da qual ela é autora e protagonista. Eu sei, ela envolve a gente, e às vezes também não sabemos até se somos uma criação da mente dela, personagens do seu romance. É, o senhor conhece bem. Mas não se preocupe ela está bem, nós a amamos muito, e vamos cuidar dela. Só não queremos que ela volte para aquele sertão bruto ao encontro do Josué e daquele Pavão de sua imaginação. Sim, doutor, sei como é. O senhor não pode mandar a receita pelo correio? Sim, sim, o senhor tem o endereço? Ah! bom, a Alma deixou. Então está bem, nós controlaremos. Sim, vou passar-lhe o fone de volta, obrigada doutor, até logo.<br />—Doutor, que negócio é esse, eu percebi que o senhor vai mandar a receita do Prozac, não é? Mas eu não vou tomar, doutor, aquilo me deixa fora de mim, não sou eu mesma, com aquilo. Aí é que fico “alienada”, doutor, quero sofrer e parar de sofrer, estás me entendendo? Quero sofrer, doutor, quero apanhar na bunda, quero apanhar do meu pai, da minha mãe, de Rôdo, de Solange, de todos! Aaaaaaaaiiiiii ! <br />Caí num imenso choro histérico, enquanto Fiora tirava o fone mais uma vez da minha mão, e encerrava a ligação dizendo: “Doutor. não se preocupe, vamos cuidar dela!” <br /><br />_____________________________________________ <br /><br />No silêncio do meu quarto naquela estranha situação de hóspede seqüestrada, como eu me acreditava, ou pelo menos como me sentia, eu resolvi parar para meditar no que ocorrera no referente a este encadeamento de circunstâncias relativas à minha procura do Pavão, de cinco anos atrás a esta data. Havia um sentido maior naquilo tudo, a começar com o meu encontro com Josué através do acalanto de “modo medieval” duma mucama que era a sua irmã e cuja letra me anunciara o Pavão Misterioso; depois, tudo o que ocorreu naquela expedição mágica, que produziu o envolvimento amoroso com Josué e minha descoberta de minhas reminiscências sertanejas, digamos assim, e que me levaram a um mundo que quase me enlouqueceu. Eu não conseguia lembrar direito do que ocorrera a partir de um certo ponto. Eu ficara doente, a esse ponto? Um apagamento? Fiora mencionou o estado em que cheguei de volta à Olinda, à casa deles, trazida por Josué (que imagino consternado, comigo nos braços) em pleno estado de delírio. Não consigo lembrar... O que realmente aconteceu comigo a partir daqueles momentos mágicos, quando toda ferida pelos espinhos me entreguei afinal ao desejo apoteótico(se posso dizer assim) de Josué, depois de me mostrar a sua versão do Pavão Misterioso, se bem me lembro, uma máquina real, material, o que não lhe tirava o mistério, pois aquelas ruínas eram contemporâneas de uma outra vida minha, supostamente. Ai! Eu quase enlouqueci. Mas parece que me envolvi com Josué muito mais do que me recordo. Há um lapso naquele episódio de minha passagem, com o irmão de Anunciada, pelo sertão, que não consigo lembrar. A revelação da mucama, daquela fala tão significativa de Josué ao seu pai, que revelava a profundidade do meu comprometimento, até certo ponto inconsciente, me comoveu a um nível de remorso profundo. Serei assim tão culpada? De quê? O que realmente vivi com Josué há cinco anos, de que me lembro apenas flagrantes, flashs de memória? Nem me refiro àquela vida anterior, de que tenho tanto medo. <br />Agora eu estava ali, prisioneira dos meus amigos italianos que me tratavam como uma louca, ou uma doente mental, no mínimo, mas ainda assim me possuíam às raias do aniquilamento, da sujeição erótica mais extrema, corroborando até mesmo o meu jogo sado-masoquista, essa é que é a verdade. Seriam eles hipócritas, ou aproveitadores, no caso de eu ser mesmo uma doente? Ai! Já não sabia mais nada! Estava ficando cada vez mais confusa, mas continuava convicta que a solução de tantos enigmas só seria possível com meu reencontro com o Josué, custasse o que custasse. <br />Num desses momentos de meditação, ouvi baterem à porta, e abrindo deixei entrar a querida Anunciada, que olhando-me com um olhar estranho,um tanto fixo, disse-me:<br />—Dona Alma, dona Fiora me disse que a senhora está doente, é verdade? Que a senhora vai se machucar muito se sair desta casa, o que é fácil de acreditar, pois a senhora é muito delicada para aquele sertão bruto onde quer embrenhar. Mas eu sei que a senhora tem ao menos que se encontrar com o Josué. Eu devo isso à ele, e à senhora também. Mas eu não podia ajeitar para ele encontrar a senhora aqui mesmo, nesta casa? Tenho tanto medo da senhora sair daqui de novo! Eu vi como a senhora voltou aqui, há cinco anos atrás. Todos nesta casa pensávamos que a senhora ia morrer, choramos muito. Mas era mais por causa das coisas que a senhora dizia no seu delírio. E como estava num abismo de tentação de morrer... <br />—O que eu dizia, Anunciada? Não me lembro de nada, e sofro até hoje por isso, por não lembrar... Conte-me, que coisas eu falava? <br />—Ah! Dona Alma, é difícil dizer, era uma espécie de poesia sem fim, de uma tristeza de amor que comovia a gente demais. Ninguém conseguia ouvir o delírio da senhora sem chorar. Era bonito e triste demais! Aquilo mexia com a gente lá no fundo, e a gente já não conseguia ser a mesma depois de ouvir. Dona Fiora dizia para mim, que era porque a senhora é poeta, e até doente fazia poesia. Mas era mais do que isso, eu sabia, era como se uma princesa estivesse dentro da senhora lembrando de um tempo passado, de um amor passado muito infeliz, e de uma... tragédia acontecida muito, muito tempo atrás, mas que estava acontecendo ainda dentro da senhora. Ai! Dona Alma, não quero nem lembrar, mas olhando ainda hoje a senhora vejo que tudo aquilo ainda está aí, dentro ( ela tocou o meu seio com a palma, na altura do meu coração. )<br />Com as palavras da Anunciada, fiquei comovida novamente comigo mesma, e isso me fazia sentir patética. Eu precisava sair do círculo vicioso das memórias e das especulações e agir, agir, ou eu morreria ali, estranha prisioneira que era uma espécie de cadela dos meus carcereiros que me devoravam viva para não deixar-me incendiar, morrer alhures, no solo real deste nordeste que não era ali, mas no sertão bruto, na caatinga de espinhos que chamava a minha alma. Eu disse:<br />—Anunciada, sim, arranja-me esse encontro com o Jeová, eu te peço, depois veremos. Sinto que diante do teu irmão eu saberei o que fazer. <br />Anunciada sorriu tristemente, pegou minha mão, levou-a aos lábios e retirou-se. <br />______________________________________________-<br /><br /><br />Nos dias que se seguiram eu tentei me preservar, mas... não consegui. Fiora e Giuseppe me procuravam no quarto e mesmo em outros aposentos da casa, para me tocar e usufruírem do meu corpo, no qual pareciam estar fixados, ou melhor, viciados mesmo. Eu percebia a contradição entre os cuidados que eles protestavam pela minha saúde mental, e o ménage que eles estabeleceram comigo que nos levava a um desvario erótico que freqüentemente chegava ao derramamento do meu sangue. Eu tinha me tornado um objeto sexual, precioso, que eles desfrutavam com crescente possessividade, como era de se esperar, pois eu os deslumbrava com minha disponibilidade, e a capacidade de dar prazer, como uma iguaria rara, de gosto delicado, um tanto mórbido e perverso, por causa de minha tendência masoquista assumida, como vocês leitores já perceberam.<br />Eu só temia não sobreviver até a chegada de Josué, a quem eu esperava, para talvez retomar um caso amoroso, se isso fosse possível, para, no mínimo, curar o sentimento de culpa que me atormentava em relação a ele. Eu sentia que se ele demorasse eu me tornaria um farrapo psíquico nas mãos dos meus hospedeiros. Sim, porque surpreendentemente, no sentido físico, todos eram unânimes em dizer que a cada dia eu ficava mais bela, com a sensualidade à flor da pele, o olhar brilhante, os lábios túmidos, o corpo curvilíneo e o andar voluptuoso. Mas eu confesso que o meu maior prazer sempre foi o de ser desfrutada, fisicamente, sexualmente, eroticamente. Não faço segredo disso, e grande parte da minha obra versa sobre esse tema, que considero uma glória, a suprema glória das mulheres. “A mulher é o alimento corporal mais elevado”, escreveu André Breton, e eu concordo com ele, lisonjeada com sua frase. Eu mal consigo compreender o tom pejorativo que as mulheres do século retrasado e do começo do século passado davam ao termo “desfrutável” atribuído às chamadas “mulheres fáceis”. Bem... não sou pelo menos uma mulher “fácil” naquele sentido, mas sou desfrutável pelos meus eleitos, homens e mulheres que me atraiam por suas qualidades superiores, e que não tenham os atributos da vulgaridade, que é a única coisa que me horroriza no ser humano, e me causa repulsa. Não havendo vulgaridade, não há feiúra, e o ser humano está salvo.<br />Entretanto, o que às vezes me preocupava era a minha necessidade crescente de sofrimento físico, coisa que reconheço perigosa e que me desnorteava, pois me fazia um enigma para mim mesma. O doutor Platus acha que isso nasceu em mim na infância, naquele dia em que minha mãe pegou-nos, a mim e Rôdo, nuzinhos, deitados sob a nossa macieira, com as mãos nos nossos “passarinhos”, nos humilhando aos gritos, ao arrastar-nos pelos pulsos e até pelos cabelos na frente dos peões, no caminho até o casarão, obrigando-me a cobrir minha “conchinha” com a mão e Rôdo, o seu “pintinho”. Como bom junguiano, por outro lado, ele ressalta o caráter arquetípico dessa nossa experiência infantil, que continha em si a nítida configuração do mito de Adão e Eva, da inocência perdida, e da expulsão do paraíso. O pecado original recusado por mim, por rebeldia tinha se transformado em prazer no sofrimento, uma forma sutil de rebelião ou subversão. Sim, faz sentido, eu aceito essa explicação, mas essa compreensão racional não me livrou da síndrome que está em mim mais viva do que nunca nos últimos anos, e assustadora ou chocante mais para as outras pessoas do que para mim mesma, embora freqüentemente eu acorde deprimida depois de uma noite em que me exceda nas orgias masoquistas do meu lindo e pobre corpo quase martirizado. Desde que desenterrei de um velho baú aquele rabo-de-tatu do meu avô, tenho assustado muito os meus parceiros e até a mim mesma, com a necessidade crescente de dor. Não sei onde isso vai acabar. Pobre Josué... tua princesa está mais para uma escrava flagelada! Ou no mínimo, uma odalisca, o que combina mais com tua ave oriental, o Pavão... <br /><br />________________________________________ <br /><br />Na quinta noite de orgia, com meus hospedeiros, eu julguei que ia morrer. Fui açoitada por Fiora, nas costas, enquanto era empalada por Giuseppe. Além disso, minha amiga ordenhava meus lindos seios como tetas de uma vaca, causando-me dores ali também, e logo sugando-os de tal maneira que comecei a secretar uma espécie colostro sanguinolento. Comecei a me preocupar, de medo de perder minha beleza, de ficar feia. Pelo calibre desmesurado do pênis do italiano, eu comecei a ficar muito aberta, na frente e atrás, já não fechava mais, o que parecia instigar mais ainda a dupla, que queria me ver assim aberta e vazando, pois isso os deixava loucos de tesão... eis a verdade. Eu tinha que parar com aquilo, pois o prazer que eu sentia era mórbido, prenunciava a minha morte, eu senti, como naquele filme japonês “O império dos sentidos” Aquilo estava acontecendo comigo. Sempre fui extremada em tudo, e a mim mesmo me admira não ser uma drogada, fumante, jogadora ou bêbada. Talvez a minha adição seja mesmo só em relação ao sexo e ao amor. Talvez à literatura também. Escrevo cada vez mais, sempre sobre a minha vida, sobre cada lance das minhas relações emocionais e físicas.Sobre cada pensamento original ou não que me ocorra, desde que me pareçam interessantes, dignos de nota. E tenho consciência do meu gênio! Mulher-artista, eu expresso em palavras o que nunca uma mulher teve coragem de expressar na história da literatura mundial, essa é que é a verdade. As mulheres são muito covardes no terreno sexual; castradas mentalmente pelos homens, ao longo da história, só se permitem certas coisas como putas, na cama, mas nunca com as palavras em plenitude, em liberdade e pureza intrínsecas. São cheias de pudores ou de sentimento de culpa, escravas da visão machista dos homens, não se permitem jamais a plenitude do amor e do sexo, com os inúmeros parceiros possíveis de suas vidas, como eu, que amo com a mesma intensidade os homens e mulheres da minha vida. Tenho o mesmo tesão assumido pela vulva como pelo pênis em suas específicas belezas, e pelo ânus também, dos dois sexos, a começar pelo meu próprio, lindo, rosado e sensível ânus. Sou pan-sexual e pan-amorosa e creio na união de carne e espírito. Carne é espírito! Para mim, os que sobrepõem o espírito à carne, são os maiores hipócritas. Dito isso, volto a narrar o que estava acontecendo sem nenhum julgamento moral sobre mim mesma ou sobre meus parceiros, amigos, amantes ou... feitores, que me aprisionavam para o seu próprio e legítimo deleite. Eu os aceitava plenamente. O problema não era esse! Tratava–se de mim mesma, sempre, que devia saber parar, apenas para não morrer, ou ficar feia ou desgastada, para poder perseguir a prioridade espiritual do momento que era encontrar Josué para que ele me levasse ao Sertão de sua alma, onde eu veria a princesa que fui e que o amava tanto. Eu precisava conhecer o Pavão e desvendar enfim o seu Mistério, para guardá-lo em mim. Para sempre!<br /><br /><br />Um fim de tarde aconteceu algo que precipitou meu impulso de partir. Foi o seguinte: Ao crepúsculo, a cidade de Olinda se enchia de pequenos morcegos frugívoros em revoada sobre os sapotizeiros dos quintais, e freqüentemente atravessavam as casas em vôos rasantes sobre as pessoas, sem tocá-las, é claro, graças ao seu radar, saindo pela janela oposta. Mas nesse dia, quando eu saia do banho enrolada numa toalha, um desses morceguinhos, passou tão rente à minha cabeça que suas garras enroscaram-se nos meus cabelos e eu desesperada comecei a gritar, enlouquecida de terror e a debater-me atirando o animal ao chão, onde ele caiu atordoado de barriga para cima e pude ver o seu rosto que era o de um pequeno demônio de uma feúra sinistra , com grandes incisivos pontiagudos e afiadíssimos na frente, apesar de não ser hematófago. Eu deixara cair a toalha e, nua, mantinha-me aterrorizada olhando aquele semblante sinistro cujos olhinhos me pareceram vermelhos querendo dizer-me algo. Eu não percebi que continuava gritando e que urinara, de pé, de medo e descontrole, escorrendo por minhas coxas e meus pés, fazendo uma poça ao lado do animal. Então, fui abraçada por Fiora que chegou com Giuseppe e enquanto ele tratava de apanhar o animal, rindo-se de mim pelada como estava e urinada foi soltá-lo lá fora, ela tentava me acalmar, reconduzindo-me ao banheiro onde botou-me na banheira para lavar minhas coxas, dizendo: <br />–O que é isso?... princesa mijona, não precisa ter tanto medo, é só um morceguinho, não faz mal algum, vamos, deixe eu lavar esta “periquita”, que está toda molhada de xixi. Calma, minha linda, assim deixe-me lavar você( e passava a mão ali, e em todo o meu corpo, com sabonete, enquanto continuava dizendo):—Teus lindos cabelos dourados atraíram o ratinho voador! Olhe que eles não costumam enroscar-se nas pessoas! No máximo batem contra um vidro de uma janela fechada e caem ao chão, o que já é muito estranho, pois seu radar não costuma falhar. Mas... tudo com você é estranho, não é mesmo, princesa? <br />E eu, como uma menininha envergonhada, continuava sob a impressão daquele semblante demoníaco, e sugestionável como sou, tomei naquele momento a decisão definitiva de partir, de fugir daquela casa. <br />________________________________________<br /><br />Finalmente, Anunciada veio uma manhã ao meu quarto, bem cedo, dizendo estar tudo preparado para a minha fuga. Eu deveria acompanhá-la ao porão, por onde sairíamos por uma porta secreta para uma passagem escondida do jardim, que dava para uma escadinha que descendo ia desembocar num pequeno portão de madeira reforçado com ferro, que saia lá na rua de baixo, na Ribeira. Isso tudo datava do século XVIII, e era o portão das alcoviteiras e suas protegidas, moças de família, vigiadas, para seus encontros secretos, às vezes fatais, naquela época. Já naquela travessia da casa, sinistra em seu porão, e naquela passagem secreta do jardim, eu me senti no começo da minha aventura temerária, e meu coração batia disparado. Anunciada abriu o portão com uma imensa chave de ferro, enferrujada, antiga, de um enorme molho, um argolão. O portão foi aberto com dificuldade, imagino que pela primeira vez em cem anos. Saímos para a rua, caminhando um pouco, olhando para traz e para cima, para ver se éramos avistadas lá do alto das janelas superiores do casarão. Logo chegamos à esquina onde estava um táxi que me esperava para levar-me ao sertão, à casa de Josué, a antiga casa da família de Anunciada, de seu falecido pai Malaquias, que eu conhecera e admirara como sua hóspede por um dia e uma noite, há cinco anos atrás, quando tudo começara entre mim e Josué.<br />Eu estava preocupada com a Anunciada e disse-lhe:<br />–Núncia, querida, o que será de ti naquela casa? Não serás despedida pela minha fuga? Eles vão te dar um aperto e depois te despedirão. É do que tenho medo. Como farás, minha querida, para manteres o teu emprego?<br />—Não se preocupe, Dona Alma,—ela respondeu— pensei em tudo. Direi que a senhora fugiu sem minha ajuda. Eles quererão acreditar, pois não querem me perder, eu sei. Sou pau pra toda obra naquela casa há tantos anos, que não me despediriam nem por coisa mais grave. Além disso creio que dona Fiora e seu Giuseppe me têm afeto. Vai em paz dona Alma, e tome muito cuidado com a senhora, pois o sertão não é o Alto reino que a senhora pensa. Bem... é melhor que parta depressa...<br />A mucama estava com os olhos cheios de lágrimas e eu a abracei, agradecida e comovidamente.<br />Anunciada recomendou-me, mais uma vez, ao taxista, e dizendo que mantivesse segredo daquela corrida. O velho motorista, um sertanejo simpático, de vasto bigode branco, saudou-me e disse à Anunciada:<br />—Deixe comigo, Siá Núncia, que levarei esta princesa ao seu destino. Tô vendo agora por quê tanto mistério. É missão de alta responsabilidade, é só olhar pra moça pra ver. Abolete-se aí atrás, moça, deite-se no acento e durma se quiser, é até melhor pra não dar na vista na nossa saída da cidade, pra evitar os comentários. O povo daqui é muito falador, e logo iria me perguntar quem é a princesa. Adeus, Siá Núncia. <br />Partimos, e eu realmente me deitei, aceitando a sugestão de Seu Januário (esse era o nome do motorista), com receio de chamar atenção e ter depois alguém no meu encalço mandado por Fiora e Giuseppe, talvez eles próprios me perseguindo pessoalmente. Começou uma longa viagem, e só me ergui do banco, quando já estávamos bem longe de Olinda. <br />Não pedi para passar para o banco da frente, pois se quisesse descansar na longa viagem, realmente aceitaria a sugestão do seu Januário de tirar uns cochilos. Além disso, eu percebi que deveria fazer jus à alta conta que o velho fazia de mim pelo meu aspecto, mantendo a suposta hierarquia e deixando- me levar pelo “cocheiro” na minha ‘‘carruagem”. Seu Januário era falador e começou a contar uns casos compridos, sempre olhando para mim pelo espelhinho, e volta e meia fazendo homenagens à minha beleza. Ele estava morrendo de curiosidade, com a aparente falta de sentido daquela minha viagem, assim, secreta, a um sertão bruto, pois o destino que lhe deram não era nenhuma fazenda de coronel. <br />Olhei a paisagem durante muito tempo, encantada com a beleza verde da zona da Mata Pernambucana, e penetrando no agreste, rumo a Caruaru na fronteira do sertão bravo. Eu quis andar um pouco por aquela feira fantástica, deslumbrada pelo artesanato e as cores das comidas, frutas, verduras e condimentos, principalmente do colorau com seu vermelho peculiar e maravilhoso vibrando ao sol. Percebi também que os seguidores do grande Vitalino prosseguiam fazendo e vendendo as figurinhas idênticas às dele, que fizera escola, o que me parece muito válido, pois até os mestres renascentistas da Europa faziam discípulos e criavam escolas que os copiavam por mais quase meio século após suas mortes. Mas eu não tinha vontade de comprar nada, eu não era uma turista, embora chamasse muito a atenção ( logo tinha um bando de crianças me seguindo, querendo tocar em mim e segurar a minhas mãos). Eu estava ali a caminho de uma revelação, talvez de um amor... talvez mesmo de minha dissipação e morte. Sim, tudo era possível, e eu comecei a ficar ansiosa. Pedi logo ao meu amigo para retomarmos a estrada. Assim fizemos, e logo a paisagem começou a se tornar mais rude. Eu perguntei ao velho Januário:<br />—Por favor meu amigo, me conte o que sabe sobre Josué, o senhor o conhece, não é, como conhece sua irmã, a Anunciada, não é mesmo?<br />—Dona Alma—ele respondeu— eu fui amigo do pai deles, o velho Malaquias, a vida inteira. Eu lutei ao lado dele em mais de dez guerras do sertão. Fui jagunço como ele, a serviço do coronel Asclépio, e vi ele ser baleado na perna numa peleja de noite, num milharal disputado com o coronel Ludugero e seus jagunços. Esse ferimento deixou ele coxo pro resto da vida. Ele foi salvo pelo seu cumpadre Esequiel, que se tornou um cantador e repentista da gota serena, um dos melhores deste sertão, e que ainda está por aí, cantando no mundão desse povo. Numa outra peleja eu o vi perder a vista direita e ficar com aquele buraco e a cicatriz de dar medo. Mas ele não perdeu o entusiasmo da vida, senão no finzinho, justamente pelo Josué que ficou triste e meio louco e empurrou seu pai pro abismo antes dele mesmo. O rapaz está há cinco anos às voltas cons uns desenhos, uns planos de uma máquina de voar, que parece mais um passarão maluco, que não voa e que o está botando cada vez mais louco. Parece também que houve alguma coisa, que o marcou demais, um amor que começo a perceber do que se trata. Então me permita perguntar, dona Alma: é a senhora, não é, que deixou o pobre rapaz desse jeito? Olhe não quero me meter e nem lhe criticar, mas foi só olhar pra senhora e já entendi tudo. O seu rosto vai lançar aquilo no ar, pois acho que poderia lançar mil avejões como aquele, até numa guerra nos ares, é o que acho, agora que vi a senhora. Posso entender o pobre Josué. É a senhora, não é? que partiu o seu coração e que ainda faz ele bater... <br />—Seu Januário—eu respondi—Eu não sabia, todos estes anos, o que acontecia aqui com o Josué. Eu fui deixada por ele mesmo, na casa dos meus hospedeiros, os patrões da Anunciada, doente, quase fora de mim. Então, sem memória do acontecido, eu voltei para São Paulo e depois para minha terra bem mais ao sul, no rio Grande. Eu não sabia... mas foi o seu sofrimento, ou o seu amor que me chamou, agora , cinco anos depois. Pode bem ser que ele conseguiu fazer a máquina voar. Ele pode ter terminado a máquina, com sucesso, e isso me chamou, isso me ocorreu nestes últimos dias... o senhor sabe de alguma coisa, seu Januário?