domingo, 28 de outubro de 2007

O RETORNO DOS MENESTRÉIS (Romance de ALMA WELT)


Xilogravura de Guilherme de Faria representando Alma e Josué voando no Pavão Misterioso sob a mira do canhão de Ludugero.



"O Sonho de Alma Welt com o Pavão Misterioso'- óleo s/ tela de 100x100cm, de Guilherme de Faria, que ilustra a capa do romance "O Retorno dos Menestréis", de Alma Welt. A pintura original pertence à coleção do Instituto Paulo Gaudêncio, São Paulo, Brasil.



O RETORNO DOS MENESTRÉIS




ALMA WELT


(Romance)





"Ah! A Alma em seu delírio!
Por vezes branco qual lírio,
Às vezes negro sombrio
Como um tenebroso rio...

Mas no final, atenção!
Volta o riso, eis a meta
Do vôo deste Pavão
Que sonha a alma desperta."


Versos retirados do cordel “O romance do Cordelista”
de autoria de GUILHERME DE FARIA


Alma Welt

O Retorno dos Menestréis

Capítulo Primeiro
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A Procura do Sertão


Vida, que bom mistério
Amá-la com sua dor!
Mas sem a levar muito a sério
É que encontras seu valor...

das “Trovas Picaras III”, Cordel de
autoria de Guilherme de Faria

Depois de cinco anos, estou de volta, a caminho de Olinda, essa cidade encantadora, onde fui tão feliz por dois anos e de onde parti para o sertão para encontrar o Pavão Misterioso, com Josué, um amor da minha vida, e com os menestréis, numa saga que contei resumidamente no meu conto “Na Trilha dos Menestréis”, já publicado em livro, em São Paulo. Digo em livro, porque meu descobridor e prefaciador paulista vem há anos publicando meus poemas em forma de edições de folhetos de cordel, como gênero editorial, claro, pois não sou cordelista no sentido do gênero literário nordestino, infelizmente, como ele próprio, o Guilherme de Faria faz tão bem, apesar de ser paulistano, nascido e criado às margens (como ele diz) da rua Augusta, o que é, no mínimo, um fenômeno.
Descendo no aeroporto de Guararapes, pego um táxi para Olinda carregando apenas a minha mochila de viagem, com o mínimo possível dentro, mas com tudo o que preciso: presentes para Fiora, mulher do meu marchand italiano, o Giuseppe, para o Mateus o filhinho do casal, para Anunciada a babá do menino, e para Josué, que espero ardentemente reencontrar. Quem leu meu conto sabe do que estou falando. Para os novos leitores, adiantarei que tive uma estranha relação com este jovem sertanejo que tocou as fibras ancestrais de um coração nordestino que eu não imaginava sequer ter tido, antes de encontrá-lo. A experiência desse encontro predestinado, foi tão forte que eis-me de volta depois de muito lutar, “escabrear” como diria um sertanejo, contra esse destino, ou simplesmente esse reencontro no sertão de nossas vidas, sob a égide mágica do Pavão Misterioso. Mas vocês, meus leitores, vão logo entender o que estou querendo dizer.
Ao descer do táxi na rua de São Bento, numa altura próxima do famoso mosteiro, com a mochila na mão e logo colocando-a nas costas como um andarilho ou peregrina, nitidamente forasteira, com minha alvura bandeirosa de sulista, ou melhor de descendente germânica, atraio os olhares ostensivos das janelas e alguns ocultos, que pressinto. Não estarão me reconhecendo? Sou Alma, já estive aqui há cinco anos e vocês já pareciam gostar de mim, por quê não saem para saudar-me? Ah! Deixem para lá, aí vem os meninos querendo contar a história de Olinda, aquela cantilena... Mas são outros! Aqueles que conheci já cresceram, sumiram? Mas... haverá sempre “meninos de Olinda”, pobrezinhos, e contadores da mesma história que lhes permite sobreviver...
Bato à porta do casarão colonial do Giuseppe, e quando a porta se abre caio nos braços de Fiora que grita de alegria, chamando o marido. Logo recebo o abraço espalhafatoso do italiano, que diz com aquele sotaque: “Belíssima! Ma stai belíssima, Alma. ‘Cosa fai per stare sempre cosi? Bah! Que patzo. Tu sei ancora giovanne !”
Logo Anunciada aparece, e eu a abraço percebendo que está com os olhos cheios de lágrimas. Olho-a bem, comovida que está, e beijo-lhe as faces molhadas, enquanto Fiora parece estranhar tanta deferência com a mucama. Minha amiga não sabe o que ocorreu há cinco anos, comigo, em relação ao irmão desta sertaneja, cujo acalanto ao Mateus desencadeou toda aquela saga em que me vi envolvida. Não pude deixar de pensar e buscar dentro de mim, as raízes profundas daqueles acontecimentos, e estou, na verdade, voltando pelo chamado dessa imagem fortíssima que está dentro de minha alma puxando-me para lá, para o sertão. Olinda é só um ponto de partida, onde colhi a ponta do fio da meada, para penetrar nesse labirinto, onde no centro está, não o Minotauro certamente, mas o Grande Pavão Misterioso, que assombra ou encanta tantas noites minhas desde então.
Depois de ser levada ao quarto de hóspede para me banhar e voltar à sala e à cozinha para tomarmos um lanche típico, eu sou instada a contar tudo o que vem me acontecendo em São Paulo que eu possa compartilhar com eles. Fiora agarra-se a mim, carente que está de uma amiga do “seu nível”, aqui nesta cidade que, na verdade, lhe continua estranha. Anunciada, eu reparo, fica ali num canto da cozinha, discretamente bebendo minhas palavras, mas olhando-me muito. Terá o seu irmão lhe contado o que se passou entre nós? É bem possível. Ela parece fascinada. Bem, ela já o era há cinco anos atrás, quando cantava o “boi da cara preta” para o Mateus com sua melodia castelã, diferente da do sul, que me encantou e me fez perceber que ela teria sido uma dama da corte... bem, mas vamos devagar, meus novos leitores, não quero assustá-los, não estou delirando ainda... embora pressinta que isso possa novamente acontecer aqui nessa terra auspiciosa, que me arrasta para domínios insuspeitados, que confesso, tanto me assustaram e... assustam ainda. Estará tudo aquilo na minha alma, ou na minha cabeça tão sugestionável? Ah! A facilidade com que me apaixono, e piro! Como posso confiar em mim mesma? Sou uma delirante, com minha alma de poeta, isso sim, com meu invencível entusiasmo pela beleza do mundo e das pessoas. De algumas pessoas, de tantas pessoas! O ser humano é grande! Ninguém me provará nunca o contrário, malgrado tanta miséria, tanta infelicidade... tanta crueldade! Mas, vejam: um único ser humano belo, no mundo, já seria prova de uma estirpe divina, e do potencial feliz de toda a humanidade. Deus quer assim: que encontremos o fio da meada do destino superior, no meio do labirinto humano, do Dédalo da Vida!

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De noite, depois dela cumprir as suas tarefas, chamo Anunciada ao meu quarto para conferir com ela estes cinco últimos anos, no que diz respeito a nós três, ela, seu irmão Josué e eu. Ela diz, emocionada, pausadamente:
—Ah! Dona Alma, meu irmão não a esqueceu! Ele parece que parou de viver. Está no ar, esperando descer há cinco anos. Ele não chora, não, não é isso. Parece adormecido, esperando, esperando... a senhora. Fizemos de tudo, pois pensávamos que a senhora nunca mais voltaria, para acordá-lo desse sono estranho. Ele trabalha como um sonâmbulo, e a única coisa que ele faz é desenhar um máquina em forma de pavão, uma engenhoca voadora, os planos todos forrando o quartinho dele em Recife, e na casa de meu pai, que morreu há dois anos, desgostoso com Josué. Eles brigavam muito, meu pai não se conformava. Sabe o que o velho dizia? “Josué seu cabeça dura, seu jegue, essa moça era uma princesa, era só olhá pra ela, não era pro teu bico. Tu és um bronco, chucro, que pensavas? Que ias ser príncipe no seu castelo? Lé com lé, cré com cré, nunca ouviste? Agora estás aí feito um farrapo humano, ou pior, feito um sonhadô ridíco.
Ofegante, eu perguntei nesse momento, à mucama:
—E aí, Anunciada, o que teu irmão respondia, podes dizer-me?
Ela hesitou, de olhos baixos, depois ergueu-os e revelou o coração e o segredo de seu irmão, de uma maneira que eu própria não esperava:
— Ele disse uma vez, uma única vez ele disse tudo, ele respondeu ao velho, de uma vez por todas: “Eu a tive nos braços, pai, ela foi minha! Eu a possuí até o seu leite e o seu mel escorrer em mim. Seu sangue, eu lambi para secar-lhes as feridas da caatinga, na sua pele de seda. Eu bebi o seu hálito perfumado, meu pai, eu fui ao céu. Eu voei com ela, no Pavão Misterioso, na minha alma. E ela... ela me amou, meu pai, ela voou comigo! Agora quero morrer!”
Não consegui reter um soluço. Ou um gemido. Deixei as lágrimas rolarem. Olhada com ternura, por Anunciada, que segurou-me a mão, eu disse:
—Anunciada, minha irmã, é verdade, é verdade, eu o amei, eu me entreguei ao seu irmão naquela caatinga áspera, no meio dos espinhos, sangrando, a primeira vez, depois por todo aquele sertão, de volta, até estarmos completamente loucos ou bêbados de paixão. Estávamos vivendo num sonho perigoso, delirante. Tive medo, sempre tive medo desde a primeira vez que o vi. Teu irmão ecoou dentro de mim, como se o conhecesse, de uma outra vida. Aliás, sei que foi isso mesmo! Já nos conhecêramos e por isso foi tão forte! Mas, eu não podia, eu não queria continuar com aquilo, tive medo de me perder naquele amor, no meio daquele pó, naquele sertão bruto. Tive medo de me embrutecer. Eu estava errada, eu sei. Eu iria talvez me elevar, não cair, mas eu sou fraca, tive medo, tudo em volta era tão rude! Mas, seu irmão, Anunciada, eu sei, ele não é rude, ele é... um príncipe guerreiro, couraçado de seu gibão, armado da cabeça aos pés, em sua alma. Ele foi o construtor do Pavão, eu acredito, outrora, a máquina de voar que assombrou este sertão. E eu voei com ele no Pavão, numa outra vida, eu quase me lembro, como certamente voltei a voar em seus braços. Anunciada, me perdoa por tanto sofrimento de teu irmão!
A mucama me abraçou, soluçando as duas, e assim ficamos muito tempo abraçadas, numa suave dor que nos irmanava em torno do infeliz Josué, que tivera a desgraça, como diria seu pai, de reencontrar esta princesa aqui, decaída.

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Naquela noite, como era de se esperar, fui assombrada por vagas visões em meu sono, com sensações um tanto eróticas, deliciosas. Mas o Pavão não fez a sua aparição no sonho, surpreendentemente. Entretanto, eu tive a sensação de estar sendo beijada nos lábios e tocada ali, em baixo, por mãos femininas. O que poderia ser? Eu mesma, minha Anima me provocando? Não sei responder. Acordei com uma dormência nos lábios, como naquela noite na rede, na casa do velho Malaquias, o pai de Anunciada e Josué. Só que agora esse formigamento estava ocorrendo ali, na minha vulva, também. Eu tinha a nítida impressão de que alguém real me beijara e me apalpara enquanto eu dormia. Guardei, no entanto, essa desconfiança para mim, no café da manhã, à mesa com Fiora e Giuseppe, para não parecer ridícula ou paranóica. Meu marchand italiano, dizia com uma mistura de línguas, no seu sotaque delicioso:
—Alma, vucê parece que teve sempre qüi, que non nos dexô há cinqüe anni. Non né, Fiora? Mangia, mangia, figlia. Dispois vucê vai me mostrá as obra que a fatto.
Ele se referia ao portfólio que eu trouxeram com as fotos de algumas das minhas obras destes cinco anos. Mas eu, na verdade, não estava ali, por isso. Aquilo se tornara secundário, e minha verdadeira motivação ao voltar à Olinda, era refazer o itinerário da trilha dos Menestréis, se é que isso era possível. Seria possível encontrar o fio da meada, tantos anos depois? A vida permite uma secunda chance? Em geral, não, eu sei. Mas meus sonhos tinham se intensificado em relação àquela experiência, depois de anos, e não o contrário, e me arrastaram para aqui. Agora, depois da revelação do sofrimento, da espera e das palavras de Josué, ao seu pai, reveladas por Anunciada, eu não poderia mais me furtar a um reencontro, desse no que desse. Não se faz amar e sonhar a alguém em vão... ou impunemente. Quem atravessa nossa própria trilha é porque estava no nosso destino escrito. Josué, pelo tanto que sofrera por mim, me merecia. Talvez eu é que não o merecesse, pois eu fora fraca ou covarde. Mas, por outro lado... também aquilo fora destino.
Naqueles dias, eu me senti em casa, junto de Fiora e Giuseppe, e brincando muito com o Mateus que estava com quase seis anos, e que me recebeu, como se me reconhecesse, criança adorável. Eu nunca esquecera de como Fiora o colocou cavalgando o meu ventre, como o ‘‘boy on a dolfin” ainda deitada na cama, ao despertar naquela manhã, há cinco anos atrás, em que fui chamada para encontrar Josué, na cozinha, quando me conheceu e confirmou o convite insinuado por Anunciada, para acompanhá-lo naquela expedição predestinada, em busca do Pavão. Mas agora, Fiora agarrava-se a mim, mais ainda (eu já sentira o seu apego naquela época). Ela sabia agora por quê eu voltara, e sentia que não tinha muito tempo, antes de... declarar-se. Sim, minha linda amiga, casada com o meu marchand, resolveu procurar-me na segunda noite de minha hospedagem. Tarde da noite, ela, hesitante, estranha, bateu na porta do meu quarto, e eu abrindo, abraçou-me imediatamente, suspirando e gemendo, dizendo:
—Alma, Alma, não agüento mais, eu amo você Alma, eu adoro você, deixe-me beijá-la Alma, há tanto tempo que quero fazer isso, minha linda. Dá-me, dá-me teus lábios, dá-me teu corpo, que não resisto mais. Eu sonho com você. Há anos, desde aquela época. Agora que você voltou quero ser sua, e que você seja minha, pelo menos uma noite, esta noite, Alma. Não me recuse! (ela dizia isso tudo, ofegante de emoção, agarrando-me e beijando-me sem parar).
Conduzia-a ao meu leito, ou foi ela que o fez, não sei bem, e deitei-me com ela por cima, deixando que ela me tivesse, que fizesse tudo o que quisesse comigo, pois uma paixão assim, merecia. Merecia tudo, meu corpo, e meus beijos, por uma noite ao menos, mas inesquecível! Assim deixei-a me despir, o que ela fez com afoiteza, com sofreguidão mesmo, e vendo-me nua, arregalou os olhos, dizendo:
—Alma, é inacreditável, você é linda demais! Sua pele é branca como alabastro, sem nenhuma mancha, marquinha, sem uma verruga, um defeito... uma pinta sequer! Isso não existe, não é possível, você nunca toma sol? Você vive à noite? Chega a dar medo... quem é você, Alma, qual é o seu segredo?
Ela me devorava de beijos, me lambia, e não tardou a descer lá embaixo, como eu previa, para sentir o meu cheiro, daquelas partes, isto é, da minha vulva, que ela naturalmente já encontrou ensopada, e do meu ânus, que felizmente estava bem lavado, até por dentro, hábito que eu adquirira depois de perceber que esse botão nas mulheres, rosado como o meu ou não, era, de longe, a preferência nacional, senão mundial, essa é que era a verdade, embora não necessariamente limpo, perfumado, lavadinho e enxaguado, assim. Por alguma misteriosa razão as pessoas o preferem sujo mesmo.
Fiora começou lamber-me atrás, e na frente, sugando em seguida o meu clitóris, e mordiscando-o, enquanto eu gemia, com um prazer imenso, que eu não imaginara antes, com essa italiana. Deixei-me abrir toda, enquanto ela levantava muito minhas pernas para expor-me toda, enquanto enfiava a língua nos meus dois buraquinhos, alternadamente. Então virou-me de bruços bruscamente, com força, e abriu minhas nádegas expondo-me aos olhos do... seu marido! Sim, Giuseppe entrara sem que eu percebesse, nu por baixo de um roupão, e com o pênis enorme em riste, que avistei, num relance, olhando para trás. Mas não me alarmei, nem muito menos saltei da cama como se podia esperar de uma situação assim, grotesca e inesperada. Eu sempre me entrego ao sabor das circunstâncias, adepta do Tao, que sou, deixo fluir! E assim fui empalada por trás por aquele imenso falo previamente lubrificado, eu bem notei (tudo fora premeditado por eles!), quente, viscoso, que provavelmente tanto sonhara com isso, durante anos. Fiora abrira minhas nádegas, e mantinha-as abertas para observar o pênis de seu marido entrando e saindo das minhas entranhas até que ele gozasse dentro, junto com seus próprios orgasmos múltiplos de surpreendente voyeuse.
Depois de uma hora de orgias indescritíveis, em que o italiano maduro revelou-se um atleta campeão, capaz de três orgasmos, revezando-nos em todas posições possíveis (algumas impossíveis), adormecemos todos juntos, enroscados, no leito enorme, de hóspede longamente aguardada, agora eu sabia.