<br />O taxista de certa forma desconversou, pois não respondeu a pergunta. Em compensação, saiu-se com essa tirada: <br />—Ó Xente, Dona Alma, essa estória é digna de um cordel. Ah! Se eu fosse poeta, ou cantador! Isso dá folheto, do bom. Acho até que vai dar, pois o povo pega no ar uma boa estória dessa acontecendo. Mas olhe, dona Alma, eu quero estar nesse cordel, com meu táxi, correndo esse sertão carregando a princesa, não é não? Levando ela pro seu amor. Ah! Eu também vou entrar nessa estória arretada!<br />Dei uma grande gargalhada, O seu Januário estava me devolvendo a alegria da leveza.<br /><br />______________________________________________<br /><br /><br />Capítulo segundo<br /><br />O hangar de Josué<br /><br />Depois de muitas horas de viagem, comecei a ficar sonolenta, deitei-me atrás, no banco, e adormeci sonhando coisas vagas de que não me lembro. Até que ouvi a voz do seu Januário no meu sonho, chamando-me no meio de uma caatinga enevoada, de poeira. Acordei e levantei-me sentando-me e olhando para frente, vendo aquela casa aproximar-se, a casa que eu reconhecia como de um sonho, de outra época. Mas percebi que atrás dela havia uma espécie de galpão muito maior que a casa, e mais alto, que nunca estivera ali. Desci enquanto o seu Januário fechava o carro, os vidros, tudo antes de descer, providencia inútil naquele fim de mundo, frente àquela casinha, perdida na planura sem fim, sob uma jaqueira, de cujos galhos eu notei que pendiam panos e trastes, insolitamente. Fiquei ali parada em frente à casa esperando, e eis que de trás dela, vindo daquele galpão talvez, apareceu... Josué! Reconheci-o imediatamente, embora ostentasse uma barba e bigode muito negros e os cabelos revoltos, encaracolados, dando-lhe um aspecto de eremita, ou homem santo do sertão, ou mesmo de um peregrino fanático. Seus olhos brilhavam com um estranho fogo, e ele ficou ali parado, em frente à casa. Então, sentindo em mim, um impulso, de reconhecimento pleno, corri para ele e o abracei. Ele custou a enlaçar-me, como se não acreditasse na minha materialidade, como se eu pudesse ser... uma tentação do seu prolongado delírio. Olhei seus olhos negros onde lágrimas corriam afinal, lágrimas de reconhecimento, e ele então ergueu-me do solo, com aquela força incrível, de cabra do sertão, que eu tão bem conhecia, e carregou-me nos braços para dentro de sua casa, da casa de seu pai, do velho Malaquias, que morrera sem acreditar no meu retorno. <br /><br /><br />__________________________________________<br /><br /><br />Acordei muitas horas depois, ainda nos braços de Josué, mas nua, e no seu leito, que eu não pensava haver naquela casa, em que eu dormira em rede e sozinha, por uma única noite na casa repleta de outras redes, amarradas nas pilastras próprias, que brotavam do chão como stalagmites de uma caverna, e onde dormiram os “menestréis”, quero dizer, os violeiros cantadores, naquela nossa posada aqui, há cinco anos. Mas naquele tempo esta casa era cheia de irmãos e irmãs de Josué. Onde estavam eles? A casa estava vazia, e tomada pelos planos do Pavão, como uma espécie de ateliê primitivo, onde se viam também peças mecânicas jogadas, aqui e ali. Nua, eu andei pela casa, acompanhada por Josué, que, deslumbrado, tudo me mostrava, falando atropeladamente de seus planos. Ele dizia:<br />—Alma, não acredito que você está aqui, minha princesa! Olhe, o quanto eu sonhei e trabalhei! Veja isto... é um protótipo, uma miniatura (ele me mostrava um pavãozinho de madeira, uma maquete adorável, completa, pintada, com seu mastro e suas bandeirolas coloridas de São João, e no topo, a flâmula minúscula). Alma, quero lhe mostrar algo que você não esperaria. Venha, venha comigo já, assim mesmo, não precisa vestir-se, não há ninguém por aqui, estamos no meio do deserto, todos se afastaram de mim, graças ao Pavão. Venha!<br />Saímos de mãos dadas, como duas crianças da natureza, perdidos no paraíso deserto, na caatinga primordial do Éden. Andamos mais passos do que eu esperava, assim, pelados, até entrarmos pelo grande portal de madeira, de que ele abriu o cadeado sem chave que pendia de uma corrente e empurrou a grande porta de madeira. Dentro estava, enorme, me pareceu, o Pavão Misterioso! A grande nave com seu alto mastro, com as bandeirolas presas nos tirantes que partiam nas quatro direções, uma sustentando a proa, a cabeça coroada do pavão e seu pescoço azul e verde escamado, onde se viam pintadas as palavras “Alma do Sertão”. Outros tirantes sustentavam a cauda, e as pontas das duas asas. As rodas dianteiras tinham pára-lamas no feitio das garras do pavão, ou seus pés, melhor dizendo. Todo ele era pintado nas cores irisadas do pavão, mas a cauda era uma obra-prima de realismo primitivo, com os olhos das penas pintados um a um, às centenas, com aquelas cores de asa de borboleta, azul, dourado e verde. Era alucinante! Meu Josué era um artista! E eu o abracei muito, beijando-o tanto, que senti o seu falo erguer-se novamente entre minhas coxas, alojando-se ao longo do meu períneo, como um ninho provisório que me enterneceu. Então ali mesmo eu quis ser uma vez mais possuída, sim, dentro daquela barcaça voadora quer ela decolasse ou não. Eu faria decolar o meu amor, nós decolaríamos dentro dela, a nave delirante que nos unira, não importando para mim que ela mesma jamais saísse do chão da caatinga, nós voaríamos... já estávamos voando! Já estávamos voando! <br /><br />————————————————————<br /><br />Josué considerava o Pavão pronto e capaz de alçar vôo. Percebi isso quando acordei, nua, deitada sobre uma manta grosseira, no fundo da barcaça da nave e senti que ela estava se deslocando. Levantei-me quase assustada e vi que o Josué a estava rebocando com uma corda amarrada ao pára-choque de sua caminhonete, arrastando-a para fora do hangar, pelo imenso portão aberto, que, tirando-me da penumbra, deslumbrou-me dolorosamente com o brilho quase insuportável do céu da caatinga. Com meus olhos verdes claros ofuscados, eu cobri o rosto com os braços e gritei-lhe de dentro da barcaça:<br />–Josué, que fazes, vais carregar-me contigo, iremos voar? Não estou pronta, Josué!<br />Josué parou a perua distante uns trinta metros do galpão, e descendo(ele já estava vestido), correu para dentro da casa e voltou com a minha mochila, que atirou-me dizendo:<br />—Vista-se, Alma, porque vamos voar, afinal, e é agora mesmo!<br />Retirei meu vestido comprido, indiano, fino, estampado, belíssimo, que trago em minha mochila para ocasiões especiais. Mas antes de vesti-lo, protestei:<br />—Josué, preciso lavar-me, e escovar os dentes, pentear-me. Não posso sair voando assim, estou suja, quero dizer... preciso fazer xixi e tudo o mais. <br />Josué fez uma cara de atrapalhado e sacudiu a cabeça concordando:<br />—Claro, claro, Alma. Mas vá logo. Olhe, não temos água quente, não temos luxo, mas aqui é muito quente, você não sentirá falta. A água é de poço. Vou encher com um balde a caixa do chuveiro. Vamos lá.<br />Josué providenciou um pequeno balde cheio d’água, e eu percebi que teria só aquela quantidade para o meu banho, que seria um banho de gata. Difícil foi lavar-me por entro, agachada naquele banheirinho precário, de cimento áspero, cheio de limo, que não tinha um bidê para as minhas abluções íntimas. Mas eu não me importei muito, na verdade, com tanta falta de conforto. Eu estava, afinal, vivendo uma aventura, e devia estar preparada para tudo. Logo estava refrescada e razoavelmente limpa, colocando o vestido pela cabeça, calçando umas sandálias e passando um pente grosso nos cabelos molhados. Josué fez um ar de aprovação, mais do que isso, na verdade, de deslumbramento com meu aspecto e novamente abraçou-me e rodou-me no ar. Depois, agarrou-me a mão e fez-me correr com ele em direção à nave, onde subiu, estendendo-me o braço, puxou-me pela mão para cima, para colocar-me dentro, ao seu lado, nos comandos. Mas logo foi até a hélice, que ficava atrás do motor que emergia da parte traseira da nave, dentro do limite da própria barcaça. Ali, deu vários impulsos com as duas mãos na hélice, botando nisso todo o peso de seu torso, enquanto gritava instruindo-me para ligar e acelerar o motor, que por sua vez, assim que pegou, diminuiu o seu rumor, pois Josué na verdade inventara um maravilhoso motor silencioso, movido à água. O segredo desse mecanismo nunca seria conhecido da humanidade, ele me garantiu, pois devia ser um segredo inerente ao Pavão. Não concordei interiormente com aquele raciocínio, pois sempre achei que se um inventor descobre algo que pode ajudar a humanidade, ou facilitar a vida das pessoas, tem o dever de abrir mão do segredo de seu invento, e divulgá-lo ao máximo para que se torne de domínio público, desde que não tenha contra-indicações, claro, como aconteceu com a energia atômica. Mas Josué me explicaria mais tarde que o seu invento tinha realmente implicações perigosíssimas se caísse em mãos erradas. Em breve eu iria perceber o quanto isso era verdade, e o quanto nós iríamos ainda sofrer juntos pelo Pavão. <br />Entretanto, naquele momento estávamos nos deslocando cada vez mais rápido, ainda no solo, na planície de chão rachado de sol, que me fazia pensar na superfície craquelée de um quadro antigo pardacento, de onde decolaríamos para um vôo de sonho, atemporal. Sim, na verdade estava acontecendo, embora eu pensasse naquilo ainda como uma fantasia minha. Nós estávamos alçando um vôo improvável, com aquele avejão fantástico, com seu mastro e bandeirolas tremulando ao vento e com sua comprida flâmula vermelha com os signos da lua e do sol estampados, no topo do mastro.Com nossos cabelos ao vento, pois não tínhamos capacetes ou óculos especiais, tudo parecia improvisado, mas na verdade, percebi, que Josué pensara no essencial, pois havia farta provisão de água em odres de couro, e bastante carne seca, farinha, e rapadura. Abraçada a Josué entreguei-me ao deslumbramento daquele vôo magnífico, subindo, subindo acima das ralas nuvens, avaras, que não cediam suas gotas há muito tempo àquele sertão seco. Mas eu notei que por onde o pavão passava, as nuvens se adensavam rapidamente e ficavam pesadas, começando a derramar fartamente a carga, quando Josué tocava uma espécie de trombeta na proa do pavão. Curiosa, perguntei ao Josué, como ele conseguia aquilo. E ele respondeu-me, com um tom mais científico e menos messiânico na voz, que da primeira vez:<br />—Alma, essa é a trombeta do Pavão, que faz cair o muro das águas de Jericó, que é nome antigo deste Raso. Não haverá mais Seca, pois o segredo está nas emanações do escapamento do motor, que ionisam as nuvens condensando-as, para, com as vibrações especiais da trombeta desabarem sob o chão carente. Você verá, Alma, vamos tornar tudo verde, e o povo irá reverenciar o pavão e logo a você, a quem devo a inspiração. <br />Ao ouvir aquilo arrepiei-me lembrando-me de suas palavras semelhantes embora noutro tom, nada científico, há cinco anos atrás, pouco antes de ter-me em seus braços, crivada de espinhos e em dores, no meio das catingueiras cruéis, quando acreditei-o delirante, louco, embora irresistível. Agora estávamos vivendo a sua profecia, e isso era incrível, tanto mais que sentia que ela era muito mais antiga, e remontava a uma época que ressoava dentro de minha alma como um eco longínquo, de uma perturbadora memória... <br /><br />________________________________<br /><br /><br />Retornamos ao hangar e à casa, depois de um vôo magnífico, cujas imagens ficarão para sempre nas minhas retinas. Eu vira o sertão de Jericó e de Josué, de cima, fazendo desabar as nuvens e vendo o solo reverdecer quase que instantaneamente, conforme me parecia, ajudada pela imaginação. Eu percebia, lá de cima, o povo correndo e apontando com o dedo o grande pássaro que éramos aos seus olhos deslumbrados. Somente me causou estranheza e logo terror, o povo de uma fazenda sobre a qual sobrevoamos, que se pôs a atirar no pavão, ou em nós mesmos, pondo-nos em perigo, com as balas de espingardas e revólveres zunindo perto de nós e furando aqui e ali as asas do nosso aparelho, e causando-me grande susto. Percebi, também que Josué parecia estar provocando aquela gente, pois dava voltas para sobrevoar novamente o perigo, dando altas gargalhadas, como se quisesse afrontá-los. Fiquei furiosa com Josué e agarrei o timão (não era um manche) e fiz a nave subir e afastar-se daquele imenso perigo. Que significava aquilo? Eu iria cobrar de Josué uma explicação, pois ele nos pusera em perigo de morte, gratuitamente, por brincadeira, ou afronta a um poderoso do lugar, enciumado talvez com aquele aparelho. Eu não poderia imaginar naquele momento, quão perto da verdade eu estava ao deduzir isso.<br />Quando aterrissamos, eu estava com um olhar furioso, por ele ter estragado o passeio com aquela brincadeira perigosa, de mau gosto, e Josué, então envergonhado, começou a justificar-se:<br />—Perdoe-me, princesa, perdoe-me! Eu realmente me excedi, eu jamais deveria ter feito aquilo, foi realmente arriscado, poderíamos ter sido atingidos, e caído. Mas não acontecerá mais, eu lhe prometo. É que... bem, há coisas de que você não se lembra, estou vendo. Não reconheceu nossos inimigos? <br />Estremeci com aquela pergunta. Inimigos? Eu pensava que não tinha mais inimigos; que na verdade, os primeiros e últimos que tive estavam mortos, que foram minha irmã Solange e meu cunhado Geraldo, como contei no meu romance anterior “A Herança”. Que estória era aquela, de inimigos, que queriam nos matar assim, abertamente, a tiros? <br />Josué abraçou-me, tentando me acalmar, fazendo-me carinhos, para eu amansar, e realmente amoleci, fui ficando molinha, e logo estava ele me carregando literalmente no colo, para dentro da casa para jogar-me na cama. Em segundos eu o tinha novamente dentro de mim, navegando, navegando. Mas num certo momento, diante de tanto navegar, eu quase gritando em seu ouvido, disse-lhe:<br />—Josué, tu quase me mataste, faça-me sofrer para eu sentir-me mais viva do que nunca! Toma-me, Josué, com força, possua-me por trás, como já o fizeste uma vez em plena caatinga, há cinco anos, se bem me lembro! Enche-me do teu sumo branco, e... açoita-me com isto aqui (estiquei o braço e retirei da minha mochila o rabo de tatu, que entreguei a Josué, estupefato, que certamente não esperava uma coisa dessas de sua princesa).<br />—Alma, o que é isso? (ele arregalou os olhos)—Princesa, bater em você, com isto? Eu, não posso... não devo! Você é a princesa do Pavão, não uma escrava!<br />—Josué, faça-me sofrer, eu te ordeno, bata-me ou eu vou pirar de... entusiasmo de viver, de amor, de paixão pela vida, por ti, por este Sertão! Açoita-me, açoita-me, faça-me sangrar, e então me possua, sangrando, como naquele dia eu sangrava dos espinhos da caatinga, e tu não hesitaste em ter-me, chorando e sofrendo em tuas mãos. Faça-o agora!<br />Josué então empunhou a chibata de meu avô, virou-me de costas e com uma certa exasperação de quem se violenta inicialmente a si próprio, começou a fustigar-me, enquanto eu ria e chorava ao mesmo tempo, e dobrando-me oferecia-me, aberta aos seus olhos, antes que ele me penetrasse, cruelmente, afinal, até o seu grande membro fremente cobrir-se do sangue rubro de sua princesa desterrada, decaída, submissa... feliz. <br /><br />____________________________<br /><br /><br />Levantei-me da cama, tarde da noite, deixando Josué adormecido ressonando, depois de observá-lo nu, ao clarão do luar que entrava pela janela aberta, na noite escaldante, e saí para o terreiro sem fim, da casa, que era a própria caatinga, sob um céu estrelado como o do meu pampa ao luar. Comecei a caminhar em torno da casa, nua como estava, e com as costas e nádegas ardendo das chibatadas de Josué. Comecei a chorar, pois tive uma súbita vergonha do meu procedimento, misturada a uma saudade enorme de meu pai, e até de minha mãe, que esta sim, usara esse expediente com uma vara de marmelo, para me refrear, tanto quanto para me punir, na minha infância. Mas lembro-me que minha mãe não batia forte, como se não quisesse marcar a minha pele de seda (como ela mesma dizia) pois era mais uma surra moral, que ela pretendia, pois ela tinha imenso temor de que eu me tornasse uma prostituta, não sei por quê. Creio que ela confundia a minha sensualidade com... putaria, com o perdão da má palavra. Mas, eu, graças aos deuses, nunca tive dúvidas da pureza dos meus sentimentos, emoções e impulsos, e só estou começando a me envergonhar agora, de ter tanto gozo em sofrer... fisicamente. Gosto, gosto de ser manipulada fisicamente, de maneira dolorosa, de ser penetrada por homens e mesmo por mulheres, e... acabei perdendo minha Aline por isso. Ela pegou “nosso” filho o pequeno Marco, e deixou-me um dia, dizendo: “Alma, você é doente e não quer tratar-se, você quer que eu lhe bata cada vez mais e faça coisas horríveis com você! Não o farei, pois isso me faz mal, a mim, e acho que a você também. Aonde isso vai parar? Na morte, sua doida! Por isso, adeus! Não serei a sua carrasca, que é o que você está procurando. Vá procurar o doutor Platus, antes que seja tarde! Eu a amo, mas... não posso mais. Não quero mais vê-la, pois me faz sofrer... Adeus! <br />Ai, Aline que sabes tu, da vida, e do coração profundo, do “coração selvagem” como disse Clarisse Lispector, segundo o entendo? Não sabes Aline que o doutor Platus, a pretexto de “ancorar-me na matéria”, pois a minha estava tão rarefeita, que eu andava sumida, penetrou-me o ânus com seu grande pênis bem intencionado, enquanto fazíamos uma regressão induzida, para reconstituir o estupro que eu sofrera na infância, naquela fazenda mineira, por um primo adulto e enorme, dentro de um paiol de milho? Não, não imaginas a loucura do mundo, mesmo tendo vivido com esta “doida aqui” que tanto te alarmou. Ah! Aline se tivesses voltado para mim, talvez eu hoje não estaria assim sangrando a cada relação, cada “coito” para falar cruamente. Mas talvez, reconheço, eu já teria pedido para morrer, feliz, em êxtase de gozo, nas tuas belas mãos! <br />Parada ali, sob o luar, em profunda solidão apesar de estar amando, no meio daquela planura maravilhosa eu tive a nítida consciência da singularidade do meu destino de princesa de meu pai, de Rôdo meu irmão amado, de Aline, minha modelo nua e amante; do Doutor Platus, que também me amava, eu sabia pela invasão que fiz do meu prontuário, e depois por sua confissão de viva voz; de Laís, namorada de meu irmão e minha, de todos que me amam e me amaram, eu sei que antes de tudo pela minha beleza, o que sempre considerei válido porque nunca fui hipócrita. Que melhor razão para se amar, já que vivemos no mundo da matéria, nas nossas inúmeras vidas? E porque outra razão então a beleza seria tão venerada, no nosso mundo? O rosto de Helena “lançou ao mar mil navios”, a beleza mobiliza, inspira e provoca o amor, embora se diga que “quem ama o feio”... mas vejam: “bonito lhe aparece”. Sempre a beleza, começo ou fim de tudo. <br />Ali de pé, sentindo uma volúpia imensa de estar nua no meio de uma chapada que era para mim o Sertão “todos os sertões” do meu país, eu tive a idéia de urinar de pé deixando-me escorrer, pelas minhas compridas e brancas pernas iluminadas pela lua. Mas eu não me enxugaria, não me lavaria, e voltaria assim para o leito, para o meu amor, querendo ser obscena, se possível, coisa que nunca pude, por não ser da minha natureza, misteriosamente. Mas eu queria, naquele momento, confesso, que meu amor me pedisse para ver-me urinando, ou mesmo que eu o fizesse sobre ele. Por outro lado eu sabia que isso era uma questão de tempo. Que homem resiste à urina de uma mulher, da mulher amada? Eu queria o amor total!<br /><br />____________________________________________ <br /><br /><br />No terceiro dia, bem cedo acordei sacudida na cama por Josué, que falando baixo e aflito, dizia:<br />—Alma, Alma, acorde, vista-se e vamos pelos fundos, aí vem eles! <br />—Quem, quem, Josué, quem vem aí?<br />—Os inimigos, Alma, depressa, depressa!<br />Saímos correndo pelos fundos, eu só conseguira calçar as sandálias, e corria nua, com o vestido na mão.Olhei para trás, apavorada, e vi os jagunços com seus gibões e chapéu de couro, com os rifles na mão que já invadiam a casa, atirando para cima. Entramos no galpão e subimos na nave, que Josué ligou imediatamente, saindo pelo portão, de maneira acelerada, com uma rapidez que eu não acreditaria possível, quando os jagunços já cercavam o galpão e vários deles apontavam seus rifles à nossa frente. Mas Josué acelerou empinando a proa do Pavão e subiu, por cima das cabeças deles que tiveram que abaixar-se. Desta vez eles não atiraram em nós, e eu imaginei porquê. Eles já sabiam quem eu era, e foram proibidos de atirar. Eles me queriam viva! Como eu sabia disso? Eu ainda não sabia responder a essa pergunta feita a mim mesma. Mas eu estava aliviada de Josué ter escapado, pois era possível que a ele quisessem morto, a menos que... é isso! Eles queriam o Pavão também. Claro, tratava-se de um segredo científico, que conferia poder, a quem o detivesse. Mais poder! Não é sempre assim, nos trillers? Mas já nos distanciávamos, quando olhei para trás e para baixo, vendo as chamas devorarem a casinha de Josué, a nossa casinha, e também o hangar. Dei um grito de dor. A casa onde fui feliz por três dias, contando com aquela posada, há cinco anos, hóspede de Malaquias, o pai de Josué, a quem eu já considerava meu falecido sogro sertanejo. A dor foi enorme, como uma perda incompreensível. Mas voávamos com grande rapidez por cima da caatinga, e Josué não estava preocupado em fazer chover. Ele disse, gritando, embora o motor fosse silencioso:<br />—Princesa, vamos para Serra Talhada. Lá sou amigo do rei!