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Acordei naquela manhã, sozinha no leito, lembrando-me dos lances da noite, do incrível ménage, e cheguei a pensar que tudo não passara de um sonho ou de um delírio. Teria aquilo tudo acontecido mesmo? Mas sentindo então as minhas partes e, pondo a mão e olhando-as, não tive mais dúvidas, eu estava dolorida, na frente e atrás, e cheia de resquícios. Levantei-me com dificuldade e caminhando quase penosamente, fui tomar uma ducha matinal. Depois vesti-me para descer à cozinha para o café da manhã com os meus ousados hospedeiros, que eu quase temia confrontar, por constrangimento... vergonha mesmo.
Ali, naquela maravilhosa cozinha, que parecia a de uma casa-grande colonial, em pleno século XVIII, restaurada que fora pelo marchand com esse propósito, encontrei-os me esperando, e me festejaram, desejando-me bom dia, com naturalidade. Digo festejando, porque Fiora, encantadoramente disse:
—Bom dia, querida, e seja bem vinda na sua primeira manhã nesta casa! Você dormiu bem?(ela sorriu) Desculpe-nos alguma coisa... Mas você vai gostar tanto daqui que não irá mais pro sertão, espero. Anunciada me contou os seus planos. Ah! desta vez, não, não a deixaremos ir! (o Giuseppe olhava-me sorrindo, e os dois pareciam ligeiramente irônicos ou maliciosos, mas com carinho real).
Um tanto envergonhada diante daqueles olhares, dos dois que pareciam percorrer meu corpo, rememorando-o, já que o conheceram tão bem, eu sorri, mas de olhos baixos, concentrando-me na organização do meu café, até que os ergui e os enfrentei com meus olhos verdes, mais firmes, assumidos. Fiora estremeceu, eu percebi, enquanto Giuseppe olhava intrigado para nós duas. Fiora levantou-se da sua cadeira do outro lado da mesa e veio até mim, agarrou-me o rosto e beijou-me os lábios, dizendo com firmeza e convicção:
—Não, Alma, você não irá embora desta casa. Não deixaremos, não é Giuseppe? Agora você é nossa, é nossa ouviu? Nem que tenhamos que pôr uma corrente no seu lindo tornozelo. O sertão! Você está louca, aquilo mata. E o Josué que não apareça por aqui, toco-lhe os cachorros em cima, já avisei a Anunciada.
Olhei bem Fiora nos olhos para ver se ela estava brincando, mas estremeci percebendo que seus olhos faiscavam! A italiana revelava-se, estava apaixonada por mim, e era possessiva, de uma maneira estranha, pois me compartilhara com seu marido, dera-me a ele, numa verdadeira armadilha. Tremi, então, naquele momento, percebendo que já era mesmo prisioneira deles. Levantei-me da mesa, voltei ao meu quarto e apanhei minha mochila. Passei por eles novamente, olhando-os desafiadoramente e dirigi-me para a porta. Mas ao torcer a maçaneta para abri-la, vi que estava trancada. Não consegui sair. Virei-me encostando minhas costas na porta, assustada:
—Que brincadeira é essa, Fiora, Giuseppe? Vocês estão brincando, não é? Deixem-me partir, eu lhes peço. Josué espera por mim! Faz cinco anos, estou atrasada!
Fiora, respondeu com um olhar triste, mas duro ao mesmo tempo:
—Não, Alma, você não partirá. Não antes de cessar esse impulso no qual se atirou, nesta vinda. Tens que ponderar muito, e conseguir convencer-nos mas não por argumentos, da sensatez do seu propósito, que nos parece insano. Nós já lhe conhecemos, Alma, é uma delirante, e temos de protegê-la de você mesma. O Pavão Misterioso! Está louca! Eles enfeitiçaram você com aqueles mitos do sertão. Quando voltou, a esta casa, há cinco anos atrás, retornando da sua “expedição do Pavão”, estava louca, delirou três dias no leito. Estava marcada de espinhos, e havia como que um no seu coração. Nós é que sabemos o que você passou, na sua alma, eu e o Giuseppe, não é, Beppe? Pensávamos que íamos perdê-la, sua razão vacilava numa estranha fronteira, de um sertão, sim de um sertão da sua cabeça. Não podemos deixá-la partir, para o seu bem!
Para o meu bem! Mais uma noite como a de ontem e eu morro! Virei-me novamente e forcei inutilmente a porta. Então escorreguei ao longo dela e sentei-me no chão, desolada. As lágrimas corriam em meu rosto e senti-me fraca, impotente. Realmente não poderia sair agora, assim... fui praticamente carregada de volta ao meu quarto, ao meu leito, por Fiora e Giuseppe, e minha amiga ficou longo tempo sobre mim, acariciando meu rosto e dando-me beijinhos, em lágrimas também. Voltei a adormecer, transformando num sonho o corpo de Fiora sobre mim, no corpo de Josué, possuindo-me com todas as dores dos espinhos da caatinga, sobre cuja noite infinita e estrelada, pairava o Pavão Misterioso.

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Naquela tarde, sem ter saído mais do meu quarto, recebi nova visita de Anunciada, um tanto furtiva, que olhando muito para trás em direção à porta que adentrara, disse-me:
—Dona Alma, eu não podia estar aqui. Dona Fiora me proibiu de me aproximar da senhora. Parece que a senhora é prisioneira dos meus patrões, não é? Olha, não posso nem avisar ao Josué que você está aqui, ele não tem telefone, e estou igualmente prisioneira. Como vai acabar isso, dona Alma, estou com medo. Nunca vi os meus patrões fazerem uma coisa assim. Parece que eles acham que a senhora está louca por pensar que ama meu irmão. Eles me interrogaram muito e proibiram-me de falar com a senhora!
—Anunciada, não tem um jeito de eu fugir pelos fundos, por uma outra porta que não pela rua de São Bento? Não conheço bem esta casa. Leve-me a uma saída pelos fundos.
—Não, dona Alma, aí é que tá o problema. A casa dá para a Ribeira na rua de baixo, mas é muito alta, o quintal tem um muro altíssimo e áspero, e a senhora é muito delicada para descer aquele muro, é muito arriscado. Se a senhora fosse uma moleca! Mas com essa pele, essas mãos finas e esses pés tão delicados, seria horrível. A senhora ficaria toda esfolada. Aliás, do jeito que senhora voltou do sertão. Também acho que o Josué não devia levá-la pro sertão, a senhora é uma princesa que nem toma sol, de tão branca. Aquilo ia acabar com a senhora!
Olhei o rosto puro de Anunciada, seus olhos límpidos de cabra, aqueles olhos sertanejos de pureza ímpar e aproximei meus lábios de sua boca cheia, saliente, desejável, e beijei-a. Ela pestanejou, surpresa, e logo uma lágrima assomou nos seu olhos, e ela pôs a mão no peito, dizendo ofegante:
—Dona Alma, não faz uma coisa dessa comigo, não passo de uma mucama, como você dizem, e chucra. A senhora é uma princesa! Não devia... fazer isso.
Passei-lhe uma vez mais a mão no seu rosto, sem responder-lhe. E ela se retirou, emocionada e confusa. Mas se eu tinha sido espontânea no meu carinho! Não tinha porque me recriminar a mim mesma, embora estivesse ainda com o gosto de seus lábios nos meus...
Eu sabia, no entanto, que eu lidava com outra cultura, com hábitos muito diferente dos meus. Eu estava no mundo... deles!

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Passei nos dois dias seguintes a trancar a porta do meu quarto por dentro, para evitar a visita noturna do casal. Creio que eu estava um tanto revoltada. Mas ao terceiro dia eles entraram e repetiram aquelas façanhas. Eu me senti fraca para resistir a mim mesma, pois os dois eram especialistas naquele ménage, essa é que era a verdade. Além disso, Fiora era um enigma, pois parecia autêntica em sua paixão por mim, embora me dividisse com o seu marido. E eu, vocês me conhecem, no fundo adoro a “sujeição voluntária”. Logo tornei-me a escrava sexual daquela dupla estranha que ao mesmo tempo era um casal tão normal, tão devotado ao filhinho. Mateus continuava brincando comigo, adorável, em meu colo, enquanto, ao mesmo tempo, eu sentia as dores e congestionamento nas minhas partes, como seqüelas das orgias da noite anterior.
Mas após uma semana daquela espécie estranha de prisão, eu já era prisioneira de minha própria sensualidade, um tanto mórbida, pois me deixava usar cada vez mais, de forma radical, chegando ao meu indefectível masoquismo. Era como se eu quisesse, no fundo, morrer por dissipação. E suave sofrimento... até o momento em que, uma noite, eu retirei da minha mochila, diante de Fiora, aquele rabo de tatu de couro cru, trançado, de meu avô, entregando-o a ela, surpresa, dizendo:
—Eis o instrumento da minha paixão, de todas as minhas paixões! Faça-me sofrer, mais do que já estou sofrendo. Dá-me minha dor, Fiora, já que és mesmo minha “carrasca” e feitora. Não sou tua prisioneira? Dá-me então a minha dor na carne, que já a tenho na alma!
Eu bem que percebi o meu próprio tom melodramático, mas aquilo expressava a essência do que eu estava vivendo, embora fosse tão patético. Eu sou assim! Desnudei-me, então diante dela.
Fiora, a princípio hesitante, de olhos arregalados, tomou a chibata em suas mãos e ergueu-a. Eu dei-lhe minhas costas e curvei-me um pouco, humildemente. Estremeci sentindo a primeira lambada nas minhas espáduas. Então, de repente, a porta se abriu e Giuseppe segurou o pulso de sua mulher, tomou-lhe o relho e retomou, ele mesmo, a tarefa. Com a violência de homem, com a força de um carrasco da Inquisição, enquanto eu gemia e chorava voluptuosamente, logo penetrada pelo imenso ferro em brasa do italiano com a ajuda prestimosa de sua assistente Fiora, rainha das sombras dos porões de Olinda, na minha imaginação incendiada.

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Fiquei vários dias de molho no meu quarto. A doce Anunciada vinha me tratar as costas e as nádegas, desolada, abanando a cabeça. Nessa tarefa ela era alternada pela própria Fiora, que torcendo o fatos transformou aquilo sutilmente numa punição cabida por uma suposta tentativa de fuga, esquecendo que fora idéia e iniciativa minha. Ela dizia:
—Está vendo, minha linda? Você não deve mais tentar sair daqui. Não vê que não tem o controle de si mesma, e se destruiria logo naquele sertão? Logo estaria apanhando do Josué, e com um relho de couro cru de cabra, que você não conhece, e que faz o rabo de tatu do seu avô parecer uma fita de seda. Ah! Minha linda, fica aqui conosco para sempre, que a amamos tanto. Venha, dê-me esses lábios que não posso olhar para eles sem querer beijá-los.
Deixei-me beijar, é claro, eu deixava tudo, certa de que meu destino não dependia mesmo de uma reação de minha parte e de que o que tivesse de acontecer aconteceria. Depois, eu estava tendo tanto prazer naquele sofrimento! Ao pensar nisso, lembrei-me do meu psicanalista em São Paulo, o doutor Platus, e quis ligar para ele. Implorei à Fiora:
—Fiora, deixa-me ligar interurbano para o meu psicanalista. Amorzinho, deixa-me falar com ele, pois estou muito confusa, e temo ficar louca. Ele segura um pouco a minha cabeça.
Fiora passou-me o telefone, mas ficou ali, ostensivamente me vigiando.
—Alô, Alô, doutor Platus? Sou eu a Alma. É... Estou em Olinda na casa de Fiora, de Giuseppe, meu marchand. Olha, não estou bem, não, tive uma recaída daquilo. Estou me maltratando muito, estou lanhada da cabeça aos pés! Quê? Isso não importa, doutor, tu sabes, sou eu mesma. Qualquer um é o instrumento. Ai, doutor, o quê é isso, hem? Por quê preciso sofrer, por quê preciso apanhar, se sei, sempre soube que sou inocente e... pura, não é doutor? Tu sempre me disseste que sou pura, a mulher mais pura que conheceste! Por quê doutor, porquê tu nunca conseguiste me explicar, desvendar esse enigma? Doutor, tenho que parar de querer sofrer! Eu vou morrer doutor, e as pessoas envolvidas não têm culpa, sou eu, doutor! Ah! Ajuda-me! Ajuda-me!
Nesse momento Fiora, interferiu, tirando o fone de minha mão, dirigindo-se ao doutor no outro lado da linha, mas olhando-me no fundo do olho:
—Doutor, doutor Platus, sou Fiora, a amiga da Alma, prazer... quero dizer, não nessas circunstâncias, mas olhe, ela está bem, é exagero dela. Estamos cuidando dela. O senhor a conhece, ela é melodramática, vive um perpétuo romance em sua cabeça, da qual ela é autora e protagonista. Eu sei, ela envolve a gente, e às vezes também não sabemos até se somos uma criação da mente dela, personagens do seu romance. É, o senhor conhece bem. Mas não se preocupe ela está bem, nós a amamos muito, e vamos cuidar dela. Só não queremos que ela volte para aquele sertão bruto ao encontro do Josué e daquele Pavão de sua imaginação. Sim, doutor, sei como é. O senhor não pode mandar a receita pelo correio? Sim, sim, o senhor tem o endereço? Ah! bom, a Alma deixou. Então está bem, nós controlaremos. Sim, vou passar-lhe o fone de volta, obrigada doutor, até logo.
—Doutor, que negócio é esse, eu percebi que o senhor vai mandar a receita do Prozac, não é? Mas eu não vou tomar, doutor, aquilo me deixa fora de mim, não sou eu mesma, com aquilo. Aí é que fico “alienada”, doutor, quero sofrer e parar de sofrer, estás me entendendo? Quero sofrer, doutor, quero apanhar na bunda, quero apanhar do meu pai, da minha mãe, de Rôdo, de Solange, de todos! Aaaaaaaaiiiiii !
Caí num imenso choro histérico, enquanto Fiora tirava o fone mais uma vez da minha mão, e encerrava a ligação dizendo: “Doutor. não se preocupe, vamos cuidar dela!”

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No silêncio do meu quarto naquela estranha situação de hóspede seqüestrada, como eu me acreditava, ou pelo menos como me sentia, eu resolvi parar para meditar no que ocorrera no referente a este encadeamento de circunstâncias relativas à minha procura do Pavão, de cinco anos atrás a esta data. Havia um sentido maior naquilo tudo, a começar com o meu encontro com Josué através do acalanto de “modo medieval” duma mucama que era a sua irmã e cuja letra me anunciara o Pavão Misterioso; depois, tudo o que ocorreu naquela expedição mágica, que produziu o envolvimento amoroso com Josué e minha descoberta de minhas reminiscências sertanejas, digamos assim, e que me levaram a um mundo que quase me enlouqueceu. Eu não conseguia lembrar direito do que ocorrera a partir de um certo ponto. Eu ficara doente, a esse ponto? Um apagamento? Fiora mencionou o estado em que cheguei de volta à Olinda, à casa deles, trazida por Josué (que imagino consternado, comigo nos braços) em pleno estado de delírio. Não consigo lembrar... O que realmente aconteceu comigo a partir daqueles momentos mágicos, quando toda ferida pelos espinhos me entreguei afinal ao desejo apoteótico(se posso dizer assim) de Josué, depois de me mostrar a sua versão do Pavão Misterioso, se bem me lembro, uma máquina real, material, o que não lhe tirava o mistério, pois aquelas ruínas eram contemporâneas de uma outra vida minha, supostamente. Ai! Eu quase enlouqueci. Mas parece que me envolvi com Josué muito mais do que me recordo. Há um lapso naquele episódio de minha passagem, com o irmão de Anunciada, pelo sertão, que não consigo lembrar. A revelação da mucama, daquela fala tão significativa de Josué ao seu pai, que revelava a profundidade do meu comprometimento, até certo ponto inconsciente, me comoveu a um nível de remorso profundo. Serei assim tão culpada? De quê? O que realmente vivi com Josué há cinco anos, de que me lembro apenas flagrantes, flashs de memória? Nem me refiro àquela vida anterior, de que tenho tanto medo.
Agora eu estava ali, prisioneira dos meus amigos italianos que me tratavam como uma louca, ou uma doente mental, no mínimo, mas ainda assim me possuíam às raias do aniquilamento, da sujeição erótica mais extrema, corroborando até mesmo o meu jogo sado-masoquista, essa é que é a verdade. Seriam eles hipócritas, ou aproveitadores, no caso de eu ser mesmo uma doente? Ai! Já não sabia mais nada! Estava ficando cada vez mais confusa, mas continuava convicta que a solução de tantos enigmas só seria possível com meu reencontro com o Josué, custasse o que custasse.
Num desses momentos de meditação, ouvi baterem à porta, e abrindo deixei entrar a querida Anunciada, que olhando-me com um olhar estranho,um tanto fixo, disse-me:
—Dona Alma, dona Fiora me disse que a senhora está doente, é verdade? Que a senhora vai se machucar muito se sair desta casa, o que é fácil de acreditar, pois a senhora é muito delicada para aquele sertão bruto onde quer embrenhar. Mas eu sei que a senhora tem ao menos que se encontrar com o Josué. Eu devo isso à ele, e à senhora também. Mas eu não podia ajeitar para ele encontrar a senhora aqui mesmo, nesta casa? Tenho tanto medo da senhora sair daqui de novo! Eu vi como a senhora voltou aqui, há cinco anos atrás. Todos nesta casa pensávamos que a senhora ia morrer, choramos muito. Mas era mais por causa das coisas que a senhora dizia no seu delírio. E como estava num abismo de tentação de morrer...
—O que eu dizia, Anunciada? Não me lembro de nada, e sofro até hoje por isso, por não lembrar... Conte-me, que coisas eu falava?
—Ah! Dona Alma, é difícil dizer, era uma espécie de poesia sem fim, de uma tristeza de amor que comovia a gente demais. Ninguém conseguia ouvir o delírio da senhora sem chorar. Era bonito e triste demais! Aquilo mexia com a gente lá no fundo, e a gente já não conseguia ser a mesma depois de ouvir. Dona Fiora dizia para mim, que era porque a senhora é poeta, e até doente fazia poesia. Mas era mais do que isso, eu sabia, era como se uma princesa estivesse dentro da senhora lembrando de um tempo passado, de um amor passado muito infeliz, e de uma... tragédia acontecida muito, muito tempo atrás, mas que estava acontecendo ainda dentro da senhora. Ai! Dona Alma, não quero nem lembrar, mas olhando ainda hoje a senhora vejo que tudo aquilo ainda está aí, dentro ( ela tocou o meu seio com a palma, na altura do meu coração. )
Com as palavras da Anunciada, fiquei comovida novamente comigo mesma, e isso me fazia sentir patética. Eu precisava sair do círculo vicioso das memórias e das especulações e agir, agir, ou eu morreria ali, estranha prisioneira que era uma espécie de cadela dos meus carcereiros que me devoravam viva para não deixar-me incendiar, morrer alhures, no solo real deste nordeste que não era ali, mas no sertão bruto, na caatinga de espinhos que chamava a minha alma. Eu disse:
—Anunciada, sim, arranja-me esse encontro com o Jeová, eu te peço, depois veremos. Sinto que diante do teu irmão eu saberei o que fazer.
Anunciada sorriu tristemente, pegou minha mão, levou-a aos lábios e retirou-se.
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Nos dias que se seguiram eu tentei me preservar, mas... não consegui. Fiora e Giuseppe me procuravam no quarto e mesmo em outros aposentos da casa, para me tocar e usufruírem do meu corpo, no qual pareciam estar fixados, ou melhor, viciados mesmo. Eu percebia a contradição entre os cuidados que eles protestavam pela minha saúde mental, e o ménage que eles estabeleceram comigo que nos levava a um desvario erótico que freqüentemente chegava ao derramamento do meu sangue. Eu tinha me tornado um objeto sexual, precioso, que eles desfrutavam com crescente possessividade, como era de se esperar, pois eu os deslumbrava com minha disponibilidade, e a capacidade de dar prazer, como uma iguaria rara, de gosto delicado, um tanto mórbido e perverso, por causa de minha tendência masoquista assumida, como vocês leitores já perceberam.
Eu só temia não sobreviver até a chegada de Josué, a quem eu esperava, para talvez retomar um caso amoroso, se isso fosse possível, para, no mínimo, curar o sentimento de culpa que me atormentava em relação a ele. Eu sentia que se ele demorasse eu me tornaria um farrapo psíquico nas mãos dos meus hospedeiros. Sim, porque surpreendentemente, no sentido físico, todos eram unânimes em dizer que a cada dia eu ficava mais bela, com a sensualidade à flor da pele, o olhar brilhante, os lábios túmidos, o corpo curvilíneo e o andar voluptuoso. Mas eu confesso que o meu maior prazer sempre foi o de ser desfrutada, fisicamente, sexualmente, eroticamente. Não faço segredo disso, e grande parte da minha obra versa sobre esse tema, que considero uma glória, a suprema glória das mulheres. “A mulher é o alimento corporal mais elevado”, escreveu André Breton, e eu concordo com ele, lisonjeada com sua frase. Eu mal consigo compreender o tom pejorativo que as mulheres do século retrasado e do começo do século passado davam ao termo “desfrutável” atribuído às chamadas “mulheres fáceis”. Bem... não sou pelo menos uma mulher “fácil” naquele sentido, mas sou desfrutável pelos meus eleitos, homens e mulheres que me atraiam por suas qualidades superiores, e que não tenham os atributos da vulgaridade, que é a única coisa que me horroriza no ser humano, e me causa repulsa. Não havendo vulgaridade, não há feiúra, e o ser humano está salvo.
Entretanto, o que às vezes me preocupava era a minha necessidade crescente de sofrimento físico, coisa que reconheço perigosa e que me desnorteava, pois me fazia um enigma para mim mesma. O doutor Platus acha que isso nasceu em mim na infância, naquele dia em que minha mãe pegou-nos, a mim e Rôdo, nuzinhos, deitados sob a nossa macieira, com as mãos nos nossos “passarinhos”, nos humilhando aos gritos, ao arrastar-nos pelos pulsos e até pelos cabelos na frente dos peões, no caminho até o casarão, obrigando-me a cobrir minha “conchinha” com a mão e Rôdo, o seu “pintinho”. Como bom junguiano, por outro lado, ele ressalta o caráter arquetípico dessa nossa experiência infantil, que continha em si a nítida configuração do mito de Adão e Eva, da inocência perdida, e da expulsão do paraíso. O pecado original recusado por mim, por rebeldia tinha se transformado em prazer no sofrimento, uma forma sutil de rebelião ou subversão. Sim, faz sentido, eu aceito essa explicação, mas essa compreensão racional não me livrou da síndrome que está em mim mais viva do que nunca nos últimos anos, e assustadora ou chocante mais para as outras pessoas do que para mim mesma, embora freqüentemente eu acorde deprimida depois de uma noite em que me exceda nas orgias masoquistas do meu lindo e pobre corpo quase martirizado. Desde que desenterrei de um velho baú aquele rabo-de-tatu do meu avô, tenho assustado muito os meus parceiros e até a mim mesma, com a necessidade crescente de dor. Não sei onde isso vai acabar. Pobre Josué... tua princesa está mais para uma escrava flagelada! Ou no mínimo, uma odalisca, o que combina mais com tua ave oriental, o Pavão...