<br />Ele sorria, como se tudo aquilo fosse previsto e não se importasse nem um pouco com a perda de sua casa e de seu hangar. E eu não deixei de admirá-lo, pois um homem desprendido e aventureiro merecia esta princesa, que eu era, em meu enorme orgulho e sujeição, que era o verdadeiro mistério de tudo aquilo, de toda aquela saga em que eu estava imersa, sob a égide do Pavão Misterioso. <br /><br />_________________________________<br /><br /><br /><br />Capítulo Terceiro<br /><br />O rei da Serra Talhada<br /><br />Voamos muito tempo sobre o chapadão rumo à Serra Talhada, no sertão de Pernambuco. Josué enlaçava minha cintura, e o vento batia em nossos rostos e cabelos, mas como uma brisa tépida, agradável. Foram momentos inesquecíveis de beleza, tanto mais que Josué colocou a máquina num inacreditável piloto automático, baseado num sistema de uma simplicidade alucinante, para poder deitar-se comigo no fundo da barcaça e possuir-me em três ou quatro posições durante a maior parte do percurso. Pouco antes de sobrevoarmos a Serra, Josué estava possuindo-me por trás, com grande excitação e afoiteza (com o lubrificante natural de clara de ovo, que aprendi a duras penas, às custas do meu primeiro estupro anal, na infância), quando começaram os relâmpagos e trovões e o céu ficou negro em pleno dia. Foi uma sensação de grande medo, terror mesmo, que me acometeu quando atravessávamos a tempestade elétrica no momento em que o meu amado estava todo dentro de mim... atrás, e eu me contraí muito, apertando-o a um ponto em que ele também gritou e teve dificuldade de sair, isto é, desenganchar-se. Conto isso, pois foi um momento “constrangedor”, que não esqueceríamos nunca mais, apesar de produzir muitas risadas em minhas lembranças “posteriores”... digo, futuras. <br />O céu se abrira, e víamos a Serra de cima, com todos os detalhes de sua topografia, e Josué parecia procurar algo, um porto de pouso, afinal ele disse, o que estranhei muito até que movimentando uma alavanca, ele fez o motor todo erguer-se, por um mecanismo engenhoso que pôs a hélice na horizontal como um helicóptero, fazendo o pavão descer verticalmente, suavemente, sobre uma pequena plataforma, que eu mal distinguira, ali no acidentado cume da Serra. Eu estava perplexa, apesar de muita dor no traseiro. Josué recomendou-me que pusesse o vestido, pois logo seríamos abordados. Mas, por quem?<br />Parados ao lado da nave esperamos ser contatados, e minha expectativa era enorme, sentindo que estávamos cercados sem que eu avistasse ninguém no meio daquela bruma de altitude, que nos envolvia. Confesso que também estava preocupada com a dor no meu traseiro, e com fato de me sentir muito aberta, e vulnerável, e ainda por estar sem calcinha. Por quê sou assim, uma fêmea, afinal de contas, tão desfrutável, tão acessível à intrusão, em minha vida? Creio que a resposta está no meu próprio nome, que forjou o meu destino. Não sei se me faço entender. <br />Logo vimos uma multidão sair da bruma, aproximando-se, e divisei os rostos de homens rudes, mulheres e crianças com o semblante marcado pelas privações, mas estranhamente serenos, os olhares entre vagos e fixos, típicos dos visionários. Na frente vinha o líder perfeitamente distinguível, pois tinha o aspecto de um messias sertanejo, muito mais alto que todos, com barba e cabelos compridos, trajando um camisolão e com um comprido cajado na mão. Lembrei-me imediatamente da figura de Antônio Conselheiro, e por um segundo pensei nele redivivo. Eu estava temerosa. Onde eu tinha ido parar? Mas por outro lado, percebendo o timbre místico daquele povo, senti-me menos vulnerável por estar sem calcinha. Desculpem-me lembrar disso, meus leitores, parece leviano, mas eu estava tão sensualizada nas últimas semanas, que a mudança súbita de registro me faria estranheza, e eu, por momentos queria subir novamente naquela máquina e dissipar-me nos ares daquele sertão, nos braços do meu amado, e não estar ali no meio desse povo miserável e tão sofrido. Felizmente eu iria descobrir, envergonhada por estes pensamentos, o tesouro de seus corações, que era o próprio cerne desta terra marcada pelo sofrimento, mas também pelo combate, como o povo do meu Sul, o meu Pampa dos guerreiros de bombachas, que no fundo era... o mesmo povo! <br />Foi então que, a um gesto daquele taumaturgo, o povo todo ajoelhou-se de mãos postas, em torno de nós, não sei se diante do pavão, ou de mim e Josué. Mas a resposta a essa dúvida, veio logo quando o profeta começou a falar em voz alta, de orador nato, embora com um sotaque sertanejo fortíssimo e cheio de erros:<br />—Cumpadrinho Josué, que domô a imagem do Pavão, que trôxi a Princesa como prometeu, “seje” bem-vindo. O pavão de ferro vai trazê o nosso, o de carne sangue e esprito. Falta só uma lua. “Seje” benvinda Princesa do Pavão! A sua fremosura, vai trazê o Pavão e a terra vai sê livrada! Num haverá mais Seca, e os coroné vão vê a Ira de dom Sebastião cum suas hostes. O sangue vai corrê mas é o sangue dos poderoso, dos coroné. Bem vinda princesa galega, mais bonita que esse Sertão já viu. Vem c’o a gente que num temo palácio pra ofrecê mas é por pouco tempo!<br />Então, com aquelas palavras, as crianças e as moças levantaram-se correndo e me cercaram, tocando-me avidamente, segurando-me as mãos e levando-me com elas, enquanto eu, olhando rapidamente para traz, vi o profeta abraçando Josué. Eu estava em boas mãos. <br />Por quê, então, tinha um leve aperto no meu peito? <br /><br />_____________________________________ <br /><br /><br /><br />O acampamento daquele povo era todo de barracos e tendas, disseminado pelas encostas escarpadas e também em locais planos, que eles chamavam “panelas”, onde na maior delas havia um arremedo de capela, que era só uma fachada, recobrindo a entrada de uma caverna. A igreja deste povo era uma gruta, que eu iria demorar dois dias para poder visitar, pois eu estava sendo preparada, sem dar-me conta disso, para ser consagrada (como o quê?) numa cerimônia dentro dela. As moças virgens me cercavam, mimando-me e trazendo-me oferendas, depois de trocarem meu vestido indiano por um todo branco e também comprido, muito bonito e debruado com renda de bilro. Eu me perguntava se elas pensavam que eu também era virgem, dada toda aquela brancura. Mas ela me chamavam de princesa, e lavavam-me os pés, todos dias, ao anoitecer. Davam-me banhos numa grande gamela de madeira, dia não dia sim, pela escassez de água. E eu deixava-me mimar, e até mesmo cultuar, assim, pois eu sentia, simplesmente que era o que devia ser feito, pois eu sentia que era um momento ou um elo de uma cadeia de destino, que tinha começado muito antes desta minha vida atual. Além disso, eu confesso, que sempre acreditei ser mesmo uma princesa, pelo meu aspecto e pela maneira com que fui criada, e ainda por meus dons naturais, sobretudo artísticos, malgrado (ou por isso mesmo) eu ser neta de rudes agricultores, pelos dois lados, o alemão e o açoriano. <br />Assim, deixei-me preparar com banhos de ervas nativas daquela serra, de cheiro peculiar, para uma cerimônia que eu pressentia espantosa, e que me causava um certo temor. Com minha imaginação literária comecei a temer que seria sacrificada a uma entidade sagrada, que podia ser o Pavão Misterioso, que eu senti que elas esperavam avistar novamente durante a cerimônia ritual na gruta. Eu tinha medo, pois não sabia nunca, aqui neste sertão, onde realmente estava pisando. Tudo quilo era próximo e distante ao mesmo tempo e eu estava desnorteada. Fazia já três dias que eu não via Josué, que sumira, provavelmente com o profeta, que se chamava Sebastião Sabino, mas só designado pelo alcunha de “Profeta Pavão”, ou simplesmente Profeta. Eu estava me sentindo desprotegida com o sumiço de meu amado, e tinha pesadelos de noite, em que me via morta pelas garras de uma ave cruel, imensa, e acordava sobressaltada, suando, ofegante, e logo gritando por Josué. A moças me acalmavam, me acariciavam e acalentavam, cantando aquela linda canção de Anunciada: “Chô pavão, sai de cima do telhado...” e eu sentia que havia dois pavões, um sagrado e um profano, e não sabia qual o mais assustador, que talvez fossem duas faces cambiantes da mesma moeda: sonho e pesadelo. Eu queria fugir, mas não tinha como, do alto daquela Serra perdida no sertão, pois começava a desconfiar que era prisioneira, traída e entregue a um povo fanático, por um amante obcecado e delirante. Comecei a chorar e a tremer de medo, para transtorno de minhas guardiãs, que não sabiam me consolar, ou transmitir qualquer segurança. Eu me sentia num mundo estranho, afinal. Será que eu tinha mesmo alguma coisa a haver com aquela terra e aquele mito? Eu era uma gaúcha, uma “catarina”, uma alemã, uma açoriana, uma brasileira... mas seria também uma sertaneja nordestina? Que mistério era esse? Eu não sabia mais no que acreditar. Eu não sabia mais nada. <br /><br />_______________________________ <br /><br /><br />Finalmente chegou o dia em que depois de banhada, preparada, paramentada, toda de banco e com uma linda tiara na testa, fui escoltada no meio daquele povo, até à capela, ou “Grota” como eles a chamavam. Ali havia uma pequena multidão, e o Profeta ali estava, também paramentado, tendo ao lado Josué, ataviado com uma bela armadura de vaqueiro: o gibão de couro, as perneiras, as alpercatas, e o pequeno chapéu cônico de couro, preso ao queixo por tiras. Percebi que todos ostentavam o signo do Pavão, nas batas rudes que usavam ou na aba levantada do chapéu de couro, Josué inclusive. Eu me sentia encrencada, dentro de um ritual primitivo, talvez de sacrifício, de uma religião que afinal me era desconhecida, embora eu sentisse ressonâncias internas em mim, misteriosas. Eu queria fugir, mas senti que não era mais possível e que seria inútil e vergonhoso. Só me restava manter a dignidade. Mas até quando eu conseguiria, o que me esperava? Comecei a orar aos meus numes do Pampa, misturando, eu senti, as estações, o que produzia uma espécie de ruído de uma estática interior. O que eu deveria fazer? Eu estava perdida?<br />Duas meninas de vestido branco e longo como o meu, me conduziam pelas mãos, e passando diante de Josué eu quis abraçá-lo, mas ele fez um gesto que me deteve. Seu rosto estava impassível, mas o seu olhar, procurando o fundo dos meus, deram a entender que eu confiasse nele, que tudo iria acabar bem. Mas eu estava apavorada! O que essa gente ia fazer comigo? Havia uma melopéia no ar, que me soava estranha, senão funesta. Então, eu atravessei assim, acompanhada, o grande portal que introduzia à grota e me encontrei numa penumbra cheia de brilhos e cores, como uma caverna de calcário, cintilante. Então, eu vi! <br />No fundo, emergindo de um imenso altar, estava o Pavão Misterioso. De pé, muito empinado, ostentando o peito escamado de cores irisadas, azul cobalto e verde, as asas abertas, enormes e uma renda dourada na transição do corpo para a cauda... Esta se abria maior que tudo, como um imenso leque, com aquela miríade de olhos dourados, no centro do oval azul e verde, como os abrolhos de um oceano cósmico que se estendia no espaço-tempo da mente hipnotizada. Olhei a cabeça por último e seus olhos me fuzilavam sob a sua testa coroada. Então ouvi seu grito imenso e agudo grito, e pensei ver as suas garras se aproximando dos meus seios. Tive meu vestido imediatamente dilacerado, arrancado, num átimo, do meu corpo, deixando-me nua, mais nua que nunca, pois no meio do povo que enchia aquela gruta por todos os lados, em meio ao canto alucinante que se elevou, altíssimo, misturado ao grito terrível do Pavão, e... desfaleci! <br /><br />Naveguei muito tempo num oceano de brumas, vendo a mim mesma como sou: de uma alvura impossível, como às vezes dizem, brilhando, sentindo meu próprio brilho contra a escuridão azul. Eu me via cercada por uma noite-oceano cujas estrelas eram ilhas abismais, como olhos hipnóticos da cauda de um pavão infinito. Eu pensei em me perder naquele vôo, e por um momento pensei em não mais voltar. Então, ouvi a voz de Rôdo, meu irmão, que se transformou na voz de Josué, chamando-me, e... acordei. <br />Eu estava deitada numa rede, e Josué enxugava minha testa molhada. Eu olhei-o espantada, e pus a mão no meu seio, para ver se estava ferida, lembrando-me da última sensação, antes daquele sonho ou delírio, de que retornava. Ele, sorrindo docemente, disse:<br />—Princesa, por onde você andou? Você não sabe que reboliço causou! Mas você foi confirmada, minha princesa, o povo carregou-a em triunfo, embora desmaiada. O Pavão reconheceu-a e confirmou-a, enchendo-me de orgulho. Alma, o povo viu sua princesa nua, e nunca vira um corpo de sua alvura e formosura. Tornou-se sagrada para esse povo, e isso está me preocupando. Precisamos fugir, ou nunca mais poderemos ficar juntos, minha linda!<br /><br />______________________________________ <br /><br /><br />Josué era reverenciado por aquele povo, como uma espécie de guardião, ou general, do Pavão. Sebastião o apreciava especialmente, como a um filho, e reuniam-se a sós, para (eu presumia) conspirar. Comecei a perceber que havia um plano para descer da Serra com uma guerra declarada aos poderosos da região, aos donos das terras, quer dizer, aos coronéis. Havia, portanto, uma dubiedade em Josué, diante de nosso plano de fuga. O que realmente ele estava inclinado a fazer? Comecei a pensar que ele achava que poderia conciliar a mim, isto é, o nosso amor, e a sua guerra. Questionado por mim, ele disse:<br />—Minha querida, você viu o que fizeram com minha casa. A guerra já está declarada, os inimigos querem a minha cabeça, minha nave, e também a você. Há coisas que você não sabe mais, ou não quer lembrar. Em breve eu lhe contarei tudo. Por ora, digo-lhe que Ludugero, através do filho, não porá sua pata sobre você, minha princesa, prefiro vê-la morta.<br />Fiquei assustada, eu não sabia que estava no centro daquela guerra, como pivô de uma disputa entre o filho do melhor jagunço do coronel João da Cunha, o velho Malaquias, que era o meu finado sogro, e o filho do coronel Ludugero, aquele da peleja noturna no milharal, que me foi contada pelo velho Malaquias, e que eu, recontando para o amigo cordelista Guilherme de Faria, ele tinha transformado neste cordel:<br /><br />Romance da Noite de Guarda<br />(Cordel de autoria de Guilherme de Faria)<br /><br /><br />1<br />Noite clara sobre o campo,<br />Uma noite para rede,<br />Para oiá pirilampo <br />E beijá pra matá sede<br />2<br />Dava pra ver o amarelo<br />Das espigas ao vento<br />Mas longe do desvelo<br />Do abraço da Adivento<br /><br />3 <br />Nóis tava no milhará<br />Eu mais Ezequié<br />E ainda dois camará<br />A serviço do coroné<br /><br />4<br />Um chamado Dijaniro<br />E outro, o Zé do Pinho<br />Que eu conhecia pouquinho.<br />O primeiro mal refiro.<br /><br />5<br />O João da Cunha de nome,<br />Era o nosso patrão<br />Grão-chefe deste Sertão,<br />Poderoso, de renome.<br /><br />6<br />Nóis tinha de montar guarda<br />Na divisa, ali cercada.<br />Arami vai, arami vorta<br />Na divisa c’uma horta<br /><br />7<br />Do coroné Ludugero<br />Um Átila deste sertão<br />Que sem pergunta se é vero<br />Não respeitava mourão. <br /><br />8<br />A divisa já matava<br />Há mais de treis geração:<br />Haja quem raso cava,<br />Haja tiro, haja mourão.<br /><br />9<br />A hora eu via não<br />De vortá para a famía.<br />Home neste sertão<br />Só na briga tem valia.<br /><br />10<br />Eu tinha deixado a Divento<br />C’os menino e embuxada.<br />Tudo magro e catarrento<br />Esperando a farinhada<br />11<br />Mais feijão e rapadura<br />Se desse certo a empreitada<br />E sobrasse da fartura <br />Da festa da jagunçada.<br />12<br />Aí a primera bala<br />Zuniu fininho “pium”<br />Que nem marimbondo fala <br />Na oreia de quarqué um.<br /><br />13<br />Daí a poço o milhará<br />Estralava feito espinho<br />Quando o fogo vai pegá<br />Para abrir nosso caminho.<br /><br />14<br />Era bala de lá <br />E outra bala de cá.<br />Óio e vejo o Dijaniro<br />Garrado num pé de mio.<br /><br />15<br />De repente entendi<br />Que ele já num tava ali:<br />Devagarinho tombando,<br />Como que fosse rezando.<br /><br />16<br />Com as mão em oração<br />C’um vela de devoção<br />Que era só uma espiga,<br />Sua derradeira amiga.<br /><br />17<br />E tombo teso então<br />Levantando a poeirinha<br />Que somente eu vi, no chão,<br />Que obeservação eu tinha.<br /><br />18<br />Então senti o ferrão<br />Do marimbondo na coxa.<br />Ajoelhei naquele chão<br />Pra rezá pra vaca moxa.<br />19<br />Quer dizê: sem nem lembrá<br />De uma boa oração,<br />Que hora era de atirá <br />Ou deitá naquele chão <br /><br />20<br />Mas Zé do Pinho chegô<br />Na hora e me arrastô<br />Pelo milhará afora<br />Como se fosse uma tora.<br /><br />21<br />C’uma força de anjo<br />Amparava no sovaco<br />Este tamanho marmanjo<br />Que tava ali feito um saco.<br /><br />22<br />E abrindo trilha a facão<br />Tentava chegá no meio<br />Do curral pra ter ação<br />E respondê tiroteio<br /><br />23<br />Acabô pondo nas costas<br />Este traste aqui que eu era.<br />O home tava uma fera<br />E atirava inté as bostas<br /><br />24<br />Das vaca que tava a ali<br />Naquele curral sangrento,<br />Mas do sangue deste aqui<br />Que já tava meio lento.<br />25<br />Mas eu tinha (e sou certeiro)<br />Minha espingarda na mão<br />E chegando no chiqueiro<br />Deitamo atrás de um capão<br /><br />26<br />Enorme, que amortecia<br />As bala na sua gordura.<br />Nunca vi dois caradura<br />Fazê isso c’uma cria...<br />27<br />O bicho grunhiu de dá dó<br />Mas depois do berro ouvir<br />Pudemo então distinguir<br />O que era tiro só.<br /><br /><br />28<br />Fazendo fogo cerrado<br />Atiramo adoidado<br />Por mais de uma hora ali<br />Num cheiro que nunca vi.<br />29<br />Atolado ali na merda<br />No sangue e na gordura<br />Deitados como quem herda <br />De tiros essa fartura.<br />30<br />Até os jagunços feros<br />Do coroné João da Cunha<br />Expulsá os ludugeros <br />Do coroné dessa alcunha<br />31<br />Saímo então mais sujo<br />Que uma mula embosteada<br />No meio da gargaiada<br />Da jagunçada do cujo.<br />32<br />O cumpadre Zé do Pinho<br />Tinha de sê o padrinho<br />Dessa minha fia muié:<br />Eleussuína da Fé<br /><br />33<br />Que nasceu naquela noite<br />De tiros como um açoite.<br />Eu mais o Zé do Pinho<br />Tivemos esse gostinho.<br />34<br />Agora que tamo em casa<br />Vamo chamá a Dafé<br />Que é nome bonito e casa<br />Para servir um café.<br /><br />FIM<br /><br />Josué era o herdeiro daquela disputa entre os Cunhas e os Ludugeros!<br />E eu, o que tinha a haver com aquela disputa por um milharal? Na tardei a perceber que o milharal era a ponta do iceberg, quero dizer, a ponta de um imenso pedaço de terra que envolvia uma disputa entre duas famílias e uma mulher, que era uma galega, conforme eles diziam, que era o verdadeiro pivô da disputa. A palha de milho, dourada, assim como a cor das espigas, era o indício, ou melhor, era o signo da galega, a cor de seus cabelos! Mas quem era essa mulher? Isso é o que faltava saber, e sobre o qual havia um mistério. Faltavam dados para alinhavar a trama daquela disputa na qual eu estava envolvida sem saber porquê. Josué me devia uma explicação mais ampla, já há muito tempo. Por quê ele se apaixonara por mim, e através disso motivando-se a construir, ou reconstruir, como ele dizia, o Pavão? Resolvi, naqueles dias, ali na Serra, tirar aquilo a limpo. E num momento raro de intimidade, apertei Josué sobre aquela questão, que podia ser assim resumida: “Por quê eu?” <br />Josué, olhou para os lados, como se preocupado com espiões, e baixando o tom de voz a um sussurro, disse:<br />—Alma, precisamos sair daqui, Sebastião quer deflagrar uma guerra generalizada, enquanto a minha guerra, é só contra os ludugeros, que tenho uma chance de vencer, enquanto este povo aqui está condenado, esta é a verdade. O exército da União está se encaminhando para cá e vai chacinar a todos. São vistos pelo Estado como sediciosos que conspiram contra a República, tal qual o Conselheiro de Canudos, muito tempo atrás. Este povo espera a ascensão do Pavão em carne e espírito, que anunciará a volta do rei dom Sebastião, o Venturoso, do qual Sabino se considera a reencarnação. Quando o pavão da Grota criar vida, ele estará pronto, é o que ele anuncia a este povo. Enquanto isso ele estoca armas, pagando os traficantes com esmeraldas que ele descobriu no fundo daquela grota. Essa é que a verdade! Alma, precisamos dar o fora enquanto ainda é tempo. <br />—Mas Josué, então por quê me trouxeste aqui? Estou confusa. Tratam-me como uma princesa, e o perigo é que tenho uma tendência a acreditar e até a gostar disso, enquanto outro lado meu se revolta. A imensa miséria deste povo me deixa impotente, e com escrúpulos. Sou só uma moça sulista, Josué, uma artista, pintora e poetisa; minha família me espera, lá no Sul, na nossa estância, da qual já morro de saudades.<br />—Bem, Alma, quanto a isso, você se ilude. Você tem mais a haver com tudo isso, toda esta guerra, do que pode imaginar, ou do que quer se lembrar. Mas no momento certo você saberá de tudo. Agora ainda não é o momento. Temos que dar o fora. Já tenho tudo planejado, esta noite decolaremos, sem empecilhos, espero, pois acho que Sebastião Sabino ainda não desconfia do meu plano de deserção.<br />Olhei Josué profundamente nos olhos, e dei-me conta novamente do quanto o amava, a esse jovem sertanejo, tão civilizado, e que tinha dons tão especiais. O seu Pavão, por si só era um tesouro, com seus segredos científicos, e eu suspeitava que ainda não vira tudo o que ele podia fazer. Ah! O que nos estava reservado ainda, de vôos e perigos naquele Sertão de sonhos por cuja Trilha eu tinha enveredado desde há cinco anos atrás, talvez mais, muitos anos mais!<br />Naqueles dias, enquanto esperava o momento de fugir dali com Josué, eu registrei em meu diário as minhas impressões daquele povo e daquele lugar, que recentemente revi, ao folhear o caderninho, depois de passada a fase das aventuras:<br />Diário de Serra Talhada<br /><br />Serra Talhada, terça feira, ... de Janeiro de...<br /><br />Letícia vem me trazer a comida, simples, que é quase a mesma que eles comem, apenas com um pequeno requinte, ou um mimo, como uma flor rara desta Serra. Esta guria (quase não posso designá-la desse modo tão gaúcho, pois uma menina nordestina, é algo muito diferente de uma “chinoca” da minha terra. Aliás, tudo aqui é tão diferente... Tão mais agreste, mais cru e ressequido. No entanto a doçura das meninas é a mesma) tem imensa “precisão” de sonho e de beleza. Aliás, desconfio que é necessidade que move a todos aqui, por trás de um aparente fanatismo. Não é o sonho do Pavão um indício dessa necessidade de um vôo transcendente sobre as misérias de suas vidas, de seus destinos agrilhoados a uma carência estrutural, que é a da maioria do povo deste imenso país? Letícia precisa me tocar, para saber-me real, pois minha brancura a fascina, mais ainda do que meus olhos verdes, que isso é raro, mas se encontra, vez por outra, por aqui. Mas meus cabelos louros arruivados, como ouro velho, ela os quis tocar fazendo deslizar sua mãozinha pela minha cabeça com uma emoção visível em seus olhos de cabrita. E ela perguntou-me: “É de ouro?”, com tal pureza e ingenuidade que me comoveu, por minha vez. Abracei-a e ficamos um bom tempo, assim abraçadas, e eu sentia seu coração ligeiramente acelerado, num sonho acordado que a acometeu, e que iria acompanhá-la para sempre, eu senti. <br />.....................................................................................................<br /><br />Serra Talhada, sexta feira, ... de Janeiro de...<br /><br />O grupo de gurias, as “virgens” que me servem, tratam-me como uma noiva sagrada. De quem? Do Pavão... mas o que será isso? Preparam-me para uma cerimônia, que me causa imenso temor. Todo casamento implica numa consumação que contém em sua essência o caráter do estupro, essa é que é a verdade. Josué está conivente com isso? Eu me pergunto, pois não me parece que seja ele o símbolo em carne e osso do Pavão, mas apenas seu lugar-tenente, pois percebo que o General é o próprio profeta, Sabino (vou chamá-lo daqui por diante por esse nome, para diferenciá-lo de Dom Sebastião, o Esperado, de quem ele se considera a reencarnação). Que o Profeta não se atreva a me tocar. Eu preferiria morrer. Isso tudo já está indo longe demais. <br />...................................................................................................<br /><br />Serra Talhada, Domingo... de Janeiro, de ...<br /><br />Hoje, duas mulheres velhas, umas bruxas, vieram à minha tenda, junto com duas das virgens, e disseram-me que vinham atestar minha virgindade, pois embora eu tivesse vindo com o Josué, se eu fosse a noiva prometida do Pavão eu seria a “virgem anunciada”. Antes que eu pudesse reagir seguraram-me deitada na esteira, com força, enquanto eu me debatia, indignada. Levantaram minha saia, e abriram minhas pernas, enquanto a mais velha abria os lábios da minha vulva e olhava lá dentro. Fez um olhar de aprovação e introduziu um dedo até o fundo (eu confesso que tive nojo daquela garra, de longa unha terrosa, que no entanto não me machucou, graças à sua prática de velha bruxa. Então, dando uma casquinada de feiticeira, mas de visível satisfação, ela disse:<br />—Você é mesmo virgem, minha princesa. Pode se casar. O Noivo vai gostar muito, tão apertadinha que agarrou meu dedo. Logo logo estará mais aberta que uma caçamba! Ah! Ah! Ah! Hi! Hi! Hi! <br />Não sei se senti alívio ou se meu nojo aumentou. Aquilo deveria ser para mim motivo de satisfação? Meu coração estava confuso. Mas eu sabia há muito tempo dessa característica da minha anatomia íntima, agora devassada: meu incrivelmente flexível hímen complacente! <br />.............................................................................................<br /><br />Serra Talhada, terça feira, ... de Janeiro.... de ....<br /><br />A verdade é que me sinto violada, com aquela intrusão da velha bruxa na minha intimidade, eu, que já fui estuprada, pelo menos três outras vezes na minha vida, por um estranho encadeamento de circunstâncias, ou como conseqüência de características físicas e de personalidade, que me deixam tão vulnerável, apesar de ser uma “princesa” para muitas pessoas, ao longo da minha vida. Não posso me esquecer, de que meu próprio irmão, de certa forma me possuiu à força, quando era ainda menina. Mas aquilo eu própria viria a chamar de “estupro consentido”, expressão essa que ouvi do ginecologista a que minha mãe me levara, depois que nos pegou, brincando nuzinhos, eu e Rôdo. Foi ali também que soube que ainda era virgem, o que aliviou em parte minha mãe, que, no entanto, tratou de afastar meu irmãozinho de mim, enviando-o para um colégio interno, o que me causou imensa dor. Anos mais tarde outro médico iria dar esse diagnóstico: hímen complacente, o que eu percebi, não era estranho à minha mãe, pois descobri um dia, era a única característica que tínhamos em comum, além da extrema brancura da pele. <br />Escrevi isto neste diário sem medo de outro tipo de violação, pois sei que são todos analfabetos por aqui, inclusive o profeta. Exceção feita, é claro, ao meu Josué, que é maravilhoso desenhista, mas somente semi-analfabeto.<br />....................................................................................................<br /><br />Serra Talhada, Quarta Feira... <br /><br />Começam os preparativos para as bodas. Mal posso compreender que sou eu a noiva. Pergunto-me, a mim mesma, o que foi que eu fiz de errado para as pessoas pensarem que podem me manipular e se considerarem donas do meu destino. Não levam em consideração que eu sou uma moça culta, artista e filha de meu pai. O que será que acontece? Será a minha beleza, que me torna assim tão visada e vulnerável? A beleza feminina conterá somente os signos da sexualidade? Quanto mais bela, mais fêmea? Parece que se trata disso. Mas devo reconhecer que meu próprio corpo, curvilíneo e esguio ao mesmo tempo, voluptuoso, de andar involuntariamente ondulante, me trai e me expõe, primeiramente aos olhares indiscretos de todos, e me faz cobiçada, como um objeto de desejo da maioria, até mesmo de muitas mulheres. Percebo que já dei a resposta à pergunta que fiz, na minha súbita revolta. Ai de mim! Não! O pior é que grande parte de mim gosta disso, e eu não abriria mão, se pudesse, desse dom, com que Deus me agraciou. Devo reconhecer, sob pena de hipocrisia, que sou grata a ele por minha beleza que condiciona meu agitado destino, cheio de acidentes de percurso. <br />...............................................................................................................................<br /><br />Serra Talhada, Domingo....<br /><br />Acordei após a “ Boda do Pavão”. O que aconteceu? Soube pelas gurias, que me contaram com grande receio de serem ouvidas, que eu tive meu vestido rasgado em plena cerimônia, e que isso era o esperado. Que isto confirmava-me como a esperada, e que fui violada pelo “noivo sublime” na frente de uma parcela escolhida dos fiéis, e depois carregada nua, desmaiada nos braços do povo com uma veneração extrema, espasmódica em muitos, que se jogavam ao chão também rasgando seus trapos. Aquilo tudo era uma loucura! Josué não pudera me proteger! Ou não quisera. Uma imensa revolta me tomou, enquanto instintivamente, na frente mesmo daquelas meninas abri minha vulva com os dedos, enfiando dois deles, que saíram cobertos de um esperma viscoso que limpei na esteira, com nojo, soluçando e gritando, espantando as meninas que correram para fora da tenda. Mais uma vez eu fora estuprada, mais uma vez! Aiiiiiii!!!!!!!!! <br />........................................................................................................................<br /><br />Serra Talhada, segunda feira...<br /><br />Graças a Deus, encontrei minhas “pílulas do dia seguinte” na minha mochila, e afastei, creio, o perigo de uma gravidez do meu violador. Josué vem hoje me visitar, segundo soube pelas minhas gurias. Ainda bem que o meu “marido” não apareceu depois das bodas, o que é outro mistério. <br />...................................................................................................<br /><br />Josué veio visitar-me na tenda, para meu grande alívio. Mas eu o recebi, de saída, com um tapa em seu rosto e aqueles soquinhos ridículos em seu peito, que atestam nossa impotência de mulheres, diante da força física dos homens. Ele me agarrou e me beijou apaixonadamente, e quando inquirida por mim, em lágrimas, sobre o que acontecera, aquela lambança com meu corpo, que me descreveram, eu ali, desfalecida, completamente indefesa, ele sorriu, e respondeu:<br />—Alma, fique tranqüila, nenhum outro homem e muito menos um pavão violou você. Fui eu, meu amor, fui eu que vestido como o pássaro sagrado, com uma máscara coroada e com bico, possuí você, tendo que assustar você, meu amor, para ser convincente, ou eu seria descoberto e morto pelo povo. Mas os detalhes dessa operação estratégica e como substituí o “noivo” eu contarei um dia, depois que escaparmos daqui. Perdoe-me, meu amor por esse sofrimento seu, que fui obrigado a aumentar, para justamente salvar você! <br />Amoleci, diante dessa revelação surpreendente, em que preferi acreditar, e deixei-me beijar demoradamente, nos lábios, enquanto eu sentia seu enorme falo subindo entre minhas coxas doloridas. O quanto meu amor me possuíra, e com que força, nua e passiva, na frente da multidão? Pus-me a imaginar, enquanto ele se despedia e se esgueirava para fora da tenda, sorrateiramente. <br />_______________________________________<br /><br />O profeta veio, pela primeira, vez me visitar. Impressionou-me, de perto, a sua estatura e sua magreza. E também o seu carisma. Ele abençoou-me e por alguma recôndita razão aquilo me comoveu, por instantes, pois eu perdoava as pessoas e os fatos com muita facilidade em minha vida, resolvida desde sempre a ser feliz, fórmula difícil na vida do ser humano, mas que eu pensava ter descoberto ainda na minha infância, com a canção de Zaratustra, lida por meu pai, e até cantada por ele, como lied alemão, com sua voz maravilhosa de barítono. O segredo da felicidade estava na Alegria. Era necessário crer que ela era “mais profunda que a dor”, e portanto fazia da dor algo fútil, comparativamente. A alegria era uma virtude, uma das maiores, depois da bondade, da generosidade e da liberdade, as três virtudes cardeais, no meu código instintivo infantil. Mas quanto eu haveria de, paradoxalmente, sofrer pela minha fidelidade à Alegria! <br />Outro fator de sofrimento ocasional, foi a minha sensualidade que se manifestara precocemente, embora os sofrimentos a que me refiro, no meu caso por incrível que pareça, não se deveram a remorsos, ou sentimento de culpa, muito menos por um hipotético sentimento de “pecado original”, cuja essência nunca assimilei, rejeitando-a de uma maneira muito assumida e consciente. No entanto, eu mesmo descobriria que, com o tempo, de maneira insidiosa, fui traída pela transformação dessa minha rebeldia em masoquismo psico-sexual, numa volúpia de sentir dor física associada ao sexo. Eu ainda estava nessa fase, apesar de me ter revoltado com o estupro que sofri na frente daquele povo, ali na Serra Talhada, desmaiada e indefesa. <br />Eu precisava sair logo dali, abandonando aquele povo ao seu destino, pois eu precisava me lembrar, de que a cada um cabe carregar a sua própria cruz, nesta vida. Afinal, a “princesa” já fizera a sua aparição nas vidas daquelas pessoas tão carentes.<br />Então, naquela noite, o Profeta entrou em minha tenda e apontando para mim a sua mão ossuda, disse:<br />—Princesa, as hostes do inimigo se aproximam. É chegada a hora do Pavão! Amanhã, o mundo vai acabar e começar. Vosmecê estará na frente, com o estandarte do Pavão, que a princesa foi consagrada a ele. As balas não podem atingir vosmecê. Vai ser um pipoco do Inferno, mas a justiça de el-rei vencerá. Os maus serão derrotados e Dom Sebastião estabelecerá o reinado do Pavão e sua princesa estará do lado direito do trono. Prepare vosmecê com este vestido real de guerra!<br />Sabino retirou-se deixando sobre uma arca ao lado de minha esteira um vestido branco, de rendas, mais bonito que o primeiro, aquele de noiva, que fora dilacerado pelas garras do Pavão ou o que quer que tenha sido. Por instinto feminino peguei o vestido e coloquei-o no meu peito, tentando imaginar-me nele, já que por ali só havia um espelhinho minúsculo, emoldurado. Mas lembrando de suas palavras, fiquei apavorada, ao ser notificada de que eu seria colocada na frente do tiroteio. Eu, hem? Era hora de partir, não podíamos passar daquela noite. Eu esperava o momento de fugir, ansiosamente, como quem está votada a um pelotão de fuzilamento. <br />Naquela noite interminável, perto da meia-noite ouvi o assovio combinado de Josué, que pôs a sua cabeça dentro da tenda, encontrando-me pronta, de mochila nas costas. Partimos por entre as barracas e tendas adormecidas, rumo à plataforma natural de pouso do Pavão. Ainda no caminho, começamos a ouvir os primeiros tiros. Era uma noite de lua cheia, e pudemos avistar o corre-corre dos adeptos do Profeta, transformados em ferozes jagunços, colocando-se nas posições estratégicas, para atirar para baixo, nos inimigos que subiam. O exército nacional, que era o exército dos coronéis, já subia a montanha atirando. <br />Chegamos à plataforma e encontramos o Pavão cercado de uma montanha de oferendas e ex-votos, numa tal quantidade que tivemos dificuldade de subir nele: havia tralha até sobre suas asas, que tivemos que desatravancar. O povo idolatrara a máquina de Josué, mas graças a isso ela estava intacta e funcionava muito bem. Logo o motor restava ligado e nós decolando na vertical, quando as balas já zuniam ao nosso redor. Começamos a nos afastar do acampamento, no meio das explosões de morteiros e granadas, e até tiros de canhão. Focos de incêndio iluminavam cenas escabrosas de lutas corpo a corpo, de baionetas contra peixeiras, de soldados contra sertanejos. Josué em vez de se afastar imediatamente, estava fascinado e deu uma volta perigosa sobre aquele campo de batalha, e pude perceber as primeiras “degolas”. Comecei a gritar para que ele afastasse logo a nave, pois não poderia ver mais, pensando nas mulheres e crianças, cujo horrível destino era previsível. Era realmente o fim do mundo, e comecei a chorar amargamente. A nave afinal abriu sua volta e voou sobre o deserto, a caatinga sem fim, rumo a Salgueiro, conforme anunciou Josué, cidade no sertão pernambucano, cujo nome me soou coerente com as minhas lágrimas. Eu não parava de pensar, nas “gurias”, ou melhor, meninas, que me serviram e banharam, tão doces e dedicadas, naqueles dias. E minha, Letícia, ai!... Que horrível destino as esperava? Eu não podia nem pensar, que o coração se me apertava de angústia... eu, que conhecia bem o es... Não! Voa, pensamento, voa com o Pavão, vamos ao coração do sertão, vamos chorar em Salgueiro, lá deve haver uma capela, onde possamos rezar pela alma dos crentes, dos fanáticos, e das almas puras das crianças martirizadas, e das mulheres deste Sertão inclemente. <br />As estrelas contemplavam nosso vôo, plácidas, serenas, impávidas no seu sábio distanciamento das paixões humanas, e eu me lembrei da prece de um outro rei* muito distante daqui, inscrita no seu sarcófago, na sua tumba no Vale dos Reis:<br />“Ó mãe Nut! Abre tuas asas sobre mim, como as imperecíveis estrelas!”<br /><br />(*O Faraó Tut-Ank-Amon)<br /><br />_______________________________________________________________-<br /><br />Capítulo Quarto<br /><br />O Salgueiro Chorão<br /><br /><br />Depois de horas de deslumbrante e triste vôo, em que víamos de cima as formas espectrais da caatinga assombrada, com as ossadas sinistras das rezes, naquela vastidão seca onde só as cabras e as mulheres sobrevivem, pois que os homens fogem para o sul, nós, que tínhamos por cima as impassíveis estrelas, já tínhamos secado nossas lágrimas, na proa, abraçados com os cabelos ao vento, já recuperávamos em nós o direito de sermos felizes, pois éramos belos, jovens, e não carregávamos culpa conosco, naquela nave silenciosa. <br />Avistamos as luzes da cidadezinha, e Josué resolveu pousar longe da cidade, nos arredores, em plena caatinga. Foi o que fizemos, por prudência, aterrissando na vertical para poupar as rodas do Pavão, daquele solo rachado. Josué com seu facão cortou galhos retorcidos e espinhosos das catingueiras, e cobriu o pavão, camuflando-o. Depois, pusemo-nos a caminho, eu com minha mochila, e Josué com sua incrível maleta de migrante, de folha de aglomerado revestida por dentro com papel de parede modelo antigo, que eu conhecia, mas não o seu misterioso conteúdo talvez de grandes projetos e revelações, a julgar pelo peso, que o fazia parar a cada cem passos, para um descanso rápido e mudança de braço. Josué sempre fora misterioso, como o seu pavão, para mim, sua princesa do sul, que me considerava um livro aberto, transparente como o céu do meu Pampa, como o verde dos meus olhos e das coxilhas da minha terra de verdes pradarias. Como tudo aqui era pardacento, seco, duro! A beleza desta terra era difícil para mim, de compreender. E eu destoava dela com minha brancura que chamava a atenção, mesmo à noite, a luz do luar refletindo em minha pele como um pálido nenúfar, de um pântano espectral, cuja água, só existia na sua dimensão de sonho. <br />Eu me perguntava por quê estávamos ali, nos aproximando de uma cidadezinha anoitada, adormecida, anunciados apenas pelo alarme dos galos, como cassandras desacreditadas, muito distantes ainda, do amanhecer. O que Josué tinha a fazer em Salgueiro, além da minha sugestão de orar e chorar diante de uma capela que tivesse em sua frente um salgueiro chorão, árvore que ama as águas dos lagos tristes, que eu duvidava que existisse naquele sertão seco?<br />Entrando por uma ruela, logo Josué estava batendo na porta de uma pensão triste, que acendeu suas luzes mortiças, de lâmpadas fracas, depressivas. Mas eu me consolei com a idéia de que aquela era a nossa noite de núpcias, pois de certa forma eu me casara com o Josué-pavão, idéia que me fez soltar uma pequena gargalhada, logo abafada, pois era alta noite e devia haver hóspedes naquela pousada.<br />Registramo-nos, como um casal, na portaria daquela pensão, que era ao mesmo tempo um hotelzinho precário, com uma pequena fauna humana como hóspedes, que iríamos conhecer e um dia recordar em meio a risos. <br />No quarto, a luz mortiça da única lâmpada dependurada pelo fio e um interruptor de torcer, no bocal, era tão deprimente, que preferi minha noite de núpcias na escuridão total, o que contribuiu para perpetuar o timbre onírico da minha experiência nordestina. Mas não pensem vocês, meus leitores, que isto tudo que venho narrando se passou somente na minha cabeça. Não, não, bem... jamais saberão... O que é a vida, senão um sonho, tantas vezes pesadelo, para alguns? As crianças e os artistas não costumam distinguir bem a fronteira entre sonho e realidade, se é que ela existe. Creio que a vida consiste numa corda estirada sobre um abismo, percorrida com maior ou menor desenvoltura por todos nós dançarinos mambembes, de corda. Mas que saltimbancos habilidosos somos nós, os artistas! Que coragem temos nós sobre o abismo! Que ingênua coragem, que neutraliza a nossa vertigem, nossa tentação de abandonarmo-nos e cair! <br />Josué continuou seu vôo comigo, até os primeiros albores do amanhecer, como a cotovia (que não o rouxinol, que ambos não existem no sertão “real” ) anunciar a manhã sobre os galos adormecidos. Então, por minha vez eu dormi, saciada, escorrendo entre as minhas pernas o rico sumo do meu amor, que nunca tinha ouvido falar em camisinha outra que não aquela dos versos do acalanto de sua irmã: “... vou lavar vou engomar camisinha pra você...” <br />Despertei perto do meio-dia, vendo a cama vazia, do meu lado, e por momentos demorei a me situar, pensando estar em São Paulo, num hotel mambembe, da boca do lixo, como uma alcoólatra, que acordasse dentro do pesadelo de seu despertar, de sua ressaca. Não! A imagem é demasiado forte e não pertence ao me repositório de experiências, que nunca fui uma bêbada, senão de mim mesma, e quiçá das minhas paixões, na verdade muito puras, malgrado a nota crescente de um masoquismo que ainda me assusta. Coloquei, como sempre faço, a mão sobre as minhas aberturas, e senti-as bastante presentes, isto é, congestionadas por uma noite alucinante, em que fui cavalgada na frente e atrás pelo cavaleiro dos espinhos, sem gibão, na sua desabalada carreira pela caatinga da Alma, digo... Bem, estou poetando demais, essa é que é a verdade, eu estava arrombada, isso sim, mas feliz e querendo mais! Chamei o meu amado, três vezes. Então a porta se abriu, e uma mulher morena, de uns quarenta anos, de rosto simpático, com alguns traços de índia do Cariri, olhou-me agudamente, e perguntou: <br />—Alma, você quer sapoti, ou jaca, no café? <br />Fiquei um pouco desconcertada, pois eu estava nua, e de pernas abertas, como esperando o retorno do noivo. Mas pondo a mão sobre minha concha tão exposta, pois encimada por ralos pêlos louros, sobre a qual percebi a atenção daquela mulher, respondi meio titubeante:<br />—Sapoti? Não sei... quero dizer... Jaca.? Aonde estou? Não sei...<br />A mulher sorriu, depois de observar meus seios pequenos muito brancos, de aréolas cor de rosa, de aspecto virginal, já que eu só cobrira a minha mucosa de baixo, desabrochada. Ela disse:<br />—Ó Xente! Vosmecê é uma galega arretada de bonita, não é não? Que faz uma moça assim, aqui, neste fim de mundo? Você é do sul, não é não? Eu vi na sua ficha. Olhe que é um bocado longe! O Josué foi buscar você lá? Esse Josué! Que olho ele tem! Mas diga lá, jaca ou sapoti? <br />—Sapoti... eu acho... Mas a senhora, como se chama? Já conhecia o Josué? ( eu já me envolvera no lençol e observava aquela mulher interessante, que percebi que conhecia Josué de outros carnavais). <br />—Eu sou Luzia. Vige! O Josué, quem não conhece? Josué é famoso, neste sertão. Ele e seu sonho de voar... Uma vez o prefeito, o anterior, expulsou ele daqui, dizendo que ele virava a cabeça das mulheres honestas da cidade, com aquele sonho. Ele foi longe agora, pelo visto foi buscar uma lá no sul, para descabeçar. Eu disse descabeçar, não me entenda mal. Mas “minina”, como é que foi conhecer esse malungo do Josué?<br />—Ah! Luzia, Josué é um sonho, tu sabes, ele é doce. E muito firme também. Ele é muito “home”, como vocês dizem aqui, e não é “garganta”. E ele faz nascer o sonho e mostra o pássaro. Quero dizer... Desculpa, tenho mania de fazer poesia. Sabe, sou poeta.<br />—Ó Xente, você escreve cordel? Toca viola também? Olha que é raro mulher fazer isso, por aqui. Tem umas, mas... mulher gosta mesmo é de ser cantada por um cordelista, nesta vida. E de sonhar e cuidar do seu amor e da filharada. Tem umas rendeiras por aqui, que são artistas. Eu quero levar você pra conhecer. Vai ver o que é poesia de mulher, aqui no sertão. <br />—Ah! Luzia, mal posso esperar, Sim, me leva pra conhecer essa rendeiras, de que ouvi falar. Quero depositar flores aos seus pés. Vocês tem flores por aqui?