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Na quinta noite de orgia, com meus hospedeiros, eu julguei que ia morrer. Fui açoitada por Fiora, nas costas, enquanto era empalada por Giuseppe. Além disso, minha amiga ordenhava meus lindos seios como tetas de uma vaca, causando-me dores ali também, e logo sugando-os de tal maneira que comecei a secretar uma espécie colostro sanguinolento. Comecei a me preocupar, de medo de perder minha beleza, de ficar feia. Pelo calibre desmesurado do pênis do italiano, eu comecei a ficar muito aberta, na frente e atrás, já não fechava mais, o que parecia instigar mais ainda a dupla, que queria me ver assim aberta e vazando, pois isso os deixava loucos de tesão... eis a verdade. Eu tinha que parar com aquilo, pois o prazer que eu sentia era mórbido, prenunciava a minha morte, eu senti, como naquele filme japonês “O império dos sentidos” Aquilo estava acontecendo comigo. Sempre fui extremada em tudo, e a mim mesmo me admira não ser uma drogada, fumante, jogadora ou bêbada. Talvez a minha adição seja mesmo só em relação ao sexo e ao amor. Talvez à literatura também. Escrevo cada vez mais, sempre sobre a minha vida, sobre cada lance das minhas relações emocionais e físicas.Sobre cada pensamento original ou não que me ocorra, desde que me pareçam interessantes, dignos de nota. E tenho consciência do meu gênio! Mulher-artista, eu expresso em palavras o que nunca uma mulher teve coragem de expressar na história da literatura mundial, essa é que é a verdade. As mulheres são muito covardes no terreno sexual; castradas mentalmente pelos homens, ao longo da história, só se permitem certas coisas como putas, na cama, mas nunca com as palavras em plenitude, em liberdade e pureza intrínsecas. São cheias de pudores ou de sentimento de culpa, escravas da visão machista dos homens, não se permitem jamais a plenitude do amor e do sexo, com os inúmeros parceiros possíveis de suas vidas, como eu, que amo com a mesma intensidade os homens e mulheres da minha vida. Tenho o mesmo tesão assumido pela vulva como pelo pênis em suas específicas belezas, e pelo ânus também, dos dois sexos, a começar pelo meu próprio, lindo, rosado e sensível ânus. Sou pan-sexual e pan-amorosa e creio na união de carne e espírito. Carne é espírito! Para mim, os que sobrepõem o espírito à carne, são os maiores hipócritas. Dito isso, volto a narrar o que estava acontecendo sem nenhum julgamento moral sobre mim mesma ou sobre meus parceiros, amigos, amantes ou... feitores, que me aprisionavam para o seu próprio e legítimo deleite. Eu os aceitava plenamente. O problema não era esse! Tratava–se de mim mesma, sempre, que devia saber parar, apenas para não morrer, ou ficar feia ou desgastada, para poder perseguir a prioridade espiritual do momento que era encontrar Josué para que ele me levasse ao Sertão de sua alma, onde eu veria a princesa que fui e que o amava tanto. Eu precisava conhecer o Pavão e desvendar enfim o seu Mistério, para guardá-lo em mim. Para sempre!