<br />—Ó xente! Tem precisão não! Só de serem visitadas por uma galega assim, elas vão ficar muito contentes, e inspiradas. Mas se você quiser comprar umas rendas, melhor ainda. Às vezes vem gente de fora, do exterior, pra comprar renda, mas nem por isso elas vendem mais caro. Elas gostam mesmo é de elogio. Parece que vocês artistas vivem só de elogio, não é não? Aliás, elas não sabiam que eram artistas, até vir uma senhora sueca, muito descorada mas simpática, que comunicou isso a elas. Mas elas não entenderam não, que isso de artista pra elas é outro mundo. Mas foi bom, porque alguma coisa mudou, pois começaram a fazer umas rendas maiores, mais ambiciosas. E estão fazendo uma, coletiva, muito grande que conta uma estória famosa. Já viu isso, uma renda contar estória? Não é nenhuma tapeçaria não, é renda mesmo. Tem até jornalista da capital que veio aqui, com um professor, pra ver e fazer reportagem. Mas eu vou lhe levar, pra você ver. <br />Dei um pulo da cama, já eufórica para ver aquilo, o lençol caiu, mas não liguei mais e comecei a tirar minhas roupas da mochila, procurando minha pasta de dentes e a escova, e tirando meu vestido de renda branca, da batalha de que não participei, de Serra Talhada, que eu pensava vestir depois de um banho. Luzia pareceu assombrar-se novamente, dizendo:<br />—Minina! Você é linda demais!. Nunca vi um corpo assim, de pernas tão compridas, e tão certinhas. Que pés de princesa, e que mãos! Que olhos, que cabelos! Você é branca como uma aparição! Você é deste mundo, bichinha? Olha, que agora me deu medo. Ninguém é assim! Você não tem uma manchinha, uma marca sequer nessa pele, de seda. Posso passar a mão, só um pouquinho! Minina! <br />Fiquei, comovida, por um momento. Sempre acontece isso comigo. Fico com os olhos cheios de lágrimas, quando encontro essa reverência pura, e desinteressada... à minha beleza. Mas percebo que fico comovida comigo mesma, no fundo, e sempre me pergunto o significado de Deus ter-me feito assim, e ainda poeta. Deve ter um sentido, uma missão, de que não estou muito certa de estar sendo digna. Mas por outro lado, se cobrisse e escondesse muito essa beleza e não usufruísse dela, não estaria, desperdiçando e traindo a dádiva divina? Sempre quis dar-me, a todos, e a cada um. Mas somente aos bons e aos puros, embora três do lado de lá já me tenham violado, e usufruído ilegitimamente, por assim dizer. <br />Deixei Luzia passar a mão nas minhas costas e nas minhas pernas, e até nos meus seios. Ela, então, teve um súbito arrepio e retirou-se quase correndo. Fiquei um pouco surpresa, e voltei às minhas providências para aprontar-me logo, antes que eu fosse buscar aquela mulher lá na portaria, para entregar-me a ela. Eu sou assim. Preciso controlar-me. Sou “dadivosa” demais... Uma vez eu disse a Rôdo que gostaria de ser puta, mas meu irmão sorriu e abanou a cabeça, dizendo:<br />—Alma, tu não tens a menor idéia do que seja isso. <br /><br />___________________________________________<br /><br />Josué veio encontrar-me no pequeno refeitório, banhada e vestida como se estivesse num hotel, digamos... três estrelas, do nordeste, claro, pois em frente a uma travessa de sapotis e uma xícara de café. Beijou-me nos lábios como se espera no dia seguinte à noite de núpcias, e eu estava encantada. Tomamos o café juntos, e Luzia veio encontrar-nos para dizer:<br />—Bom dia, pombinhos! Estão prontos para irmos visitar as rendeiras? <br />Saímos com ela e andamos por várias ruas, típicas de cidadezinha nordestina. Mas logo estávamos numa pracinha onde se encontravam várias rendeiras sentadas diante de seus tamboretes, trançando com prodigiosa habilidade seus bilros. Parei diante delas, e fiquei ali, fascinada, enquanto Luzia me contava a estória real, e relativamente recente, de uma delas, que ela conhecera e que já não estava ali. <br /><br /><br />Romance da Rendeira<br />(cordel de Guilherme de Faria)<br /><br />1<br />Chora viola na alma,<br />De mim, que canto sem ela.<br />Canto a seco, leio a palma<br />Pinto sem tinta e sem tela.<br />2<br />Ando por esse Brasil<br />Que é todo imenso sertão:<br />A “sociedade civil”<br />Não é civilização.<br /><br />3<br />Pelo menos por enquanto<br />Com tanta bala perdida<br />Vou voltar para o meu canto<br />Antes que aqui perca a vida.<br />4<br />Lá no sertão verdadeiro<br />Pelo menos sei o rumo<br />Basta olhar um vaqueiro<br />E sei o que é ter prumo.<br /><br />5<br />Se quero ir para o norte<br />Lanço a palha, lanço a sorte<br />O caminho eu mesmo faço<br />Jogo cartas, jogo laço.<br /><br />6<br />E no final ganho a vida<br />Em toda a sua acepção,<br />Ganho fama e a acolhida<br />Dessa gente do sertão.<br />7<br />Por isso, pra começar<br />Vou afiando a viola<br />Dentro da minha cachola<br />Para um causo desfiar.<br />8<br />Me dê um mote, envista,<br />Qualquer um: ciúme ou contenda<br />Não sou nenhum repentista <br />Mas escrevo de encomenda.<br /><br />9<br />Ciúme? tá bem, eis o mote,<br />Embora pareça banal<br />Pois se queres logo um lote<br />Basta folhear jornal.<br /><br />10<br />Mas se queres mesmo um caso,<br />Vou contar uma tragédia<br />Pois ciúme é muito raso<br />Se não entrar na Enciclopédia.<br /><br />11<br />Havia na minha aldeia<br />Uma única beldade,<br />Moça prendada rendeira,<br />Leal como a lealdade.<br /><br /><br />12<br />Jamais trairia alguém<br />Quanto mais o seu amor,<br />Mas foi do ciúme refém,<br />Causadora de rancor.<br /><br />13<br />Sem lamentar o seu fado,<br />Sem levantar os olhinhos,<br />Quanto mais olhar pro lado<br />Com tantos urubuzinhos.<br /><br />14<br />Ciúme, que coisa fútil,<br />Se não fosse “catastrófe”<br />Para falar desse inútil<br />Necessito nova estrofe.<br /><br />15<br />Desculpem a rima falsa,<br />Falsa como o mesmo ciúme<br />Que só pensar dá friúme,<br />Mala vazia, sem alça.<br /><br />16<br />Pois a nossa heroína<br />(vou chamá-la de Malvina<br />Para facilitar a rima<br />Em mais dois versos de cima)<br /><br />17<br />Era pura e verdadeira<br />Não merecia o cutelo<br />Com que foi morta na esteira,<br />Por um que nem era Otelo.<br />18<br />Tudo começou com a renda<br />Que Malvina enredou<br />Por uma falsa encomenda<br />Que um malungo inventou.<br /><br />19<br />Era bem fácil fazer<br />A moça se dedicar<br />A um trabalho de tecer,<br />E por isto se apaixonar.<br />20<br />Cada trabalho de renda<br />Era por si um louvor<br />À beleza e ao amor,<br />Embora estivesse à venda.<br /><br />21<br />Mas aquele pervertido<br />Sendo esperto e atrevido,<br />Aproveitou-se do fato<br />E comprometeu tal ato.<br /><br />22<br />Todo dia vinha olhar<br />O andamento da trama,<br />Punha sugestão no ar,<br />E muito louvor, o sacana.<br /><br />23<br />Com isso comprometia<br />O trabalho da artezã<br />Com a sua companhia,<br />Com a sua teia vã.<br /><br />24<br />Eis, senhores, a maldade<br />Contida no sedutor:<br />Para enrolar uma beldade<br />Basta um fio condutor.<br /><br />25<br />E assim, qual Ariadne<br />Às avessas, desfiou<br />O fio da teia de Aracne<br />Pro labirinto que armou.<br /><br />26<br />O noivo da bela Malvina<br />Afinal desconfiou<br />Dessa teia muito fina<br />E de quem a encomendou.<br />27<br />Aquilo era uma obra-prima,<br />Só podia ser paixão;<br />Traição, ó triste rima<br />Para um causo do sertão!<br />28<br />Pois onde entra a maldita<br />Sai o amor, entra a desdita<br />E logo assoma a morte<br />Co’ algum instrumento de corte<br /><br />29<br />Como cutelo ou sovela<br />Como foi no caso dela,<br />Que o noivo era sapateiro,<br />Nas horas vagas, coveiro.<br /><br />30<br />Malvina naquela noite<br />Cujas horas como açoite<br />Demoravam a passar<br />Esperando o seu penar,<br /><br />31<br />Sabendo que o confronto<br />Viria na hora do sono<br />Pois o ciúme, seu patrono,<br />Tinha atingido o ponto<br /><br />32<br />Mais alto, naquela mente<br />Do sapateiro demente<br />Que naquela mesma hora<br />Resolvera: “É agora!”<br /><br /><br />33<br />Malvina fez uma prece<br />E cantou uma canção<br />D’um salgueiro que, parece,<br />Não existe no sertão.<br /><br />34<br />E depois deitou na esteira<br />Com a mão no coração:<br />Ele assomou na soleira<br />Com a sovela na mão<br /><br />35<br />E perguntou: “Já fizeste<br />A oração que lhe cabe?<br />Pois agora tu me deste<br />A permissão que te acabe.”<br />36<br />E degolou a ovelhinha<br />Que só um suspiro deu,<br />Morrendo a pobrezinha<br />Por perfecionismo seu. <br /><br />37<br />Pois seu único pecado<br />Foi o amor e a candura<br />Que aquela alma pura<br />Pôs num trabalho arretado:<br /><br />38<br />Uma renda, uma teia,<br />Exposta numa parede<br />Do museu da nossa aldeia<br />Que tem renda... e tanta rede.<br /><br />FIM<br /><br /><br />Comovi-me com o triste destino da jovem rendeira, e deixei-me levar por Luzia até uma casa ali perto, onde estava instalado o Museu da Rendeira, e diante da tal renda que motivara aquela tragédia, deixei rolar uma lágrima. Luzia contara a estória com tanta sensibilidade e riqueza de detalhes que foi fácil para o meu amigo cordelista, transformá-la no poema citado. Eu quis voltar à praça das rendeiras, para conversar com uma delas, que segundo Luzia, fora amiga da heroína d<br />o cordel. Ela se chamava Severina, e embora não fosse bonita, era doce, e ao falar da amiga assassinada à galega forasteira que acabara de conhecer, acabou chorando abraçada a mim. Consolei-a como pude e comprei-lhe uma renda, que era uma maneira de me aproximar da protagonista daquela estória, ou ter um uma obra de um espírito que lhe fora próximo em vida. Uma espécie de relíquia. Além de ser uma obra de arte, claro. Depois disso, eu quis logo voltar para o hotel, para digerir as emoções da manhã e meditar no meu leito, sobre o significado de tudo aquilo, e também as possíveis razões desses encontros predestinados, na minha trilha sertaneja. Por quê Luzia quisera revelar-me aquela estória? Não há gratuidade na vida, estou desde sempre convencida disso, e sempre acreditei na teoria da “sincronicidade” junguiana. Quereria Luzia <br />prevenir-me de uma tragédia, que ela, com seu sangue índio, pressentira? Eu poderia ser morta pelo meu Josué, um dia, por ciúmes? Sou tremendamente impressionável, e tive que fazer um esforço para distrair meu pensamento, diante das rendas, daí por diante. Nunca mais poderia usá-las. Mas antes de mudar de registro, eu quis finalizar visitando a tal renda ou teia coletiva que contava uma estória. Diante da enorme renda branca, que guardava justamente a estória da infeliz rendeira, de forma mítica, eu fiquei assombrada. Mas não poderei descrevê-la, pois era abstrata à primeira vista, como deve ser uma renda. Como ela podia ser descritiva ou narrativa era um mistério para mim, como permanecerá para vocês também, meus leitores. <br />De volta à pensão encontrei o pequeno refeitório já cheio dos hóspedes sentados à mesa esperando o almoço, que Luzia teve de correr para agilizar lá na cozinha, com a sua cozinheira que o estava preparando. Era domingo, e haveria buchada de bode que era uma comida dantesca para uma sulista como eu, tanto pelo aspecto, como por seu conteúdo e condimentação. Eu fiquei um tempo ali conversando com alguns velhos hóspedes que me fizeram muitas homenagens, como se eu fosse uma estrela conhecida, de novelas ou coisa parecida. Josué cometeu a indiscrição de revelar a minha condição de poeta, e começaram a me cobrar em coro, que recitasse um poema meu. Um tanto constrangida, eu declamei isto, pinçado na memória, do meu ciclo de “Sonetos da Luxúria”, que eu pude selecionar, belo, mas inofensivo no sentido erótico, para não ofender a pudicícia de ninguém, principalmente dos mais velhos:<br /><br />Amor é um turbilhão, um mar de chamas<br />Que queima como incêndio na floresta;<br />É ferida aberta sobre as camas <br />E dói tanto que pouco ou nada resta,<br /><br />Só a ânsia de mais e mais amar<br />E ser tomada, virada do avesso<br />E redondamente se enganar<br />Quanto ao seu fim ou seu começo:<br /><br />É ficar cega de tanto admirar<br />É querer o outro devorar<br />Para senti-lo dentro devorando<br /><br />O nosso coração então repleto,<br />Afinal o Hermafrodita aflorando,<br />O ser primordial, uno, completo!<br /><br /><br />Fui bastante aplaudida, e elogiada, por todos os presentes, e Josué abraçou-me carinhosamente. Um senhor que todos chamavam coronel Barbosa, e que na verdade era um velho professor aposentado, percebeu no meu soneto, uma certa paráfrase, distante embora, do célebre soneto LXXXIV de Camões, “Amor é chama que arde sem se ver...” Derramou-se, em seguida, em elogios que me colocavam como musa, comparando-me à Safo, a divina poetisa de Mitilene, na ilha de Lesbos, que alcançou o mundo. Senti-me imensamente honrada. O velho Barbosa estava empolgado e prometeu, por sua vez dedicar-me um soneto que faria em breve, em minha homenagem. Aproveitei para dizer que precisava retirar-me para o meu quarto, pois estava imensamente emocionada, e sem condições de partilhar da buchada com os amáveis presentes. Todos lamentaram, como se eu já estivesse com o desarranjo intestinal que eu, na verdade estava conscientemente evitando.<br />Entrei no quarto acompanhada de Josué, dando uma gargalhada, mas assim que a porta se fechou, meu riso se transformou num longo gemido, seguido de um pranto desatado, dolorido, vindo do fundo, e eu não sabia por quê. Aquelas experiências, junto de meu Josué, estavam mexendo muito comigo, e me tornando cada vez mais sensível, como se estivesse em carne viva, ou como se minha alma estivesse nua, o que para alguns de vocês, meus leitores, pode parecer uma redundância.<br />Josué aproveitou para acariciar-me muito, o que o deixou excitado, e logo estava ele em cima de mim, penetrando-me como um bode do sertão enquanto, eu, embora sentindo prazer, mais chorava e... chorava. Nós mulheres somos muito complicadas para sermos compreendidas pelos homens. Talvez os poetas, e os romancistas nos compreendam, como alguns pintores ao nosso corpo. Josué era um artesão, um cientista, e até mesmo um delirante, às vezes. Mas seria ele um artista, como concebo a palavra? Não importava, na verdade: ele era o homem que me possuía com paixão, como um fauno ou sátiro à sua ninfa, e isso estava justificado na esfera espiritual do corpo. E o corpo, continha um segredo de nosso encontro numa distante vida neste mesmo sertão, que eu viera aqui desvendar. Mas eu formaria com ele, algum dia, o Hermafrodita Primordial? <br />Quero fechar, no entanto, este capítulo da minha narrativa, com um soneto de minha autoria que se aproximava do timbre das emoções eróticas que eu experimentava naquele momento:<br /><br />Como posso prosseguir acreditando,<br />Manter aceso o olhar, a meta e o desejo,<br />Se o coração carente traz o ensejo<br />De perder-se no outro, assim, amando?<br /><br />Refiro-me à pulsão que cria, à Arte, <br />Da qual não posso certamente prescindir.<br />Mulher-artista, como prosseguir,<br />Se o doido coração quer liquidar-te?<br /><br />Ser só mulher, entregue, possuída,<br />Fêmea total, às raias da odalisca,<br />Da puta gloriosa e assumida,<br /><br />Assim quer o branco corpo, o alvo seio,<br />Os lábios cheios de paixão arisca,<br />As amplas curvas com a fenda ao meio! <br /><br /><br />_____________________________________<br /><br /><br /><br />Capítulo quinto<br /><br />Encontro com Ludugero<br /><br /><br />Eu estava começando a ficar aflita para sair de Salgueiro, como se pressentisse inconscientemente algo ameaçador se aproximando de nós, naquela cidade, apesar do bom acolhimento naquela pensão da amiga de Josué. A propósito, eu o inquiri um dia, no quarto, sobre as suas relações passadas com Luzia, mais por pura curiosidade, pois eu simpatizara com ela, que era bem mais velha que ele, beirando os quarenta anos. Josué, então confessou que tivera um caso tempestuoso com Luzia, anos atrás, quando morara por um ano naquela cidade, e naquela mesma pensão. Luzia já era muito experiente e lhe ensinara muito sobre as mulheres. Mas, ao que parece, ela era ciumenta e manipuladora, e Josué não era homem de se deixar dominar. Nestes dias, agora já tanto tempo depois, Luzia já superara tudo e nos via com carinho, como seus amigos, até como seus irmãos. Essa mulher forte continuava intensa, e eu percebi que agora ela estava se apaixonando por mim, essa é que era a verdade. Era o momento de partirmos antes que as coisas ficassem complicadas. Entretanto, o leitor já me conhece e sabe que não sou de evitar nada, para não deixar espaços vazios na tela de minha rica vida. O que me produzia ansiedade, portanto, não era isso, mas o pressentimento da aproximação de uma ameaça mais perigosa, maligna mesmo. Decidimos partir, e como Josué tinha providências misteriosas a tomar, em relação à manutenção da nave lá na caatinga, eu fiquei só, à noite no meu quarto, até tarde. Então recebi Luzia, como se num acordo tácito, abrindo a porta para ela, antes mesmo que ela batesse com os nós dos dedos. Ela entrou, cerrou a porta com as suas costas, e olhando-me fixa e ardentemente, agarrou meu rosto e beijou-me a boca ardentemente. Em seguida despiu-me com energia, como um homem, jogou-me na cama, completamente nua, e abrindo-me as pernas mergulhou, num beijo sedento em minha vulva, enquanto suas mãos ordenhavam meus mamilos rosados e tesos, com uma sabedoria que só as mulheres têm. <br />Desmanchei-me de uma maneira, que nem Josué conseguia de mim. Eu era mesmo uma encarnação de Safo, como o coronel detectara, eu sentia assim, naqueles momentos mágicos, onde o hermafrodita era, na verdade, não o doce Narciso, mas a ninfa Eco refletida nas suas águas. <br /><br />_________________________________ <br /><br /><br />Estava na hora de partir, as coisas tendiam a se complicar, e tudo levava a crer que eu estava prestes a iniciar um ménage-a-trois nordestino, do qual eu perderia o controle e com conseqüências provavelmente primitivas, não me entendam mal... quero dizer, eu estava em contacto com outra cultura, e corria, eu sim, o risco de ser mal-entendida. Já era notável que Luzia tivesse se apaixonado assim sem maiores conflitos pela atual namorada ou mulher do seu ex-amante. E sua ardência crescia a olhos vistos a cada noite em que ela me encontrava a sós em meu quarto, com as ausências misteriosas de Josué. Quanto a mim, tendia a abandonar-me ao prazer e a dissipação, e já começava a pensar no meu rabo-de-tatu, que permanecia quieto na minha mochila. Eu estava prestes a “desenterrá-lo”, quando Josué chegou uma noite, inadvertidamente e nos pegou na cama, nuas. Mas pasmem, leitores, ele não ligou a mínima, e interrompeu-nos como se estivéssemos tomando chá. Estava esbaforido, isso sim, mas de pressa e preocupação com “outro” problema. Por um momento, lembrei-me da frase de um autor francês, que dizia que “homens e mulheres são animais tão diferentes, que se não fosse o desejo sexual, passariam um pelo outro como o elefante pela girafa”. Aqui, no nosso caso, as cabras pelo jegue.<br />—Alma, vista-se, apronte-se que temos que partir imediatamente. Luzia, calcule as diárias e as despesas extras, vou acertar tudo imediatamente. Mas apressem-se, não temos tempo. Ludugero está aqui!<br />Ouvindo novamente aquele nome, assim, assustei-me, e pulei da cama e comecei a me vestir apressadamente, sem discutir. <br />Mal tivemos tempo de despedirmo-nos de Luzia, que abraçando-me tinha lágrimas nos olhos. Nossas mãos foram separadas, quase à força por Josué que puxava-me pela mão, com a sua misteriosa maleta na outra, e olhando muito para os lados. A coisa era premente a julgar por sua atitude. Logo estávamos correndo no arrabalde da cidade, e então na caatinga, em direção à nave cuja camuflagem percebi mexida, mas logo deduzi que o próprio Josué estivera ali diversas noites fazendo sua misteriosa manutenção. Removendo os galhos espinhosos, e erguendo seu mastro escamoteável, daí a pouco começávamos arrastá-la para a “pista”, isto é, o solo plano rachado. Mas logo Josué pôs o motor na vertical, quer dizer, a hélice na horizontal e decolamos com um intenso zumbido como um marimbondo gigante. Foi a conta de estarmos há dez metros do solo e as balas começarem a zunir. Os ludugeros, isto é os jagunços de Ludugero, corriam cercando-nos e atirando para cima. Foi então que pude ver, iluminado pela tocha que tinha na mão, o inimigo de Josué, que cobiçava-me e à nave: Cipriano Ludugero, o filho do velho Ludugero, inimigo dos Cunhas e portanto do fiel Malaquias, pai de Josué e Anunciada, que perdera um olho em antigas batalhas com os antecessores daqueles ali. Eu já fora disputada pela geração anterior, isto ficou claro para mim, que num flash de reminicência, me recordei, naquele momento. Meu Deus! Eu precisava ter a conversa que eu cobrava já há tempos de Josué. Ele tinha que me contar tudo. Afinal era eu o pivô desta batalha, juntamente com o Pavão, não era? Então eu era amada também por outro homem, de quem nem me recordava? Como era esse Cipriano? Não pude distinguir bem seus traços à luz bruxuleante da tocha, mas pude perceber a alta estatura e imponência do moço, de terno, botas, e chapéu de abas largas na cabeça. Um típico fazendeirão deste país, no seu estereótipo mais consagrado. Seria ele bonito? Sim, que fosse, pelo menos... desejei, já que pressentia que ia lhe cair nas mãos, um dia. Que estou dizendo? Cala-te Alma, olha que os leitores estão ouvindo, e podem pensar mal de ti. Se é que já não estão pensando. <br />Afastamo-nos de Salgueiro, cidade cuja experiência eu precisava digerir, embora não fosse como a buchada de bode, mas um doce sapoti, ao lembrar-me de minhas noites com Luzia, a quarentona experiente que também me fizera voar, no leito, num sonho de mulheres, que os homens não podem compartilhar, embora sempre o desejem.<br />Lá íamos nós, mais fundo ainda nesse Sertão de meu país, à bordo de nossa maravilhosa nave, o Pavão Misterioso, que flutuava quase tão silencioso quanto um tapete voador, rumo às mil e uma noites sertanejas que nos esperavam, mas que podiam ser resumidas numa única noite de um sonho da Alma. <br /><br />_____________________________________ <br /><br /><br />De pé, na proa, Josué consultava mapas e decidiu rumar em frente, até a cidadezinha de Maravilha, quase no sertão do Piauí. Também achei o nome auspicioso, embora não soubesse o que nos esperava aí, nem o que Josué pretendia. Perguntei-lhe se não ia aproveitar para ionizar as nuvens no caminho, para ir fazendo chover sobre aquele sertão carente, mas Josué disse que isso faria como que um rastro de chuvas que denunciaria nossa trajetória ao inimigo, que nos seguiria simplesmente pelo serviço metereológico, o que me pareceu fazer sentido, infelizmente. Mas eu, na verdade, não gostava de fugir nesta vida. Sempre me pareceu que fugir é tentar ludibriar o destino, e nunca dá certo, pois este, é um cão rafeiro de faro fino, e sempre descobre nossa trilha. Ah! Alma, será que sonhavas trair-te a ti mesma para entregares-te ao inimigo irresistível? Ah! Mulheres, quão insondáveis são os seus desígnios. Não como os de Deus que só quer o nosso bem, e portanto previsível, afinal, na morte acolhedora, que nos faz retornar ao lar. Bem... mas que estou dizendo? Aquieta-te coração, e voa, com teu amor que está já ao teu lado! <br />Depois de muitas horas em que dormi nos braços de Josué, levados pelo piloto “automítico” da nave, avistamos ao amanhecer, ao longe, a cidadezinha de Maravilha, que nos pareceu de acordo com seu nome. Desta vez descemos na praça da cidade, num pequeno terreiro, campinho de futebol dos guris, ao lado do coreto que foi ocupado às presss por uma bandinha pra nos recepcionar, com o prefeito da cidade, à frente, com um imenso revolver na cintura, e regendo a banda ao mesmo tempo. Depois soubemos que o prefeito era o factotum daquela aldeia, e exercia as funções de barbeiro, médico, regente da banda, rezador, delegado, agente funerário e tabelião. O homem era um gênio natural, um renascentista atrasado, e só não pintava, embora cometesse os seus quadrinhos. Virgiliano (era o seu nome) estava em êxtase, enquanto o povo já estava ajoelhado reverenciando o pavão. Assim que pus os pés no solo, a crianças, como em quase toda parte, correram para mim, cercando-me e tocando-me comovedoramente. E me escoltaram, até a escolinha, enquanto o prefeito, protestava, empurrando algumas delas, apresentando-se, segurando minha mão, e beijando-a, com o chapéu na outra mão, e querendo me puxar para a prefeitura, que era uma casa pouco maior que as outras, dizendo que eu era uma visita ilustre, e que precisava ficar hospedada lá. Conseguiu afastar as crianças, quando ameaçou sacar o revolver, o que me pareceu um absurdo. Mas afinal segui-o, planejando a visita à escolinha para logo em seguida. Fui arrastada pelo prefeito, olhando o Josué que era também escoltado por uns vereadores, e por um jovem negro que era uma espécie de único jornalista da cidade e escrevia no “Lunário Perpétuo”, maravilha editada numa tipografia de cordel, de que faltava o tipo da letra a, facilmente dedutível, por quem soubesse ler.