Um fim de tarde aconteceu algo que precipitou meu impulso de partir. Foi o seguinte: Ao crepúsculo, a cidade de Olinda se enchia de pequenos morcegos frugívoros em revoada sobre os sapotizeiros dos quintais, e freqüentemente atravessavam as casas em vôos rasantes sobre as pessoas, sem tocá-las, é claro, graças ao seu radar, saindo pela janela oposta. Mas nesse dia, quando eu saia do banho enrolada numa toalha, um desses morceguinhos, passou tão rente à minha cabeça que suas garras enroscaram-se nos meus cabelos e eu desesperada comecei a gritar, enlouquecida de terror e a debater-me atirando o animal ao chão, onde ele caiu atordoado de barriga para cima e pude ver o seu rosto que era o de um pequeno demônio de uma feúra sinistra , com grandes incisivos pontiagudos e afiadíssimos na frente, apesar de não ser hematófago. Eu deixara cair a toalha e, nua, mantinha-me aterrorizada olhando aquele semblante sinistro cujos olhinhos me pareceram vermelhos querendo dizer-me algo. Eu não percebi que continuava gritando e que urinara, de pé, de medo e descontrole, escorrendo por minhas coxas e meus pés, fazendo uma poça ao lado do animal. Então, fui abraçada por Fiora que chegou com Giuseppe e enquanto ele tratava de apanhar o animal, rindo-se de mim pelada como estava e urinada foi soltá-lo lá fora, ela tentava me acalmar, reconduzindo-me ao banheiro onde botou-me na banheira para lavar minhas coxas, dizendo:
–O que é isso?... princesa mijona, não precisa ter tanto medo, é só um morceguinho, não faz mal algum, vamos, deixe eu lavar esta “periquita”, que está toda molhada de xixi. Calma, minha linda, assim deixe-me lavar você( e passava a mão ali, e em todo o meu corpo, com sabonete, enquanto continuava dizendo):—Teus lindos cabelos dourados atraíram o ratinho voador! Olhe que eles não costumam enroscar-se nas pessoas! No máximo batem contra um vidro de uma janela fechada e caem ao chão, o que já é muito estranho, pois seu radar não costuma falhar. Mas... tudo com você é estranho, não é mesmo, princesa?
E eu, como uma menininha envergonhada, continuava sob a impressão daquele semblante demoníaco, e sugestionável como sou, tomei naquele momento a decisão definitiva de partir, de fugir daquela casa.
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Finalmente, Anunciada veio uma manhã ao meu quarto, bem cedo, dizendo estar tudo preparado para a minha fuga. Eu deveria acompanhá-la ao porão, por onde sairíamos por uma porta secreta para uma passagem escondida do jardim, que dava para uma escadinha que descendo ia desembocar num pequeno portão de madeira reforçado com ferro, que saia lá na rua de baixo, na Ribeira. Isso tudo datava do século XVIII, e era o portão das alcoviteiras e suas protegidas, moças de família, vigiadas, para seus encontros secretos, às vezes fatais, naquela época. Já naquela travessia da casa, sinistra em seu porão, e naquela passagem secreta do jardim, eu me senti no começo da minha aventura temerária, e meu coração batia disparado. Anunciada abriu o portão com uma imensa chave de ferro, enferrujada, antiga, de um enorme molho, um argolão. O portão foi aberto com dificuldade, imagino que pela primeira vez em cem anos. Saímos para a rua, caminhando um pouco, olhando para traz e para cima, para ver se éramos avistadas lá do alto das janelas superiores do casarão. Logo chegamos à esquina onde estava um táxi que me esperava para levar-me ao sertão, à casa de Josué, a antiga casa da família de Anunciada, de seu falecido pai Malaquias, que eu conhecera e admirara como sua hóspede por um dia e uma noite, há cinco anos atrás, quando tudo começara entre mim e Josué.
Eu estava preocupada com a Anunciada e disse-lhe:
–Núncia, querida, o que será de ti naquela casa? Não serás despedida pela minha fuga? Eles vão te dar um aperto e depois te despedirão. É do que tenho medo. Como farás, minha querida, para manteres o teu emprego?
—Não se preocupe, Dona Alma,—ela respondeu— pensei em tudo. Direi que a senhora fugiu sem minha ajuda. Eles quererão acreditar, pois não querem me perder, eu sei. Sou pau pra toda obra naquela casa há tantos anos, que não me despediriam nem por coisa mais grave. Além disso creio que dona Fiora e seu Giuseppe me têm afeto. Vai em paz dona Alma, e tome muito cuidado com a senhora, pois o sertão não é o Alto reino que a senhora pensa. Bem... é melhor que parta depressa...
A mucama estava com os olhos cheios de lágrimas e eu a abracei, agradecida e comovidamente.
Anunciada recomendou-me, mais uma vez, ao taxista, e dizendo que mantivesse segredo daquela corrida. O velho motorista, um sertanejo simpático, de vasto bigode branco, saudou-me e disse à Anunciada:
—Deixe comigo, Siá Núncia, que levarei esta princesa ao seu destino. Tô vendo agora por quê tanto mistério. É missão de alta responsabilidade, é só olhar pra moça pra ver. Abolete-se aí atrás, moça, deite-se no acento e durma se quiser, é até melhor pra não dar na vista na nossa saída da cidade, pra evitar os comentários. O povo daqui é muito falador, e logo iria me perguntar quem é a princesa. Adeus, Siá Núncia.
Partimos, e eu realmente me deitei, aceitando a sugestão de Seu Januário (esse era o nome do motorista), com receio de chamar atenção e ter depois alguém no meu encalço mandado por Fiora e Giuseppe, talvez eles próprios me perseguindo pessoalmente. Começou uma longa viagem, e só me ergui do banco, quando já estávamos bem longe de Olinda.
Não pedi para passar para o banco da frente, pois se quisesse descansar na longa viagem, realmente aceitaria a sugestão do seu Januário de tirar uns cochilos. Além disso, eu percebi que deveria fazer jus à alta conta que o velho fazia de mim pelo meu aspecto, mantendo a suposta hierarquia e deixando- me levar pelo “cocheiro” na minha ‘‘carruagem”. Seu Januário era falador e começou a contar uns casos compridos, sempre olhando para mim pelo espelhinho, e volta e meia fazendo homenagens à minha beleza. Ele estava morrendo de curiosidade, com a aparente falta de sentido daquela minha viagem, assim, secreta, a um sertão bruto, pois o destino que lhe deram não era nenhuma fazenda de coronel.
Olhei a paisagem durante muito tempo, encantada com a beleza verde da zona da Mata Pernambucana, e penetrando no agreste, rumo a Caruaru na fronteira do sertão bravo. Eu quis andar um pouco por aquela feira fantástica, deslumbrada pelo artesanato e as cores das comidas, frutas, verduras e condimentos, principalmente do colorau com seu vermelho peculiar e maravilhoso vibrando ao sol. Percebi também que os seguidores do grande Vitalino prosseguiam fazendo e vendendo as figurinhas idênticas às dele, que fizera escola, o que me parece muito válido, pois até os mestres renascentistas da Europa faziam discípulos e criavam escolas que os copiavam por mais quase meio século após suas mortes. Mas eu não tinha vontade de comprar nada, eu não era uma turista, embora chamasse muito a atenção ( logo tinha um bando de crianças me seguindo, querendo tocar em mim e segurar a minhas mãos). Eu estava ali a caminho de uma revelação, talvez de um amor... talvez mesmo de minha dissipação e morte. Sim, tudo era possível, e eu comecei a ficar ansiosa. Pedi logo ao meu amigo para retomarmos a estrada. Assim fizemos, e logo a paisagem começou a se tornar mais rude. Eu perguntei ao velho Januário:
—Por favor meu amigo, me conte o que sabe sobre Josué, o senhor o conhece, não é, como conhece sua irmã, a Anunciada, não é mesmo?
—Dona Alma—ele respondeu— eu fui amigo do pai deles, o velho Malaquias, a vida inteira. Eu lutei ao lado dele em mais de dez guerras do sertão. Fui jagunço como ele, a serviço do coronel Asclépio, e vi ele ser baleado na perna numa peleja de noite, num milharal disputado com o coronel Ludugero e seus jagunços. Esse ferimento deixou ele coxo pro resto da vida. Ele foi salvo pelo seu cumpadre Esequiel, que se tornou um cantador e repentista da gota serena, um dos melhores deste sertão, e que ainda está por aí, cantando no mundão desse povo. Numa outra peleja eu o vi perder a vista direita e ficar com aquele buraco e a cicatriz de dar medo. Mas ele não perdeu o entusiasmo da vida, senão no finzinho, justamente pelo Josué que ficou triste e meio louco e empurrou seu pai pro abismo antes dele mesmo. O rapaz está há cinco anos às voltas cons uns desenhos, uns planos de uma máquina de voar, que parece mais um passarão maluco, que não voa e que o está botando cada vez mais louco. Parece também que houve alguma coisa, que o marcou demais, um amor que começo a perceber do que se trata. Então me permita perguntar, dona Alma: é a senhora, não é, que deixou o pobre rapaz desse jeito? Olhe não quero me meter e nem lhe criticar, mas foi só olhar pra senhora e já entendi tudo. O seu rosto vai lançar aquilo no ar, pois acho que poderia lançar mil avejões como aquele, até numa guerra nos ares, é o que acho, agora que vi a senhora. Posso entender o pobre Josué. É a senhora, não é? que partiu o seu coração e que ainda faz ele bater...
—Seu Januário—eu respondi—Eu não sabia, todos estes anos, o que acontecia aqui com o Josué. Eu fui deixada por ele mesmo, na casa dos meus hospedeiros, os patrões da Anunciada, doente, quase fora de mim. Então, sem memória do acontecido, eu voltei para São Paulo e depois para minha terra bem mais ao sul, no rio Grande. Eu não sabia... mas foi o seu sofrimento, ou o seu amor que me chamou, agora , cinco anos depois. Pode bem ser que ele conseguiu fazer a máquina voar. Ele pode ter terminado a máquina, com sucesso, e isso me chamou, isso me ocorreu nestes últimos dias... o senhor sabe de alguma coisa, seu Januário?
O taxista de certa forma desconversou, pois não respondeu a pergunta. Em compensação, saiu-se com essa tirada:
—Ó Xente, Dona Alma, essa estória é digna de um cordel. Ah! Se eu fosse poeta, ou cantador! Isso dá folheto, do bom. Acho até que vai dar, pois o povo pega no ar uma boa estória dessa acontecendo. Mas olhe, dona Alma, eu quero estar nesse cordel, com meu táxi, correndo esse sertão carregando a princesa, não é não? Levando ela pro seu amor. Ah! Eu também vou entrar nessa estória arretada!
Dei uma grande gargalhada, O seu Januário estava me devolvendo a alegria da leveza.

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Capítulo segundo

O hangar de Josué

Depois de muitas horas de viagem, comecei a ficar sonolenta, deitei-me atrás, no banco, e adormeci sonhando coisas vagas de que não me lembro. Até que ouvi a voz do seu Januário no meu sonho, chamando-me no meio de uma caatinga enevoada, de poeira. Acordei e levantei-me sentando-me e olhando para frente, vendo aquela casa aproximar-se, a casa que eu reconhecia como de um sonho, de outra época. Mas percebi que atrás dela havia uma espécie de galpão muito maior que a casa, e mais alto, que nunca estivera ali. Desci enquanto o seu Januário fechava o carro, os vidros, tudo antes de descer, providencia inútil naquele fim de mundo, frente àquela casinha, perdida na planura sem fim, sob uma jaqueira, de cujos galhos eu notei que pendiam panos e trastes, insolitamente. Fiquei ali parada em frente à casa esperando, e eis que de trás dela, vindo daquele galpão talvez, apareceu... Josué! Reconheci-o imediatamente, embora ostentasse uma barba e bigode muito negros e os cabelos revoltos, encaracolados, dando-lhe um aspecto de eremita, ou homem santo do sertão, ou mesmo de um peregrino fanático. Seus olhos brilhavam com um estranho fogo, e ele ficou ali parado, em frente à casa. Então, sentindo em mim, um impulso, de reconhecimento pleno, corri para ele e o abracei. Ele custou a enlaçar-me, como se não acreditasse na minha materialidade, como se eu pudesse ser... uma tentação do seu prolongado delírio. Olhei seus olhos negros onde lágrimas corriam afinal, lágrimas de reconhecimento, e ele então ergueu-me do solo, com aquela força incrível, de cabra do sertão, que eu tão bem conhecia, e carregou-me nos braços para dentro de sua casa, da casa de seu pai, do velho Malaquias, que morrera sem acreditar no meu retorno.


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Acordei muitas horas depois, ainda nos braços de Josué, mas nua, e no seu leito, que eu não pensava haver naquela casa, em que eu dormira em rede e sozinha, por uma única noite na casa repleta de outras redes, amarradas nas pilastras próprias, que brotavam do chão como stalagmites de uma caverna, e onde dormiram os “menestréis”, quero dizer, os violeiros cantadores, naquela nossa posada aqui, há cinco anos. Mas naquele tempo esta casa era cheia de irmãos e irmãs de Josué. Onde estavam eles? A casa estava vazia, e tomada pelos planos do Pavão, como uma espécie de ateliê primitivo, onde se viam também peças mecânicas jogadas, aqui e ali. Nua, eu andei pela casa, acompanhada por Josué, que, deslumbrado, tudo me mostrava, falando atropeladamente de seus planos. Ele dizia:
—Alma, não acredito que você está aqui, minha princesa! Olhe, o quanto eu sonhei e trabalhei! Veja isto... é um protótipo, uma miniatura (ele me mostrava um pavãozinho de madeira, uma maquete adorável, completa, pintada, com seu mastro e suas bandeirolas coloridas de São João, e no topo, a flâmula minúscula). Alma, quero lhe mostrar algo que você não esperaria. Venha, venha comigo já, assim mesmo, não precisa vestir-se, não há ninguém por aqui, estamos no meio do deserto, todos se afastaram de mim, graças ao Pavão. Venha!
Saímos de mãos dadas, como duas crianças da natureza, perdidos no paraíso deserto, na caatinga primordial do Éden. Andamos mais passos do que eu esperava, assim, pelados, até entrarmos pelo grande portal de madeira, de que ele abriu o cadeado sem chave que pendia de uma corrente e empurrou a grande porta de madeira. Dentro estava, enorme, me pareceu, o Pavão Misterioso! A grande nave com seu alto mastro, com as bandeirolas presas nos tirantes que partiam nas quatro direções, uma sustentando a proa, a cabeça coroada do pavão e seu pescoço azul e verde escamado, onde se viam pintadas as palavras “Alma do Sertão”. Outros tirantes sustentavam a cauda, e as pontas das duas asas. As rodas dianteiras tinham pára-lamas no feitio das garras do pavão, ou seus pés, melhor dizendo. Todo ele era pintado nas cores irisadas do pavão, mas a cauda era uma obra-prima de realismo primitivo, com os olhos das penas pintados um a um, às centenas, com aquelas cores de asa de borboleta, azul, dourado e verde. Era alucinante! Meu Josué era um artista! E eu o abracei muito, beijando-o tanto, que senti o seu falo erguer-se novamente entre minhas coxas, alojando-se ao longo do meu períneo, como um ninho provisório que me enterneceu. Então ali mesmo eu quis ser uma vez mais possuída, sim, dentro daquela barcaça voadora quer ela decolasse ou não. Eu faria decolar o meu amor, nós decolaríamos dentro dela, a nave delirante que nos unira, não importando para mim que ela mesma jamais saísse do chão da caatinga, nós voaríamos... já estávamos voando! Já estávamos voando!

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Josué considerava o Pavão pronto e capaz de alçar vôo. Percebi isso quando acordei, nua, deitada sobre uma manta grosseira, no fundo da barcaça da nave e senti que ela estava se deslocando. Levantei-me quase assustada e vi que o Josué a estava rebocando com uma corda amarrada ao pára-choque de sua caminhonete, arrastando-a para fora do hangar, pelo imenso portão aberto, que, tirando-me da penumbra, deslumbrou-me dolorosamente com o brilho quase insuportável do céu da caatinga. Com meus olhos verdes claros ofuscados, eu cobri o rosto com os braços e gritei-lhe de dentro da barcaça:
–Josué, que fazes, vais carregar-me contigo, iremos voar? Não estou pronta, Josué!
Josué parou a perua distante uns trinta metros do galpão, e descendo(ele já estava vestido), correu para dentro da casa e voltou com a minha mochila, que atirou-me dizendo:
—Vista-se, Alma, porque vamos voar, afinal, e é agora mesmo!
Retirei meu vestido comprido, indiano, fino, estampado, belíssimo, que trago em minha mochila para ocasiões especiais. Mas antes de vesti-lo, protestei:
—Josué, preciso lavar-me, e escovar os dentes, pentear-me. Não posso sair voando assim, estou suja, quero dizer... preciso fazer xixi e tudo o mais.
Josué fez uma cara de atrapalhado e sacudiu a cabeça concordando:
—Claro, claro, Alma. Mas vá logo. Olhe, não temos água quente, não temos luxo, mas aqui é muito quente, você não sentirá falta. A água é de poço. Vou encher com um balde a caixa do chuveiro. Vamos lá.
Josué providenciou um pequeno balde cheio d’água, e eu percebi que teria só aquela quantidade para o meu banho, que seria um banho de gata. Difícil foi lavar-me por entro, agachada naquele banheirinho precário, de cimento áspero, cheio de limo, que não tinha um bidê para as minhas abluções íntimas. Mas eu não me importei muito, na verdade, com tanta falta de conforto. Eu estava, afinal, vivendo uma aventura, e devia estar preparada para tudo. Logo estava refrescada e razoavelmente limpa, colocando o vestido pela cabeça, calçando umas sandálias e passando um pente grosso nos cabelos molhados. Josué fez um ar de aprovação, mais do que isso, na verdade, de deslumbramento com meu aspecto e novamente abraçou-me e rodou-me no ar. Depois, agarrou-me a mão e fez-me correr com ele em direção à nave, onde subiu, estendendo-me o braço, puxou-me pela mão para cima, para colocar-me dentro, ao seu lado, nos comandos. Mas logo foi até a hélice, que ficava atrás do motor que emergia da parte traseira da nave, dentro do limite da própria barcaça. Ali, deu vários impulsos com as duas mãos na hélice, botando nisso todo o peso de seu torso, enquanto gritava instruindo-me para ligar e acelerar o motor, que por sua vez, assim que pegou, diminuiu o seu rumor, pois Josué na verdade inventara um maravilhoso motor silencioso, movido à água. O segredo desse mecanismo nunca seria conhecido da humanidade, ele me garantiu, pois devia ser um segredo inerente ao Pavão. Não concordei interiormente com aquele raciocínio, pois sempre achei que se um inventor descobre algo que pode ajudar a humanidade, ou facilitar a vida das pessoas, tem o dever de abrir mão do segredo de seu invento, e divulgá-lo ao máximo para que se torne de domínio público, desde que não tenha contra-indicações, claro, como aconteceu com a energia atômica. Mas Josué me explicaria mais tarde que o seu invento tinha realmente implicações perigosíssimas se caísse em mãos erradas. Em breve eu iria perceber o quanto isso era verdade, e o quanto nós iríamos ainda sofrer juntos pelo Pavão.
Entretanto, naquele momento estávamos nos deslocando cada vez mais rápido, ainda no solo, na planície de chão rachado de sol, que me fazia pensar na superfície craquelée de um quadro antigo pardacento, de onde decolaríamos para um vôo de sonho, atemporal. Sim, na verdade estava acontecendo, embora eu pensasse naquilo ainda como uma fantasia minha. Nós estávamos alçando um vôo improvável, com aquele avejão fantástico, com seu mastro e bandeirolas tremulando ao vento e com sua comprida flâmula vermelha com os signos da lua e do sol estampados, no topo do mastro.Com nossos cabelos ao vento, pois não tínhamos capacetes ou óculos especiais, tudo parecia improvisado, mas na verdade, percebi, que Josué pensara no essencial, pois havia farta provisão de água em odres de couro, e bastante carne seca, farinha, e rapadura. Abraçada a Josué entreguei-me ao deslumbramento daquele vôo magnífico, subindo, subindo acima das ralas nuvens, avaras, que não cediam suas gotas há muito tempo àquele sertão seco. Mas eu notei que por onde o pavão passava, as nuvens se adensavam rapidamente e ficavam pesadas, começando a derramar fartamente a carga, quando Josué tocava uma espécie de trombeta na proa do pavão. Curiosa, perguntei ao Josué, como ele conseguia aquilo. E ele respondeu-me, com um tom mais científico e menos messiânico na voz, que da primeira vez:
—Alma, essa é a trombeta do Pavão, que faz cair o muro das águas de Jericó, que é nome antigo deste Raso. Não haverá mais Seca, pois o segredo está nas emanações do escapamento do motor, que ionisam as nuvens condensando-as, para, com as vibrações especiais da trombeta desabarem sob o chão carente. Você verá, Alma, vamos tornar tudo verde, e o povo irá reverenciar o pavão e logo a você, a quem devo a inspiração.
Ao ouvir aquilo arrepiei-me lembrando-me de suas palavras semelhantes embora noutro tom, nada científico, há cinco anos atrás, pouco antes de ter-me em seus braços, crivada de espinhos e em dores, no meio das catingueiras cruéis, quando acreditei-o delirante, louco, embora irresistível. Agora estávamos vivendo a sua profecia, e isso era incrível, tanto mais que sentia que ela era muito mais antiga, e remontava a uma época que ressoava dentro de minha alma como um eco longínquo, de uma perturbadora memória...