<br />Afinal instalada, pedi um banho, que foi “organizado” pelo prefeito, com verbas públicas, numa imensa gamela, e a cargo das mucamas domésticas do prefeito, elevadas a funcionárias públicas encarregadas do banho da princesa, como elas logo disseram. Encheram a gamela de água quente de chaleira, esquentada num forno de lenha maravilhoso por sua rudeza. E desnudando-me, maravilhadas pela minha brancura, que as fazia rir com a mão na boca, fizeram-me acocorar dentro da gamela e banharam-me, disputando o toque sobre minha pele, com um prazer tão grande da parte delas como da minha. Durante o banho teve um lance no mínimo curioso. No momento de lavar minhas partes, elas não me deixaram fazê-lo, e abriram a porta para a “mucama chefe” que, esta sim, parecia uma princesa negra, ou melhor, uma rainha, e que com mãos finas, pegou o pequeno sabonete e meticulosa e maternalmente lavou minha pombinha, e meu furinho de trás. Eu estava deslumbrada e enternecida, com os estranhos costumes da cidade. Demorei muito para descobrir que o prefeito via tudo, por meio de buraquinhos no forro de uma espécie de sótão. O safado estava me banhando... para ele?<br />Mas assim que banhada, enxugada, vestida e penteada, eu exigi ver o Josué, o que não consegui. Descobri horas depois que Josué estava sumido. Ninguém sabia dele. Eu viria a descobrir mais tarde ainda, que Josué estava preso, sob a guarda dos jagunços do perfeito, sob a acusação de contrabando de... princesa! Pensei que o prefeito estava louco ou era o homem de maior má fé que eu conhecera. Não tardei a descobrir que nem uma coisa nem outra. Era tão somente um homem enormemente controlador que tinha uma síndrome de Fígaro, tal como ele entendia a ária da ópera, o “largo al factotum” que era o único disco que ele tinha, e que tocava num gramofone que herdara de sua avó, e acreditava ser o verdadeiro toca-discos, pois, uma vez, aparecera um sujeito por lá com um CD-player que não o convencera. <br />Afinal Josué provou sua inocência depois de um interrogatório que beirou a tortura, por pura tradição. Pudemos nos ver e abraçar na frente do prefeito, que pediu desculpas, dizendo, que nunca se pode confiar nos pilotos de naves, pois o governo do Estado lhe alertara para o contrabando em pequenos aviões, o que na verdade ele nunca vira de perto. Mas ele estava encafifado com a presença de uma princesa ali, pois achava que uma delas somente tinha visitado a cidade de Princesa, na Paraíba e que por isso ganhara esse nome e reivindicava a sua separação da União até hoje. Era isso, pelo menos, o que o prefeito acreditava. Comecei a pedir a Josué que partíssemos logo, antes que eu também ficasse confusa. Mas não sem antes visitar a tipografia do “Lunário Perpétuo”, e conhecer o seu redator e jornalista, o negrinho Salviano Gandó, um verdadeiro poeta inconsciente deste fato. Ele também ilustrava o pequeno almanaque com xilogravuras preciosas feitas por ele mesmo, escavadas em tabuinhas de madeira de imburana com um canivete e goivas feitas de varetas de guarda-chuva, afiadas na pedra. As imagens eram tão primitivas que nos maravilhavam por sua síntese extrema e poderosamente sugestiva, como a do grande xilógrafo de cordel José Costa Leite.<br />Depois de um almoço servido pelo prefeito, fomos visitar a escolinha pública, onde as crianças já me esperavam sentadinhas no chão, pois não havia cadeiras e muito menos carteiras. Então pude exercer depois de muito tempo o meu dom de narradora ou contadora de estórias, contando para elas uma versão do Romance do Pavão Misterioso, reelaborada por mim, a partir da versão do meu amigo o cordelista paulistano Guilherme de Faria, que aproveitou da do João Melquíades Ferreira quase nada, a não ser o próprio Pavão como máquina de voar, que era algo que o próprio Melquíades tinha registrado de vivo testemunho, já naquela época, na década de trinta, e antepassado do nosso, que eu tinha visto em ruínas naquele grotão no meio da caatinga, conforme narrei no meu conto “Na Trilha dos Menestréis” que contava o começo desta minha saga, há cinco anos atrás, e já publicada no meu livro Contos da Alma. Ó xente, que parágrafo comprido! <br />As crianças estavam maravilhadas e algumas não queriam deixar-me partir, e agarravam-me chorando e puxando-me para trás, enquanto eu caminhava ladeada por Josué em direção à nave, já reabastecida com água nos seus tanques, digo, seus odres de couro de cabra. Mas, eu, enquanto caminhava, sentia que plantara a esperança no coração daquelas crianças, com a minha presença, e isto não é coisa de se desprezar, tanto mais que eu prometia voltar um dia, coisa que eu mesma secretamente não acreditava.<br />Assim, decolamos mais uma vez sob as palmas e as lágrimas daquele povo, eu mesma intensamente comovida, sentindo-me, como nunca, parte desta terra, mas também desse imenso Brasil, como uma princesa de verdade, mas não de Portugal, não européia, apesar da minha pele e de minhas ascendências germânicas e açorianas, mas do Brasil mesmo, sertanejo e mestiço, do qual eu era, estranhamente, um sonho branco, tangível, que emergia do “inconsciente coletivo” de nossa gente sofrida. <br /><br />__________________________________<br /><br /><br />Voamos um tanto a esmo, Josué consultando seus mapas, que não eram cartas aéreas, mas um roteiro mágico desenhado por ele mesmo, de que me admirei, ao tê-los nas mãos, pela sua singularidade e beleza, cheios de signos, e difíceis de entender. Tratava-se das cartas do sonho de um visionário, para conduzir um princesa numa trilha de menestréis, para apresentá-la a si mesma... e ao povo, simultaneamente. Era uma dessas coisas que comoviam a gente, pelo menos a mim, que percebi o quanto era venerada por aquele homem, aquele sertanejo, que por si mesmo era também a alma do interior deste país. <br />Josué, afinal, em vez de ir em frente, que nos faria entrar em breve no sertão do Piauí, “onde tanto boi berra”, como dizia Guimarães, e onde eu pensava visitar Niéde Guidon, lá na Serra da Capivara ensinando o povo a mexer espátulas e pincelzinho para salvar desenhos dos nossos índios de 100.000 anos atrás, decidiu fazer uma volta quase completa, uma guinada para trás e um pouco para o norte, anunciando que iríamos para o sertão da Paraíba, para a cidade de Princesa Isabel, que ele dizia separatista, desde o tempo de José Pereira Lima. Ele achava que ali eu seria devidamente homenageada e compreendida. Mas, se eu não me sentia mais incompreendida, desde que saíra da casa de Giuseppe e Fiora, que não me levavam a sério, e estavam apenas devorando meu corpo! Por falar nisso, eu tinha saudade daqueles italianos, principalmente de Fiora, que me amava, sem nunca poder entender, o quanto, misteriosamente eu era parte desta terra, e talvez tão primitiva e mágica quanto este sertão, apesar da minha aparência européia. Não, Fiora e Giuseppe, eu não poderia viver na Itália com vocês como queriam. Era tarde demais, minha alma fora forjada pelas forças telúricas do Pampa e do Sertão, e consagrada aos brasileiros, na sua universalidade incompreensível para alguns. È por isso que os artistas brasileiros são tão apreciados lá fora. Pela sua universalidade, quanto mais puros ou primitivos, mais universais. Diante de meus olhos desfilavam os quadros de Portinari, de Di Cavalcanti, de Tarsila, de Vicente do Rego Monteiro, de Volpi. Desfilavam as figurinhas de barro de Vitalino, as grandiosas esculturas do italiano Vitorio Brecheretti, que assinava em francês, Victor Brecheret, para ser mais respeitado! A musica portentosa de Vila-Lobos garimpeiro sonoro, que mergulhava as mãos nos rios das florestas do Brasil, ao som do canto do Uirapuru, para colher pepitas de ouro e canções infantis. As maravilhosas marinhas sintéticas de Pancetti, e as montanhas visionárias, com mil igrejinhas e balões das Minas de Guignard. As fachas mastros e bandeirinhas gótico-caipiras do grande Volpi, colorista supremo assim como Arcangelo Ianelli. A prosa erudito-matuta do grande João Guimarães Rosa, que descobrira a poética do jagunço; a irreverência reverente do paulistano Mário de Andrade, grande compilador da pureza das criações do povo, descobridor da nossa preguiça criadora. A pura pintura caipira de José Antonio da Silva e a do português-goiano Poteiro. As pinturas e cerâmicas arcaicas ático-sertanejas do pernambucano Miguel dos Santos, e as fortes pinturas do goiano Siron Franco. E a literatura e o humor do imenso Ariano Suassuna, codificador do Armorial, e criador de João Grilo e Quaderna; a xilogravura mágico-heráldica de Gilvan Samico; a pintura onírico-nostálgica de Helenos, evocadora dos sonhos de Olinda e Recife; a acurada e forte vocação pictórica do paraibano João Câmara; as esotéricas e iniciáticas aquarelas e obras gráficas das primeiras damas da gravura brasileira, Renina Kats, Maria Bonomi, e Celina Lima Verde; as mágicas xilogravuras de Goeldi e Lívio Abramo; também o “novo cordel” de Guilherme de Faria, grande desenhista e litógrafo de cunho zen-europeu, redimido ao descobrir tardiamente o poeta sertanejo, e afinal o Brasil, em si mesmo! E para finalizar, este primeiro desfile, o menestrel medieval-matuto, violeiro e cantor erudito-“sertânico”, o sublime Elomar Figueira! <br />Eu fiquei muito tempo, um tempo indefinido, em transe diante este desfile que se passava ante os meus olhos de dentro, com o vento em meu rosto evaporando minhas lágrimas de comoção com este Brasil, cuja riqueza nenhum político podia dilapidar. E rumávamos para o sertão do coronel Pereira Lima, que fundara o território livre de Princesa, única cidade independente da União dos Estados brasileiros, que camuflava até hoje essa sua autonomia, nos corações secretos de seus habitantes, segundo Josué me informara. Ali eles me reverenciariam como a herdeira da princesa Isabel, a Redentora. Aquilo era demasiado para mim! Josué estava delirando novamente. Quem sou eu? Uma simples gaúcha, que não estava certa nem da minha legitimidade naquele Pampa, já que era descendente de alemães, e açorianos, e nascida sugestivamente numa estrada, pelas mãos de meu pai, que me arrancara do útero de minha mãe, como um fórceps poderoso de carne, e puxando a placenta sangrenta, a examinara, ali na beira da estrada, como um especialista, abandonando em seguida, ali, aquela posta de carne logo atacada por um guará, segundo me contou, quando ainda menina, para me impressionar com a crueza da vida, para equilibrar o meu sonho, com grande eficácia. Não Josué, se eu fosse uma guria de hoje, urbana, eu diria que me farias “pagar um mico”, mas no fundo, eu continuava a me deixar levar, pois minha curiosidade era maior. E o pavão ratificava a “espera” antiga do povo, e eu também sentia aquelas ressonâncias internas misteriosas, que eu precisava conferir. <br />E assim o Pavão voava silenciosamente sobre o sertão, apontado às vezes lá embaixo por uns viandantes, andarilhos, talvez famintos e sedentos, que punham as mãos em aba sobre os olhos para protegê-los do sol inclemente enquanto observavam a passagem do Pavão que lhes infundiria, talvez, nova esperança.<br />Como a viagem ia ser longa, eu pedi para o Josué colocar no automítico, e deitar-se ao meu lado no bojo da nave. Eu precisava ser acariciada, para a minha pele florescer e chegar bem bonita em Princesa. E foi o que Josué fez, possuindo-me em doze posições do Kama-Sutra, com sabor nordestino, culminando sempre com a dorzinha acalentada, no meu trazeiro, que me enternecia, e a ele também. Seu machismo natural, sertanejo, ficava apaziguado depois de tomar-me pr trás, com força e dolorosamente, despejando sua carga. “Semen retentum venenum est”, era o único mote latino que meu amado conhecia, sem saber latim. Depois, com minhas aberturas latejando ainda voluptuosamente, eu adormeci e sonhei:<br />Eu estava andando na Caatinga (curioso: eu voava no real, e andava sobre o solo em meu sonho!) e chorava. As lágrimas rolavam e embebiam a terra, deixando um rastro verde por onde eu passava. Então, no meio da caatin ga seca à minha frente, me vi diante de um tropeiro, que trazia odres de couro cheios de água, pendentes do lombo da mula onde estava montado. Eu não via o rosto do tropeiro, pois tinha a vista nublada pelas lágrimas. Ele, por sua vez derramava suas próprias lágrimas que embebiam a terra sem fazê-la florir encontrando as minhas. Aí, acordei, e quis crer que o tropeiro sem rosto só podia ser o Josué, mas lembrei-me do axioma junguiano: “o sonhado só se refere ao sonhador”, e percebi que o tropeiro era também um alter-ego, isto é, o sertanejo que eu tinha na minha alma e cujo destino estava ligado à secura daquela terra. Mas um ano depois, quando narrei este sonho ao cordelista Guilherme de Faria ele, inspiradamente escreveu isto: <br /><br /><br />Romance do Tropeiro<br /><br />( Cordel de Guilherme de Faria )<br /><br /><br />1<br />Esta é a estória de um tropeiro<br />Chamado Salustiano<br />Que moço, mas não lampeiro<br />Morreu não faz nem um ano.<br /><br />2<br />De toda a sua curta vida<br />Só sobrou um episódio,<br />Que na andança de sua lida<br />Nunca conheceu o ódio,<br /><br />3<br />Percorrendo esta chapada<br />Que ainda não tinha estrada.<br />E contou-me com candura <br />Sua estúrdia aventura: <br /><br />4<br />Levava uma tropa de mula<br />Para vender em Cercado<br />Por inteiro ou no picado<br />Pr’um tal de Seu Abdula <br /><br />5<br />Mas eis que encontrou, então<br />No meio dessa caatinga<br />Um tipo de um barbudão <br />Cercado de urubutinga.<br /><br />6<br />Vestia um camisolão<br />E andava c’um cajado<br />Tangendo neste sertão<br />Todo um invisível gado<br /><br />7<br />Os óio meio encovado<br />Pediu um pouco de água<br />A boca como uma cova,<br />A goela como uma frágua. <br /><br />8 <br />Sendo moço destemido<br />O nosso Salustiano<br />Não fez de desentendido<br />E nem lhe apontou um cano.<br /><br />9<br />Viu que era um louco de Deus, <br />Coisa comum no Sertão, <br />Entanto que sua visão <br />Estava mais p’rum adeus. <br />10<br />Estendeu-lhe a caneca<br />E pegando o seu odre<br />Encheu a dose do pobre<br />Como o tributo da seca.<br /><br />11<br />Mas eis que o peregrino<br />Revelou seu desatino<br />Derramando sua porção<br />Todinha naquele chão.<br /><br />12<br />A terra dura engoliu<br />Sem deixar nenhum vestígio<br />Que o sol batia de rijo<br />E o pó fez que nem viu.<br /><br />13<br />O tropeiro deu um pulo<br />Gritando Afe! Ó xente<br />E picando o seu mulo<br />Só tratou de andar pra frente.<br /><br />14<br />Encontrou bem lá pr’adiante<br />Um menino, e então parou,<br />Que pediu água e imitou <br />O gesto do viandante.<br /><br />15<br />Só deixando indignado,<br />Pra que um tropeiro afugente<br />Jurando ter terminado<br />Seu trato co’aquela gente.<br /><br />16<br />O tropeiro se afastou<br />Daquele pobre estrupício<br />E para trás nem olhou<br />Pra não lembrar do esperdício.<br /><br />17<br />Eis que bem mais pra frente<br />Lá onde o sol bate rijo<br />Que nunca lá se viu gente<br />Que desperdiçasse mijo<br /><br />18<br />Avistou ao longe um vulto<br />Diferente, de verdade.<br />Pondo a mão como uma aba<br />Definiu uma beldade<br /><br />19<br />Tão espantosa e fatal<br />Que beleza no Sertão <br />Só no Juízo Final<br />Que trará Dom Sebastião.<br /><br />20<br />Mas a bela sertaneja<br />Quando se aproximou<br />Deslizou sua forma andeja<br />Que ele mal enxergou<br />21<br />Que só o que o moço via<br />Era a água da paixão<br />Que dos olhos lhe escorria,<br />Que essa umedecia o chão!<br /><br />22<br />Mas a bela então passou<br />Sem nem deixar a certeza<br />De que mesmo a avistou<br />Nesse mar sem correnteza<br /><br />23<br />Dessa Caatinga e da lida<br />Que não permite a beleza<br />Senão uma vez na vida<br />Nesta Sina sertaneja. <br /><br />FIM <br />Notem que o cordelista colocou-se na perspectiva de um tropeiro real, portanto modificando um pouco, talvez o sentido oculto da minha visão interna, mas assegurando a beleza lírica e o mistério do sonho original que lhe transmiti e que o inspirou. Aliás, adoro esse cordelista, que é também o artista que me descobriu no meu auto-exílio paulistano, e que ilustra com seu traço de pincel Zen, os meus poemas em edições de cordel, ao contrário de seus próprios cordéis matutos, em que ele muda de estilo e torna-se um xilógrafo primitivo ao ilustrar a capinhas. Trata-se de um inusitado fenômeno, que poderia ser tributado a um heterônimo que ele perdeu a oportunidade de criar, assinando o seu próprio nome, o que, a meu ver, vai causar confusão ou dúvidas no futuro. <br />Mas prosseguindo no meu vôo no Pavão, com Josué, e com minha sensualidade à flor da pele, avistei ao longe a cidade que Josué anunciou como Princesa Isabel. Tratei de vestir-me, pois estava voando pelada a horas para ser “comida” o tempo todo pelo meu amor, que era uma forma de voar que me parecia inspirada no tapete voador das mil e uma noites, não sei bem por quê. <br />Com meu vestido branco, de rendas aplicadas, da Serra Talhada, eu estava pronta para o que desse e viesse, ao descer no meio de um campo de futebol de várzea, onde estava havendo uma festa com apresentação de pelejas de repente. Mas a multidão começou a gritar erguendo os braços ao ar, e muitos se ajoelhando. Ia ser um reboliço. Quase pedi para o Josué subir novamente e fugirmos dali. Quando as rodas da nave cujas calotas eram os pés do pavão, tocaram o solo, fomos literalmente arrancados de dentro, e carregados acima das cabeças num delírio de massa que me apavorou. Tive medo de ser dilacerada canibalisticamente, essa é que é a verdade. A “princesa” demorara demais para voltar, se é que ela aqui estivera um dia, como o povo acreditava. Mais de cem anos! Era tempo demais para esperar o retorno de uma redentora. Que eles não esperassem milagres da minha parte, porque senão eu os decepcionaria e acabaria na “zona”, irresistível e perturbadora atração do meu espírito desde criança.Porque eu sempre pensava nisso se nunca fora capaz de me vender, na acepção da palavra? Eis aí um outro mistério. Mas eu só sabia que, sendo tão bela, e artista, eu tinha a secreta fantasia de repartir essa beleza e as delícias dela, por todo um povo, como eu sonhava fazer com as minhas artes. Sei que pareço doida, e lembro-me que minha mãe uma vez chamou-me de “pequena Messalina”, querendo ofender-me, mais do que censurar-me. <br />Agora eu estava ali começando a ter minhas rendas arrancadas, como lembranças ou “relíquias” mesmo, esta era a verdade, e já começavam a arrancar pedaços do pano do vestido, e não tardaria a ficar pelada nas mãos daquele povo. Aliás, temi um estupro coletivo quando me viram totalmente nua e tremendo de medo, com a mão cobrindo pela primeira vez as minhas partes, e outra, os meus seios. Mas... surpreendentemente, a multidão se afastou um pouco, fazendo uma roda comovida, em torno de mim, olhando minha nudez, espantosa para eles, pela minha alvura, eu percebi. Então, uma mulher, adiantou-se com uma toalha de renda, talvez de um pic-nic na relva, pois lambuzada de mel e geléia aqui e ali, e envolveu-me antes que eu desmaiasse para fugir, em meu espírito, daquela situação. Nem as minhas sandálias eu tinha nos pés, que estas também tinham sumido, e assim abraçada por essa boa mulher, fui sendo levada por ela, para uma carroça onde me fez subir e carregou-me conduzindo com as rédeas na mão, e instigando o cavalo magro a despertar de sua apatia, com um ruído de seus lábios, como beijos no ar. A roda da multidão se abriu em silêncio reverente, finalmente e deixou-nos partir.<br />Dei-me conta, muitos minutos depois, de que Josué sumira. <br /><br /><br />________________________________________ <br /><br /><br />Capítulo quinto<br /><br />A cigana Rafisa<br /><br /><br /><br />A carroça andou muito tempo seguida pelas crianças, que afinal foram ficando para trás, e eu, enrolada naquela toalha ao lado daquela mulher, mantinha os olhos baixos, estranhamente envergonhada com aquilo que eu pensava ter sido um fiasco, quando ouvi, pela primeira vez a voz daquela que eu iria conhecer como Rafisa. Dei-me conta aos poucos, na pequena viagem através de uma estradinha que atravessava um bosque, que eu estava numa carroça peculiar, muito decorada, na verdade um carroção de ciganos! Olhei para a minha salvadora e vi uma mulher morena e linda, com grandes olhos mouriscos e uma cabeleira indomável, de cigana, que lhe dava o aspecto da... Medusa! Eu estava diante da cigana Rafisa, ela se apresentou, estendendo-me sua mão morena e logo pegando minha mão muito branca na sua, virou-me a palma para olhar rapidamente, talvez por vício profissional. Não! Não tardei a perceber que ela viu tudo, num átimo, na palma da minha mão e iria me revelar aos poucos, na nossa convivência com a ajuda também de sua misteriosa bola de cristal que brilhava até no escuro, como um diamante redondo e gigantesco. Mas ali, na boléia de sua carroça, ao se apresentar, como boa anagramista* que sou percebi que seu nome derivava da palavra Safira, que aliás, era sua pedra de toque, e da qual ela carregava no peito um maravilhoso exemplar de bom tamanho, pendurado num modesto cordão de fibras trançadas, talvez para minimizar a atenção sobre seu enorme valor.<br />Minha hospedeira, eu já podia tratá-la assim, pois ela habitava aquele carroção mesmo, e se tornaria também uma amiga inesquecível, disse, assim que paramos: <br />—Alma, você está melada de geléia e mijada, eu reparei. Além disso está escorrendo outros sumos, nota-se. Por isso está tão envergonhada! Mas não precisava, o seu sucesso foi total, maior do que você pensa. Logo terei que esconder você. Por ora, vou banhá-la. Fique embaixo da carroça que despejarei um pote de água pura de fonte, em cima de você. Vamos lá.<br />Agradeci mais envergonhada ainda, pois nada escapava ao olhar arguto daquela mulher. E eu tomei então um dos mais gratos banhos da minha vida, com um pequeno sabonete estranho, com cheiro de ervas que ela mesmo fazia, e que deixou-me refrescada e purificada, pois cá entre nós, centenas de mãos tinham passado pelo meu corpo em segundos. Depois ela me pôs para dormir com um desvelo maternal, dentro do carroção, sobre tapetes macios, entoando um acalanto exótico, um tanto oriental, em língua desconhecida, que me fez adormecer num sono repousante, sem sonhos. Eu iria descansar como nunca, depois de tanto tempo, de tantas emoções. Dias depois eu iria saber por ela, que aquele era um sono de morte, que era um segredo do seu povo, que sabia manipulá-lo, para desfragmentar a vida de suas impurezas. Uma espécie de catábase* sem memória, mas da qual ela podia num momento, quando eu me dispusesse a isso, fazer aparecer na tela da mente, sob seu mesmerismo* cigano, as imagens aparentemente perdidas dessa descida.<br />Eu iria me tornar a discípula dileta da grande Rafisa, em exatos dezesseis dias, em que estive com ela em seu carroção, em suas mãos, e... nos seus braços. <br /><br />______________________________________________<br /><br /><br />Naqueles dias maravilhosos nos arredores de Princesa, eu era a hóspede da cigana Rafisa, que era a mais célebre daquele sertão, e recebia visitantes que vinham de longe para consultá-la, para saber do presente e do futuro, ou simplesmente pedir o seu conselho. Eram coronéis, músicos, pequenos e grandes comerciantes, professoras primárias, e na verdade todo o tipo de pessoas em crise, ou com problemas de carência, simplesmente. Mas todos a procuravam pela sua sabedoria. As suas artes mágicas ela restringia para os grandes clientes ou para as suas simpatias anímicas. Rafisa os recebia quase como uma benevolente terapeuta, mas na verdade seu interesse era basicamente pelas questões do coração. Era uma maravilhosa alcoviteira, na verdade. Mas naqueles dias eu presenciei um encontro e consulta, escondida atrás de um biombo, com sua autorização, e que me impressionou tanto, que registrei no meu diário, mostrando-o depois para o meu cordelista predileto, o Guilherme, que compôs esta obra-prima, que se tornou o carro chefe de seus recitais, a ponto dele o declamar com maravilhosa interpretação dramática, de memória: <br /><br /><br />Romance da Vidência<br /><br />Cordel de autoria de Guilherme de Faria<br />1<br />Preparem a sua emoção<br />Para um caso do Destino<br />Vou usar todo o meu tino<br />Pra cantar sem violão<br /><br />2<br />Só preciso achar o tom,<br />Que a música deste poema<br />Cria seu próprio sistema <br />De silêncios e de som.<br /><br />3<br />Havia nesta divisa<br />Uma cigana arretada<br />O seu nome era Rafisa<br />Parecia alumiada.<br /><br />4<br />Tinha o dom da profecia<br />Mas, cassandra malfadada<br />Era sempre acreditada<br />Só depois que acontecia.<br /><br />5<br />Aí houve o incidente,<br />Que chegou no seu terreiro<br />Um capiau renitente <br />Que era um pobre ferreiro.<br /><br />6<br />Vinha montado sem sela <br />E embora fosse cascudo<br />Era bonito e parrudo<br />Sem papos nem xurumela.<br /><br /><br /><br />7<br />Rafisa (quase esquecia )<br />Era um pouco desgrenhada<br />Também tinha a latumia <br />De uma Medusa da estrada.<br /><br />8<br />Quer dizer: era bonita <br />E até muito faceira<br />Descontada a cabeleira<br />E a saia sarapintada<br /><br />9<br />O matuto desmontou<br />E tirou o chapéu de couro<br />Parou um pouco e olhou<br />Com aqueles olhos de mouro.<br /><br />10<br />“Siá Rafisa, venho vindo<br />De muito longe, seguindo <br />A fama de vosmecê,<br />Queira pois me recebê.<br /><br />11<br />Venho da Pedra Preta<br />Um raso onde num chove<br />Desde a noite do cumeta <br />Que ainda o povo comove.<br /><br /><br /><br />12<br />Mas num vim pedir trovão<br />Que num é de sua alçada<br />É lance de coração<br />Ou de vida amargurada<br /><br />13<br />Me deixa entrá que lhe esprico<br />Siá Rafisa, ocê me escuta,<br />E se falo, não discuta<br />Que se calo, me comprico.”<br /><br />14<br />Rafisa olhou o matuto <br />De cima a baixo e botou<br />A mão no colo e virou<br />Com aquele ar arguto <br /><br />15<br />E na mesa da cozinha<br />Sem a bola de cristal <br />Sentou depois da voltinha<br />Com seu jeito sensual.<br /><br />16<br />“ Como digo a vosmecê<br />Ando muito agoniado<br />Duma paixão sem mercê<br />Por um sonho inalcançado<br /><br />17<br />Ela se chama Lazinha<br />E nem sabe que eu existo,<br />Filha do coroné Xisto<br />Tar quar uma princesinha.<br /><br />18<br />Quando passa amuntada<br />Joga moeda no ar<br />Pra meninada catar<br />No meio da gritaiada.<br />19<br />Um dia chegou na frágua<br />Pedindo um pouco de água<br />Bebeu sem me oiá, pensei,<br />Ou fui eu que não oiei.<br /><br />20<br />A não ser, pro seu pezinho,<br />Carçado cuma alpercata<br />Fina, de ouro e prata<br />Mostrando aqueles dedinho<br /><br />21<br />Que prestei muito sentido,<br />Para minha perdição<br />O segundo mais comprido<br />Que o primeiro, como a mão.<br /><br />22<br />Depois disso, ó minha mágoa,<br />Só brinca de esconde esconde:<br />Já não quis mais pedir água <br />Na casa deste visconde.<br /><br />23<br />Siá Rafisa, me diga<br />O que faço pra arrancá<br />Do meu peito essa urtiga, <br />Pra dessa paixão me livrá?”<br /><br />24<br />A cigana reparou <br />Nos olhos do capiau<br />Botou cartas e apontou<br />Um modesto dois de pau.<br /><br />25<br />“Home” disse a cigana,<br />“Tá escrito aqui tão claro, <br />E essa carta não me engana,<br />Que não vou nem cobrar caro.<br />26<br />A coronelinha vai<br />Beber água em sua palma<br />Mas num posso dizer mais<br />Pelo bem da minha alm27<br />27 <br />O matuto se afastou<br />Semeado de esperança<br />E pra sua forja voltou <br />Terminada a sua andança<br />28<br />Uma semana passada,<br />Voltou ele galopando,<br />Parecendo alma penada,<br />E chegou logo gritando:<br />29<br />“Siá Rafisa, bota a sorte<br />Que quero o dia saber<br />E a hora da minha morte<br />Para o quanto vou dever<br />30<br />Porque de hoje não passo:<br />A moça veio beber<br />Da parma deste palhaço<br />Mas foi de tanto sofrer<br /><br />31<br />No momento do trespasso.<br />Caminhou mais de três légua<br />Sangrando quase sem trégua<br />Pra vir morrer no meu braço <br /><br /><br /><br />32<br />Baleada no pulmão <br />Por um pretendente em mágoa,<br />Morreu bebendo da água <br />Da parma da minha mão!”<br /><br />FIM<br /><br />Esse caso quase traumatizou Rafisa, pois percebeu, neste dia o quanto ela própria era ironizada pelo destino. E não quis ensinar mais nada. <br />Entretanto seu apego a mim cresceu e ela não queria mais que eu partisse, o que para uma cigana era no mínimo uma incoerência, pois denotava o começo de um sedentarismo sentimental, que podia destruir a sua reputação. Bem, querido leitor, devo reconhecer que isso é um eufemismo para me referir ao fato de que Rafisa... apaixonou-se por mim, para falar mais claramente. E eu, deixei-me amar por ela, entregando–me com paixão, como é do meu feitio. Eu a amei... sim, leitor, como a todas as pessoas a quem dôo meu corpo e meus carinhos. O Josué? Acabou descobrindo meu paradeiro, sobrevoando com o Pavão a região e descobrindo, afinal, o carroção entre as árvores. E como era do seu feitio, assim que posou, disse-me como se estivéssemos ausentes ou separados há apenas meia hora:<br />—Alma, apronte-se que vamos partir, despeça-se de Rafisa, mas peça a ela que me receba para uma consulta. Preciso saber quem viverá mais, Ludugero ou eu. O que ela disser interpretarei ao contrário porque já conheço essa Cassandra*, e sei como receber seus vaticínios “infalíveis”. <br />Aquilo me soou como ironia, quase como sarcasmo, e eu estranhei, pois não era do seu feitio. Percebendo minha expressão indignada, Josué, completou;<br />—Vamos Alma, chame Rafisa, ela é uma velha amiga... que pensava você? Nós nos adoramos, e eu deixei você em boas mãos. Na verdade, Alma, estava tudo combinado. Eu queria que vocês ficassem amigas, e conhecendo-as, sabia que teriam um caso amoroso. Você me deve isso. Ela é preciosa não é? Digna de você, Alma. Mas infelizmente não podemos ficar para vê-las juntas como gostaria<br />Dei-lhe um pequeno tapa no rosto, mas com um sorriso. Adoro o cinismo puro. Neste momento Rafisa saiu do carroção e com seu andar ondulante, como uma serpente mourisca, aproximou-se e beijou Josué na boca. E depois a mim. Eu estava surpresa. O roteiro do pavão de Josué estava muito bem traçado, todo planejado. Eu me sentia um tanto manipulada, mas minha relação com o Josué tinha sido assim desde o começo. Ele era misterioso, um manipulador sutil, e no fundo eu adorava tudo isso, esse mundo de surpresas que ele me apresentava. E eu supunha que havia ainda tanto a saber, sobre ele, sobre nós. Sobre o nosso passado. Talvez Rafisa pudesse me desvendar os segredos do nosso passado comum. Com esse pensamento na mente, eu disse:<br />— Josué, não partirei antes de uma última consulta com a Rafisa. Vocês me devem isso, já que estavam combinados e sonegaram um segredo que devem conhecer tão bem, e sobre o qual falaram certamente tantas vezes: Quem sou eu, Josué, quem és tu, por que me esperavas há tanto tempo como me disseste há cinco anos atrás? <br />Josué e Rafisa me olharam profundamente, ao mesmo tempo, e me enlaçaram lentamente com seus braços, numa espécie de dança sincronizada, cigana, voluptuosa. Foram me conduzindo naquela espécie de música inaudível, lenta, mesmérica, ao mesmo tempo que se desnudavam e a mim, deixando um rastro de roupas leves, até as portas traseiras do carroção, onde penetramos de quatro, os três sobre os tapetes macios da cigana que esperavam há muito tempo nossos corpos, juntos naquela dança, agora horizontal, de paixão.<br />E tivemos, Rafisa e eu, o ménage-a-trois que eu há tanto tempo acalentava em meu desejo por Josué, e que não tivera tempo de desfrutar com a querida Luzia. Era glorioso. E eu queria me dissipar nos braços daquelas duas belas criaturas, que sabiam tanto sobre mim. <br />Quando despertei ali sobre aquela alfombras aconchegantes do ninho da Medusa, como eu me acostumara a chamar a cigana que me acolhera, fui beijada por ela que ainda nua, com sua magnífica pele azeitonada, luzidia, sentada em posição de lótus, com a sua bola de cristal que brilhava na semi-penumbra, pousada entre seus joelhos entre nós que formávamos um triângulo em torno daquele objeto místico. A luz misteriosa que o cristal emitia banhava nossas peles em três tons, do alabastro iluminado da minha, ao bronze de Josué. Então, Rafisa, cujo olhar fixo dava medo, como o da Medusa, começou a invocar alguma coisa, talvez os espíritos de sua “lâmpada” mágica, numa língua estranha, impenetrável para mim:<br /><br /><br />Então, espantosamente, a luz sutil que emanava daquela esfera, pousada na sua base de madeira escuraexpandiu-se, ofuscou pelo menos a mim e Josué, enquanto a jovem Medusa lia meu passado com a clareza de uma reminiscência:<br />— “Alma, princesa das terras de um Norte mais distante, que veio depois da batalha que engoliu o rei no areal, passaste por mais oito vidas, antes de encontrares o Príncipe do Sertão, em teu exílio de séculos. Poucos amores como esse viram a luz neste mundo. Gerador de batalhas sangrentas, esse amor semeou de corpos e irrigou de sangue o solo seco de outrora, que é o mesmo em que pisamos. Uma noite já profetizada, a princesa foi carregada pelo seu amor na nave que assombrou aquele mundo, que ainda é o que vivemos. Duas famílias inteiras se extinguiram, quase não sobrou semente para a próxima semeadura. Mas a Alma voou e trouxe a chuva redentora. O verde brotava sob sua sombra voadora. Na proa, um nome estrangeiro, que o povo desentendeu: Ananke, de obscuro sentido. A princesa no bojo da nave, e no seu próprio bojo, carregava o herdeiro Nonato. Como seu nome, este não viu o sol. Sobre os pastos e jaqueiras de Ludger, príncipe germânico desterrado, do lado negro do branco norte, a nave pássaro fez deslizar a sua sombra. Na colina sobre a chapada, o duelo fez ouvir seu tilintar de ferros, urros e gemidos, e a princesa foi assegurada ao seu amor. Mas por apenas sete luas felizes, até que o duplo de Ludger posicionasse o bronze refundido das igrejas, e explodisse não mais em badaladas, mas num estrondo que trouxe o luto e a paz amarga de uma geração. Eis que a princesa se ergue agora do Raso das Sombras, e volta, reivindicada pelo seu amor redivivo. Mas... atentai e vigiai! Ludger permanece em seu herdeiro, e espreita, esperando a sua vez.” . <br />Eu olhava Rafisa, sentindo-me arrepiada inteira, enquanto Josué também parecia em transe. Eu analisava as palavras daquela “professia do passado” e encontrava muitos dados novos ao que eu já sabia por dedução lógica: <br /><br />1 O rei morto no areal foi Dom Sebastião , o Venturoso, depois chamado “o Esperado” <br />2 As famílias quase se exterminaram.<br />3 O nome na proa do Pavão de outrora era Ananque, a deusa do Destino dos antigos órficos( agora era “Alma do Sertão” ).<br />4 A Alma minha antecessora, estava grávida, e a criança não chegou a nascer, pois foi morta no ventre (Nonato= não nascido), com ela (o que me pareceu a tragédia maior).<br />5 Ludugero era descendente de uma família alemã e era mau.<br />6 Antes da tragédia houve um duelo entre os dois rivais: o antecessor de Josué e o de Cipriano Ludugero. E o Josué vencera.<br />7O casal, livre do rival, foi feliz por sete semanas.<br />8 Um irmão gêmeo de Cipriano tomou as dores do irmão e resolveu vingá-lo, roubando os sinos das igrejas da região para fundi-los, forjando um canhão de bronze, com o qual atirou na nave em pleno vôo.<br />9 A paz entre as duas famílias veio com a morte do infeliz casal.<br />10 Uma encarnação depois, eu, Alma Welt, fui chamada por Josué, a reencarnação de meu antigo noivo de mesmo nome. <br />11 Ludger, isto é Cipriano Ludugero, é o herdeiro atual desta rivalidade da qual eu continuava sendo o pivô. <br /><br />Depois dessa experiência esotérica, eu não tinha motivos, na verdade, para ficar mais tranqüila. Dei-me conta de que eu continuava no olho do furacão. Mas eu tinha muito medo das profecias mesmo, de futuro, com sua ironia cruel e sempre surpreendente. Quem venceria no final? Eu tinha medo de saber, já que eu era o prêmio. Eu seria morta na disputa, novamente, como minha antecessora? Eu cairia nas mãos de Ludugero? Se isso acontecesse, quereria dizer que Josué seria morto? Ai! Eu estava apavorada.<br />Saímos daquela penumbra do carroção de janelas fechadas, depois que a bola de cristal apagou-se, por assim dizer, e Rafisa parecia extenuada, semi- desfalecida nos braços de Josué. Ficamos ali, cuidando dela, depositada sobre a relva, naquela manhã belíssima cujo céu azul parecia tão inocente, sem nuvens, claríssimo como é, na verdade, o céu inclemente da seca deste sertão. Olhando aquela linda morena ali, deitada, nua, eu me enterneci com sua beleza misteriosa, agora estranhamente frágil, vulnerável mesmo, após o transe. E beijei-lhe levemente os lábios para despertá-la. Ela abriu devagar os grandes olhos negros, pestanudos, misteriosos, do Oriente, e aos poucos o fogo de sua alma intensa, surgiu neles novamente. Que mulher!<br />Qual seria, por sua vez, o destino daquela jovem feiticeira benfazeja? Tornar-se-ia ela, um dia uma bruxa velha que daria medo, pelo aspecto ou por seus vaticínios lúgubres? As bruxas velhas foram jovens algum dia e talvez belas. Estranho destino o dos oráculos! Haja vista Cassandra e sua maldição: jamais ser acreditada, com toda a sua competência. E afinal, morrendo nas mãos de Clitemnestra, a mulher do seu inimigo e captor.<br />Eu pedi a Josué, ali mesmo, na frente de Rafisa:<br />—Leva-me daqui, Josué, leva-me para mais longe de teu inimigo. Tenho medo, Josué, pois vi a cobiça em seus olhos, na vez que o avistei de mais perto. Esse homem terrível... ele me quer, Josué, e não poupará esforços. Vai perseguir-nos até o fim do mundo. Mas não quero o confronto de vocês dois, Josué. Nenhuma profecia pode mais tranqüilizar-me, pois tenho medo de que minha felicidade presente será cobrada no futuro. Ananque é uma deusa cruel, Josué! <br />Josué abraçou-me afagando minha cabeça aninhada em seu peito, da maneira paternal que os homens fortes têm de serem carinhosos e protetores. E eu me senti uma guria, como outrora, na estância, nos braços de meu irmão incestuoso e amado.<br /><br />_________________________________________ <br /><br /><br /><br />FIM DA PRIMEIRA PARTE<br /><br /><br />ALMA WELT<br /><br /><br /><br />( SEGUNDA PARTE )<br /><br />________________<br /><br /><br /><br /><br />A CASA DE LUDGER<br /><br /><br />Capítulo primeiro<br />____________<br /><br />Ludugero persiste<br /><br /><br />Despedimo-nos de Rafisa, emocionadamente. Eu a abracei como irmã e amante, e também como sua discípula dileta. O quanto eu apreendera com esta cigana, com esta maga predestinada, vocês, meus leitores, não poderão saber a não ser em parte. Rafisa não desprendeu seus olhos dos meus, nesta despedida, o fulgor e a insistência do olhar impressionante desta Anti-Medusa benévola aquecia o meu coração, e eu levaria este olhar comigo para sempre e o veria nas lindas noites do sertão estrelado, com também nas do meu Pampa, se me fosse dado um dia voltar às verdes pradarias do Sul.<br />O “Alma do Sertão” nosso Pavão motorizado, silencioso, subiu na vertical, pairando pela última vez sobre o carroção que fora como um lar para mim, por dezesseis dias, e sobre cujas inusitadas tapeçarias do Oriente eu rolara, abraçada a um corpo tão belo como o meu, mas moreno como sombra acolhedora no deserto, como oásis naquele sertão solar, embora estivéssemos no meio de um agradável bosque. Mas refiro-me à toda aquela viagem da minha alma pela essência seca do chão duro daquele nordeste, que não queria ser considerado um desterro desta Alma, mas seu retorno ao lar, sua casa paterna imponderável, que eu ainda não reconhecia em totalidade. Ai! Que destino o meu! Sou frágil, não cresci completamente, sou na verdade a femme-enfant que eu nunca quis reconhecer, em minhas perplexas contradições. Tenho medos como uma criança, quero ser protegida nos braços de um homem forte. E, no entanto, em que aventuras me meto! Por que sendas, por que trilhas o destino me arrasta, amada por homens e mulheres, mas sem pouso, sem um lar verdadeiro, de casa tão distante! Mas, não será assim todo destino humano? Desterrados do Pai, erramos na Terra, e não temos guarida a não ser como hóspedes passageiros, dependentes “da bondade de estranhos”, como disse Tennesse Williams, pela boca da dolorosa e bela Blanche Dubois, com quem tantas vezes me identifico. Sou patética eu sei, sou romântica e só quero ser amada até o apaziguamento total, por um homem perfeito, um príncipe, imagem projetada do irmão dos nossos sonhos ou de um pai eternamente jovem. Sou incestuosa portanto, e assumida. Deslumbrada na infância com a face invertida do meu espelho, onde enxergava não a minha face, mas a do lânguido Narciso, contra-face de sua ninfa Eco, ecoando, ecoando em círculos concêntricos, em torno de uma flor desesperadamente branca, curvada sobre suas águas. <br />Voávamos agora, voávamos, e Josué já consultava as suas incompreensíveis cartas, enquanto eu meditava sobre o mistério da cidade onde pousáramos e que eu não conhecera, e que talvez nem tivesse realmente me visto, a não ser nua, isto é, não reconhecera sua princesa, pois agora estava claro: Rafisa com suas artes mágicas me escamoteara aos olhos da população. Minha descida no Pavão não constaria jamais dos anais da cidade, eu agora tinha certeza, e não pude senão sorrir. Ah! Rafisa, um dia nos reencontraremos? Atravessarás este Brasil no teu carroção puxado pela égua Miranda, coitada, tão magra, e estacionarás no bosque mágico de minha infância, na estância, onde Rôdo e eu correremos ao teu encontro para o abraço comovido de amigos de sangue? <br />Voamos tanto tempo que, perdidos sobre uma planura inóspita e espinhosa, talvez ainda no sertão da Paraíba (Josué já não tinha certeza de nada) acabou nossa água combustível, até a reserva, sobrando somente o conteúdo do menor dos odres, o de beber. Nós estávamos em apuros. A realidade cobrava os seus direitos a estes dois sonhadores e tivemos que descer, “no vapor” como se diz, para não espatifar-nos contra o solo rachado de uma caatinga seca de cem anos. Descemos da barcaça, com o coração apertado, preocupados, pois a paisagem era terrível, desoladora, e só tínhamos um horizonte indefinido a toda volta, reverberante de calor, cuja linha indefinida ondulava como um delírio de febre terçã.<br />Quando pus os pés no solo, quase tive uma vertigem de calor, e pensei em primeiro lugar, na minha pele tão branca... Eu iria ficar sardenta, pela primeira vez, e para sempre? Senti dor no meu coração. Mas por quê, por outro lado, eu não me queimara nem um pouco até agora naquela viagem e naquele vento, e minha pele permanecia branca e sedosa como sempre? Aquilo era um mistério, que impressionava até o Josué que não era fácil de se admirar, com nada estranho. Ele, mesmo assim, parece que também pensara nisso, e retirou de sua mala misteriosa, uma sombrinha branca como eu e como o meu vestido rendado, e abrindo-a, entregou-a a mim, para começarmos a caminhada. <br />Andamos por uma hora sob o sol inclemente e sarcástico como os metais do “ Le Sacre du Primtemps” de Stravinsky, eu, com minha sombrinha branca também debruada de renda, e meu vestido alvíssimo, quase tanto quanto a minha pele, minhas sandalinhas finas de ouro e prata, que eram feitas somente para mostrar meus pés, finos, delicados, com os dedinhos segundos mais compridos que os primeiros, como as mãos, que inspirariam aqueles versos do cordelista Guilherme. Mas eu me refiro a isso tudo para ressaltar o absurdo da nossa situação. Eu era incompatível com aquele deserto, eu que era “filha das verdes pradarias floridas, dos campos de trigo louros como os meus cabelos, e do vinhedo, de uvas rubras como os meus lábios”*. Eu iria morrer esturricada e ficaria ali como uma ossada branca. E não seria identificada em minha brancura óssea, como não o fora Dom Sebastião no areal africano. Afinal eu também não era a “Esperada”? Estes pensamentos irônicos, quase delirantes, denunciavam meu ressentimento, minha amargura nascente. Josué não podia me proteger mais do que o fizera arranjando-me aquela sombrinha que comprara na feira de Princesa, e que diziam ser cópia da que a Princesa Isabel usara na sua passagem por lá. Bah! Tudo sonhos, tudo delírios. Fiora e Anunciada tinham razão eu não era feita para a rudeza deste sertão, eu o subestimara em sua crueza, em sua crueldade. E agora iria morrer! <br />Mas, então, mesmo numa hora tão penosa e angustiante como aquela, sob um calor de quase 50º Celcius, eu, lembrando-me do filme “Barbarella”, dos anos 60 (que eu vira em DVD), ali, sedenta, exclamei: “CHAMPANHE! CHAMPANHE!”, com minha sombrinha muito tesa e meu ar de lady. E caí numa gargalhada cristalina, nada amarga, que perdeu-se na vastidão daquele deserto. <br />Então, Josué, que me olhara espantado, neste exato momento apontou o dedo, estendendo o braço em frente, e gritou: “TERRA À VISTA! TERRA À VISTA!” Eu não acreditava, o mundo estava verde novamente, e eu me vi sob palmeiras e coqueirais, jaqueiras frondosas e sapotizeiros que cresciam juntos, sem conflito, às margens de uma cascata e sua piscina azul, no doce país de Cocayne*, digo, da Esperança. <br />Sim, eu bem tinha ouvido que só o humor salva... <br /><br />_______________________________________<br /><br /><br />Ficamos uma semana desfrutando do paraíso e “transando” tanto sem camisinha como se o mundo estivesse redimido, e não houvesse punição para os incautos e os inocentes. Aliás eu já via com bons olhos a idéia de um bebezinho em meus braços, mamando em meu seio, e mergulhando com os botos como o menino da escultura grega de bronze no museu de Atenas, que tanto me impressionara, como a essência emblemática da Idade de Ouro, que eu pensava estar revivendo ali, naquele sertão verdejante, inaudito. Mas, afinal, um dia, enquanto eu acariciava meu ventre e o bico dos meus seios com um ar sonhador, Josué aproximou-se e disse: <br />—Alma, querida, temos de partir, o mundo nos espera, passaram-se sete anos e eu também só soube disso agora, fazendo cálculos com um aparelho que inventei e que tirei da minha mala de equipamentos. Se ficarmos aqui, seremos esquecidos pela humanidade, e tudo o que passamos antes terá sido em vão.<br />—Mas, Josué, — eu disse— o que passamos, mal me lembro, e que importância tem, se estamos tão felizes? Vem, toma-me, toma-me mais uma vez, mais mil vezes. Só quero isso, e depois... talvez, morrer em teus braços. Mas dá-me um bebezinho, vê meu ventre crescer, ausculta-o, fala com ele, beija-o através do meu umbigo, tira-o de dentro de mim com tuas mãos, lamba-o junto comigo. Vem, vem, vamos fazê-lo agora! <br />Josué olhou-me fixamente, abanou a cabeça, e mais uma vez deitou-se sobre mim, que vivíamos nus, e me possuiu docemente. <br /><br />________________________________________<br /><br /><br />Quando completou-se dez anos de nossa chegada a Cocayne (não me entendam mal, nada a haver com o que alguns estão pensando), eu estava mais jovem e saudável do que nunca, e não envelhecera nem um pouco, o que preocupava Josué, não sei por quê, e que para mim era maravilhoso, com o único senão de não poder admirar a minha beleza intocada, num espelho de cristal mesmo, que não havia ali, e somente poder mirar-me nas águas, aliás cristalinas da nossa piscina natural da cascata. Mas eu não engravidava e isso estava tirando-me o prazer da imortalidade e da juventude eterna, que eu já percebia que reinavam ali, naquele paraíso sertanejo. Comecei a aceitar a idéia de partir. Não há perfeição no mundo, e se eu não podia perpetuar-me e nem tinha telas e tintas para pintar, ou papel para desenhar e escrever meus versos, nem admiradores e leitores ávidos das minhas criações, eu não queria a Eternidade! Lembrei-me, das últimas palavras do grande Jean-Baptiste Corot, no seu leito de morte: “Espero que no Céu, haja pintura!” <br />Então, fiz um esforço imenso para superar a preguiça e o prazer do meu corpo em eterno deleite (eu não tivera sequer um piriri, ou uma dor de dentes, ou de cabeça, nem um simples resfriado, todos as aqueles anos, e me esquecera totalmente da ameaça de Ludugero). Nunca mais voáramos no Pavão, do que, confesso, estava com saudades. Josué com sua habilidade, conseguira levar água aos poucos, durante aqueles longos anos, até encher os odres do pavão num trabalho de Sísifo, ou melhor, de tonel das Danaides, pois o sol da caatinga fazia evaporar uma parte no caminho e mesmo dentro dos próprios odres de maneira que foram necessários dez anos para ter neles uma quantidade razoável para levantar vôo e escapar daquele deserto. Durante aqueles anos nenhuma vez eu o acompanhara nesse trabalho, pois nem sabia que ele fazia isso. Eu tributava suas ausências à sua vida de homem, que precisava afastar-se um pouco de sua mulherzinha e sair com os amigos, esquecendo-me completamente que ali não havia amigos, não havia ninguém. A verdade é que eu me alienara no meu sonho de dez anos, e não vira o quanto Josué se esforçara e até envelhecera um bocado, naquele esforço brutal, quase cotidiano, que eu ignorava. Tive um grande remorso, quando me dei conta de tanto sofrimento do meu homem. Para ele não houvera Paraíso, e sua sina de homem nunca fora renegada. Ele sim, era o herói, e lembrei-me de que isto queria dizer que ele seria capaz de descer aos Infernos por mim, e voltar, se é que ele já não vinha fazendo isso continuamente, há dez anos. Decidi partir com ele.<br />Josué foi buscar sozinho o Pavão e sobrevoou Cocayne, acenando-me, antes de descer, sobre a grama entre os coqueiros. Naquele momento ele poderia ter se afastado e fugido, deixando-me ali para sempre. Mas isso nem lhe passou pela cabeça, ele me afirmou depois, quando perguntado por mim, que levantara essa dúvida, num lapso de um minuto, em meu espírito. Ele me amava, eu era a sua princesa e ele não me abandonaria, jamais, no paraíso. <br /><br />________________________________________ <br /><br />Voávamos novamente sobre este sertão, e eu mal podia crer que se passaram dez anos, já que tudo aparentemente continuava do mesmo jeito lá embaixo: a pobreza, a miséria do povo, as grandes fazendas inúteis, o gado magro, as poucas cacimbas, uns raros açudes só para os coronéis, umas vilazinhas modorrentas, e mais miséria. Mas eu sabia que, descendo, eu me apaixonaria de novo por esse povo, cuja resistência agora tinha mais dez anos, enquanto eu os passara em brancas nuvens, na ociosidade, e nem sequer um poema novo lhes dedicara. Mas se isso acontecera, eu pensava, também fora destino, e talvez Ludugero nos tinha esquecido, e isso era o sentido desta fuga do tempo, que nos fora concedida. Eu não concebera um filho, por razões que eu desconhecia, mas em compensação, que rival ou admirador persiste em sua obsessão por tanto tempo? Assim eu pensava durante aquele vôo de volta ao tempo fluente, ao tempo que corre para o mar do Nada como um grande rio, como o Velho Chico, que eu almejava conhecer, e banhar-me nas suas águas ilustres.<br />Assim pensando, pedi ao Josué que desse uma guinada para o sul e rumasse para o São Francisco. <br />Durante o vôo eu percebia lá de cima, que aquele sertão continuava carente e seco como sempre, e eu então lembrei Josué de perseguir as nuvens preguiçosas e atravessá-las para o escapamento do motor do nosso Pavão ionizá-las para que chovessem sobre aquele solo, mas eu estava consciente que o semi-árido que agora sobrevoávamos era um eco-sistema específico, e cabia aos homens e sobretudo às autoridades conservarem e aproveitarem seus potenciais e suas riquezas respeitando essa aridez. O perigo eram represas mal planejadas, que estavam matando o Velho Chico, que era o Nilo daquela região, quer dizer, suas regiões marginais eram a dádiva daquele rio, e estavam produzindo uvas e um vinho melhor talvez que muitos dos nossos melhores, lá no Rio Grande, salvo é claro, o meu Ara dos Pampas*. <br />Então ao sobrevoar um magnífico vinhedo, que brilhava lá embaixo, no vale do São Francisco, eu pedi para Josué descer, pois eu queria andar novamente entre as uvas depois de tanto tempo. Imediatamente enquanto Josué escolhia um ponto de descida, vimos um povo que corria em direção à nave apontando ou estendendo os braços, e percebemos serem os colonos da vinha, homens, mulheres e crianças, em grande alegria e devoção, como sempre. Mas logo vimos que outro tipo de homens, armados de espingarda cercaram o local provável de pouso, onde descíamos verticalmente, apontando-nos ameaçadoramente os rifles, e dispersando os camponeses. Nos estávamos encrencados. <br />Assim que as rodas tocaram o solo e botei os pés no chão, fomos agarrados e arrastados com violência para o meio do vinhedo, e ouvi o que parecia ser o chefe deles dizer bem alto, para os outros: <br />—Pessoal, vamos comer aqui mesmo ou vamos levar pra casa pra comer de noite?<br />Meus joelhos tremeram. Alguma coisa mudara neste sertão, pois nem mesmo em Princesa, quando descêramos naquele campo de futebol durante uma festa, eu correra tanto perigo, mesmo tendo o povo dilacerado o meu vestido deixando-me nua. Pois ali houvera reverência, idolatria ou mesmo entusiasmo, e eu não me sentira tão propriamente desrespeitada como agora. Eu fiquei apavorada, tanto mais que, olhando para trás para procurar Josué, avistei-o ajoelhado e com um jagunço atrás dele, com um rifle encostado em sua nuca, prestes a atirar. Gritei imediatamente:<br />—Alto lá, homens. Não se atrevam a tocar-nos! Ludugero está me aguardando e ai de quem nos fizer mal. Vai ter que se haver com ele! <br />Ao ouvir o nome de Ludugero, o chefe daqueles pistoleiros, estacou imediatamente e fazendo um sinal de suspensão, disse: <br />—Calma, dona, só estamos conferindo pra ver se vocês não são espiões ou se vieram contaminar o vinhedo, pois estamos perto de começar a colheita e temos de tomar muito cuidado. Vamos levar vocês pro chefe, mas antes temos que examinar o aeroplano, pra ver se tem alguma coisa perigosa pra as uvas. <br />Senti um imenso alívio, enquanto a arma, tendo sido afastada da nuca de Josué, este se levantou imediatamente com ar indignado. Mas logo percebi que ele estava assim, mas era em relação a mim. Ele desconfiava de mim! Eu podia ver nos olhos deles a pergunta: “Como você sabia que isto eram terras de Ludugero? O que pretendia fazendo-nos descer? Você quer se entregar a ele?” <br />A essas perguntas, eu só poderia responder: “Não sabia que sabia!” Tratava-se, provavelmente daquela inspiração ou intuição profunda, inconsciente, que Jung denominava “sincronicidade”, para diferenciá-la do fenômeno da coincidência. Mas Josué estava profundamente magoado, intuindo por sua vez, a secreta atração que deveria haver em mim, pelo seu e meu inimigo, por razões ancestrais cujo segredo ele conhecia e ocultava de mim. Por outro lado eu podia só estar ganhando tempo e jogara um nome no vento, no meio do parreiral e... pegara. Vocês escolhem, leitores. Mas o fato é que eu salvara nossas vidas, e Josué deveria pôr isso em primeiro lugar. Mas, como são os homens! Bem, ele tinha uma certa razão, no seu súbito ressentimento. Devo confessar que caminhando naquele parreiral, escoltados pelos esbirros de Ludugero, eu já sabia que ia me entregar a ele. Por quê ser hipócrita com vocês, meus leitores, que já me conhecem tão bem, e de quem não tenho vergonha, pois não lhes conheço o rosto? <br />Demorei alguns anos para admitir que estava profunda e inconscientemente magoada com Josué por ele não ter conseguido me dar o meu bebê. Ele fizera vasectomia, depois que eu partira quinze anos atrás (contando com os anos de paraíso), e me escondera esse fato. Eu... me sentia traída, e até desperdiçada. Pobre Josué! Como deve ter sofrido nos meus anos de sensualidade plena, ligada à busca da maternidade, que foi a tônica do meu amor naquele oásis de tempo suspenso! <br />Agora, andando com aquela escolta entre as alas de parreiras carregadas, eu não podia admirar devidamente os grandes cachos sumarentos, que brilhavam como pérolas ao sol daquele sertão, prometendo um novo vinho que conquistaria o mundo. Meus pensamentos estavam confusos, perturbados pelo olhar incisivo, de censura, que eu sentia vindo de Josué que caminhava alguns passos atrás de mim, tacitamente. Eu estava sendo levada, como uma presa ao meu captor, essa é que era a verdade. Como seria esse Cipriano Ludugero, de perto, e... intimamente? Era uma incógnita, e eu tanto poderia estar sendo levada como uma ovelha ao sacrifício, quanto indo ao encontro surpreendente, que inauguraria um novo ciclo em minha vida, com novas esperanças. <br />____________________________________<br /><br />Diante da casa, estava Ludugero. E eu via de perto, o homem que eu avistara a uma certa distância, e meio de cima, naquela fuga de Salgueiro e reparara na sua enorme estatura e imponência. Ali, de perto, eu podia ver que era também um belo homem. O rosto comprido, os olhos encovados de um cinza esverdeado e frio; o grande nariz perfeito, o queixo quadrado, tão másculo! Os lábios finos denunciavam crueldade e a ascendência germânica dos Ludger. Eu estava paralisada, e confesso, fascinada, enquanto esse homem esboçava um sorriso, estendendo um braço e oferecendo-me a mão. Nesse momento ouvi o grito de Josué: “Alma! Alllmaaaaa!” e virando-me eu o vi ser arrastado por dois capangas de Cipriano, e atirado dentro de um carro, enquanto eu corria em sua direção e gritava Josué! Josué!, batendo, batendo nos vidros. O carro partiu cantando os pneus, e eu ainda corri atrás até tropeçar e cair, dolorosamente. Fiquei ali, apoiada nas mãos esfoladas, soluçando amargamente de dor e remorso, até que vi por entre minhas lágrimas, a mão enorme e poderosa de Ludugero, ao meu lado, ainda estendida para mim, oferecendo-me apoio para eu levantar. Ao fazê-lo, senti uma vertigem, meus joelhos fraquejaram e eu tive um semi-desfalecimento, enquanto ele, então, pondo rapidamente o braço sob minhas coxas tomou-me nos braços e carregou-me no colo para dentro de sua casa. <br />Como eu viera cair ali na boca do lobo? Ludugero tinha sua fazenda na região do pai de Josué, e como eu poderia saber que ele comprara terras ali, no Vale do São Francisco, para plantar uvas e fazer vinho? Jamais poderei explicar isso a vocês, claramente, meus queridos leitores. Provavelmente eu fora atraída pela intensidade da paixão daquele homem por mim, há gerações. Teria seu antepassado me possuído, digo, à minha antepassada, ou a mim mesma numa vida passada? Acho provável. Eu não estava podendo resistir a esse homem, e deixei que ele subisse uma escadaria comigo nos braços para, lá em cima, empurrando uma porta com o ombro me atirasse sobre uma grande cama de dossel, cerrando a porta, a seguir com as costas. Sempre olhando-me fixamente, começou a despir-se, devagar, calmamente, mas com um fogo no olhar. <br />Então, ah! meus leitores, quase tenho vergonha de contar. Sentindo que não adiantaria resistir ao estupro inevitável, fiz algo também inusitado: ergui, assim deitada, também lentamente, minha saia, e estando sem calcinha descobri meu púbis, expondo-o ao olhar daquele homem. Fiz mais: abri um pouco, deva gar, as minhas pernas longas e brancas, perdição dos homens. A visão do meu corpo nu, da cintura para baixo, que me deixava mais exposta do que totalmente nua, meus pêlos púbicos dourados, ralos, que deixavam a mostra minha vulva perfeita como uma concha rosada, alucinaram meu captor que, nu, com seu imenso falo em riste, assustador, deitou-se sobre mim agarrando meus seios e penetrando-me sem rodeios, com uma estocada dolorosa que foi direto ao fundo de onde partiu o meu grito... de dor e prazer. Sua boca fina colou-se aos meus lábios cheios e sugaram meu alento junto com esse grito. E eu... eu era sua agora, ele me tinha, ele me possuía, e eu era a sua escrava, a sua cadela. Pobre Josué! <br /><br />_________________________________<br /><br /><br /><br /><br />Eu quis saber o que fizeram com Josué e disse a Ludugero, deitada há três dias naquela cama, que ele não me teria nunca mais se fizesse mal ao meu “marido” e se não o libertasse, deixando-o partir. Eu sabia que Josué estava vivo, pois este homem me parecia sutil, apesar de tudo, e não quereria angariar meu ódio ou meu horror. Eu estava certa, Ludugero estava mais apaixonado do que nunca, e isso o abrandava, atenuava a sua decantada crueldade. Ele sorriu e disse:<br />—Fique tranqüila, princesa. Não foi tocado um fio de cabelo daquele energúmeno do Pavão. <br />Estarrecida e aliviada ao mesmo tempo, fiquei sabendo naquele momento, que Josué fora levado até o Raso da Catarina, no Alto Sertão baiano, como sua escolha no exílio a que o condenaram, e solto lá no meio da caatinga, com sua mala de migrante, da qual o pobre não se separava, e a carregara caminhando sob o sol por milhares de quilômetros, a pé, até chegar em São Paulo onde se instalou na periferia de onde fazia incursões ao centro da enorme cidade, como marreteiro tão bem sucedido que comprou um táxi. Nos fins de semana se apresentava como razoável repentista e violeiro, tendo até se apresentado no programa da Inesita Barroso, onde contara um pouco de sua triste estória. No programa do Rolando Boldrin, além de cantar maravilhosa e surpreendentemente, lançara no ar um apelo a mim, a sua amada, que eu assisti na televisão, que ligara por acaso, naquele momento, na casa do meu novo “senhor” e esposo. Ludugero me deixava muito tempo livre para a televisão, desde que o esperasse de espartilho branco ou negro, quando chegava de suas andanças e falcatruas. Aquilo só fez aumentar o meu remorso. Comecei a ficar triste, e com isso reapareceu, mas com um timbre diferente, a minha necessidade de ser fustigada, coisa a que Cipriano aderiu com furor. Mas alguma coisa estava errada, e meu amo começou a cansar-se de mim, embora eu continuasse bela como sempre e disposta ao sexo doloroso. Acabou colocando–me na zona, de onde eu não podia sair, pois a dona do bordel, era comadre de Ludugero e paga por ele para me vigiar. <br />Eu iniciara uma nova carreira, promissora, pois sendo como sou, logo virei a princesa e depois a rainha daquele lupanar. E Ludugero voltou a ficar orgulhoso de mim, o que me revelou, numa de suas visitas ocasionais. Mas eu não estava satisfeita, pois o remorso continuava a roer meu coração. Um dia, no auge da minha carreira, que era de cama e palco, pois eu dançava e cantava números sensuais, eróticos mesmo, no meu bordel, abandonei tudo e parti intempestivamente, trajando uma roupa branca de corista e minha sombrinha rendada, pela caatinga novamente, a pé, a esmo, seguindo a bússola do meu coração, na direção de Josué. Não é preciso dizer que o encontrei quando já estava com meu espartilho e véus em frangalhos, pelos espinhos, e praticamente nua. Oh! Maravilha do destino! Encontrei meu Josué que vinha com sua mala na mão e corremos um para o outro para um abraço apoteótico, de que numa mais me esqueceria. Lembro-me de que tocava em minha cabeça a cantilena em boca-chiusa da bachiana de Vila-Lobos. E rodamos, rodamos abraçados. Logo estávamos fazendo o Pavão decolar depois de um conserto engenhoso de Josué, que conseguiu fazer pegar o motor emperrado depois de tantos anos de abandono que quase o transformara numa sucata. Então de repente, estávamos voando novamente, abraçados, como outrora, na proa do Alma do Sertão, fazendo chover e perdoando os erros do mundo, nossos próprios erros. Eu continuava bela, e jovem, pois tivera o desconto daqueles anos de Cocayne, enquanto Josué estava um tanto acabado, mas com o entusiasmo recuperado. Nós ainda podíamos ser felizes. Ludugero, “karmicamente”, ficara para trás.<br /><br />______________________________________________ <br /><br /><br />Acordei nos braços de Josué e querendo descer da cama, quase cai do Pavão, que estava voando no seu automítico. Cheguei a ficar dependurada pela mão de Josué em pleno vôo. A, no mínimo um quilômetro de altura, seria difícil sobreviver àquela queda. Mas afinal, depois de maus bocados ele içou-me a bordo novamente, pois continuava um cabra arretado de forte, apesar dos cabelos brancos. Jurei nunca mais me separar do meu amor e pedia para ele me perdoar, pedia ardentemente, em seus braços, e ele parecia não estar entendendo o porquê. Resolvemos botar uma pedra sobre o passado. Ele estava mais carinhoso do que nunca, e eu, tão feliz que quase caí do pavão novamente. Então pedi a Josué para ele “ancorar-me na realidade”, o que ele fez, não com uma âncora pesada que ele carregava naquela mala, mas com sua ferramenta de carne, muito mais eficaz. Nós voaríamos e tornaríamos a voar, fisgada em seu arpão que me materializava no melhor dos sonhos, o sonho das mulheres apaixonadas e felizes, plenas em nossa glória de existir em absoluta carne e beleza. <br />O pavão voava em direção à Olinda, meu ponto de partida, onde tudo começara. <br /><br />________________________________________<br /><br /><br />Final<br /><br /><br /><br />Olinda novamente<br /><br /><br />O Pavão sobrevoou Olinda, para maravilha da população, que estava em pleno Carnaval, naquele momento descendo a rua de São Bento na altura da Ribeira, com o maravilhoso bloco da “Pitombeira dos Quatro Cantos”, cantando o seu hino de grande beleza e nostalgia, entremeado de momentos frenéticos onde a rua ondulava no movimento acelerado do Frevo, em frente à casa de Giuseppe e Fiora, e também em frente da casa de Alceu Valença, onde anteriormente morara, por três anos, o meu cordelista predileto, o paulistano Guilherme de Faria.<br />O pavão desceu suavemente, ao lado da Matriz, e foi muito oportuno, sendo muito fotografado pelos turistas, passando despercebido em seu lado mais oculto aos leigos, e à própria população leviana, que o creditou a uma iniciativa da prefeitura para incrementar o Carnaval, como uma espécie de carro alegórico voador. <br />Logo estávamos batendo à porta do casarão de Giuseppe, no meio daquela confusão de foliões, e, eu entrando no espírito brincalhão, tive a idéia de fazer me passar por desfalecida nos braços de Josué, rasgando minhas roupas aqui e ali, e riscando meu corpo aqui e ali com baton. <br />Quando a porta se abriu, o assombro e a fúria de Fiora, diante daquela cena, eu desfalecida nos braços de Josué, toda esfarrapada e “arranhada” de espinhos, foi indescritível! Eu que acompanhava suas reações com os olhos semiabertos, “vidrados’, fazia um enorme esforço para não cair numa gargalhada.<br />Fiora mandou Josué colocar-me sobre a mesa da cozinha, e dava tapinhas em meu rosto, aflitíssima, gritando:<br />—Alma, Alma! querida, acorde, volte! Ah! Maldito Josué! Você, novamente trazendo ela nesse estado! Vocês são... incorrigíveis. Alma! Oh! Alma... <br />Giuseppe chegou correndo, de bermudão e sandálias, belo como sempre, apesar de envelhecido. Meu coração estava enternecido, ao mesmo tempo que eu não conseguia mais reprimir a gargalhada que acabou estourando para estupefação dos dois, que entenderam tudo, de repente, num misto de alívio indignação, e alegria. Eu estava bem, e estava fazendo o meu número de Carnaval, onde nada na vida é sério, nem sequer a morte, a loucura ou a dor. Eu estava novamente nos braços de Giuseppe, Fiora e... Anunciada, que chorava de alívio e alegria e a quem beijei muito, muito, minha doce “cunhadinha” ! <br />Lá fora, o canto dos foliões, com sua fanfarra alegre e frenética, emoldurava, por assim dizer, esta cena de interior, como um quadro de Bajado, que representasse uma cena insólita, de uma “donzela” de Olinda, sentada numa mesa de cozinha, cercada dos seus afetos, e pintada de maneira extravagante, esfarrapada como uma colombina de outrora, no fim da folia... que não acabaria jamais! <br /><br /><br />FIMLúcia Welthttp://www.blogger.com/profile/07605250870392022092noreply@blogger.com0