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Retornamos ao hangar e à casa, depois de um vôo magnífico, cujas imagens ficarão para sempre nas minhas retinas. Eu vira o sertão de Jericó e de Josué, de cima, fazendo desabar as nuvens e vendo o solo reverdecer quase que instantaneamente, conforme me parecia, ajudada pela imaginação. Eu percebia, lá de cima, o povo correndo e apontando com o dedo o grande pássaro que éramos aos seus olhos deslumbrados. Somente me causou estranheza e logo terror, o povo de uma fazenda sobre a qual sobrevoamos, que se pôs a atirar no pavão, ou em nós mesmos, pondo-nos em perigo, com as balas de espingardas e revólveres zunindo perto de nós e furando aqui e ali as asas do nosso aparelho, e causando-me grande susto. Percebi, também que Josué parecia estar provocando aquela gente, pois dava voltas para sobrevoar novamente o perigo, dando altas gargalhadas, como se quisesse afrontá-los. Fiquei furiosa com Josué e agarrei o timão (não era um manche) e fiz a nave subir e afastar-se daquele imenso perigo. Que significava aquilo? Eu iria cobrar de Josué uma explicação, pois ele nos pusera em perigo de morte, gratuitamente, por brincadeira, ou afronta a um poderoso do lugar, enciumado talvez com aquele aparelho. Eu não poderia imaginar naquele momento, quão perto da verdade eu estava ao deduzir isso.
Quando aterrissamos, eu estava com um olhar furioso, por ele ter estragado o passeio com aquela brincadeira perigosa, de mau gosto, e Josué, então envergonhado, começou a justificar-se:
—Perdoe-me, princesa, perdoe-me! Eu realmente me excedi, eu jamais deveria ter feito aquilo, foi realmente arriscado, poderíamos ter sido atingidos, e caído. Mas não acontecerá mais, eu lhe prometo. É que... bem, há coisas de que você não se lembra, estou vendo. Não reconheceu nossos inimigos?
Estremeci com aquela pergunta. Inimigos? Eu pensava que não tinha mais inimigos; que na verdade, os primeiros e últimos que tive estavam mortos, que foram minha irmã Solange e meu cunhado Geraldo, como contei no meu romance anterior “A Herança”. Que estória era aquela, de inimigos, que queriam nos matar assim, abertamente, a tiros?
Josué abraçou-me, tentando me acalmar, fazendo-me carinhos, para eu amansar, e realmente amoleci, fui ficando molinha, e logo estava ele me carregando literalmente no colo, para dentro da casa para jogar-me na cama. Em segundos eu o tinha novamente dentro de mim, navegando, navegando. Mas num certo momento, diante de tanto navegar, eu quase gritando em seu ouvido, disse-lhe:
—Josué, tu quase me mataste, faça-me sofrer para eu sentir-me mais viva do que nunca! Toma-me, Josué, com força, possua-me por trás, como já o fizeste uma vez em plena caatinga, há cinco anos, se bem me lembro! Enche-me do teu sumo branco, e... açoita-me com isto aqui (estiquei o braço e retirei da minha mochila o rabo de tatu, que entreguei a Josué, estupefato, que certamente não esperava uma coisa dessas de sua princesa).
—Alma, o que é isso? (ele arregalou os olhos)—Princesa, bater em você, com isto? Eu, não posso... não devo! Você é a princesa do Pavão, não uma escrava!
—Josué, faça-me sofrer, eu te ordeno, bata-me ou eu vou pirar de... entusiasmo de viver, de amor, de paixão pela vida, por ti, por este Sertão! Açoita-me, açoita-me, faça-me sangrar, e então me possua, sangrando, como naquele dia eu sangrava dos espinhos da caatinga, e tu não hesitaste em ter-me, chorando e sofrendo em tuas mãos. Faça-o agora!
Josué então empunhou a chibata de meu avô, virou-me de costas e com uma certa exasperação de quem se violenta inicialmente a si próprio, começou a fustigar-me, enquanto eu ria e chorava ao mesmo tempo, e dobrando-me oferecia-me, aberta aos seus olhos, antes que ele me penetrasse, cruelmente, afinal, até o seu grande membro fremente cobrir-se do sangue rubro de sua princesa desterrada, decaída, submissa... feliz.

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Levantei-me da cama, tarde da noite, deixando Josué adormecido ressonando, depois de observá-lo nu, ao clarão do luar que entrava pela janela aberta, na noite escaldante, e saí para o terreiro sem fim, da casa, que era a própria caatinga, sob um céu estrelado como o do meu pampa ao luar. Comecei a caminhar em torno da casa, nua como estava, e com as costas e nádegas ardendo das chibatadas de Josué. Comecei a chorar, pois tive uma súbita vergonha do meu procedimento, misturada a uma saudade enorme de meu pai, e até de minha mãe, que esta sim, usara esse expediente com uma vara de marmelo, para me refrear, tanto quanto para me punir, na minha infância. Mas lembro-me que minha mãe não batia forte, como se não quisesse marcar a minha pele de seda (como ela mesma dizia) pois era mais uma surra moral, que ela pretendia, pois ela tinha imenso temor de que eu me tornasse uma prostituta, não sei por quê. Creio que ela confundia a minha sensualidade com... putaria, com o perdão da má palavra. Mas, eu, graças aos deuses, nunca tive dúvidas da pureza dos meus sentimentos, emoções e impulsos, e só estou começando a me envergonhar agora, de ter tanto gozo em sofrer... fisicamente. Gosto, gosto de ser manipulada fisicamente, de maneira dolorosa, de ser penetrada por homens e mesmo por mulheres, e... acabei perdendo minha Aline por isso. Ela pegou “nosso” filho o pequeno Marco, e deixou-me um dia, dizendo: “Alma, você é doente e não quer tratar-se, você quer que eu lhe bata cada vez mais e faça coisas horríveis com você! Não o farei, pois isso me faz mal, a mim, e acho que a você também. Aonde isso vai parar? Na morte, sua doida! Por isso, adeus! Não serei a sua carrasca, que é o que você está procurando. Vá procurar o doutor Platus, antes que seja tarde! Eu a amo, mas... não posso mais. Não quero mais vê-la, pois me faz sofrer... Adeus!
Ai, Aline que sabes tu, da vida, e do coração profundo, do “coração selvagem” como disse Clarisse Lispector, segundo o entendo? Não sabes Aline que o doutor Platus, a pretexto de “ancorar-me na matéria”, pois a minha estava tão rarefeita, que eu andava sumida, penetrou-me o ânus com seu grande pênis bem intencionado, enquanto fazíamos uma regressão induzida, para reconstituir o estupro que eu sofrera na infância, naquela fazenda mineira, por um primo adulto e enorme, dentro de um paiol de milho? Não, não imaginas a loucura do mundo, mesmo tendo vivido com esta “doida aqui” que tanto te alarmou. Ah! Aline se tivesses voltado para mim, talvez eu hoje não estaria assim sangrando a cada relação, cada “coito” para falar cruamente. Mas talvez, reconheço, eu já teria pedido para morrer, feliz, em êxtase de gozo, nas tuas belas mãos!
Parada ali, sob o luar, em profunda solidão apesar de estar amando, no meio daquela planura maravilhosa eu tive a nítida consciência da singularidade do meu destino de princesa de meu pai, de Rôdo meu irmão amado, de Aline, minha modelo nua e amante; do Doutor Platus, que também me amava, eu sabia pela invasão que fiz do meu prontuário, e depois por sua confissão de viva voz; de Laís, namorada de meu irmão e minha, de todos que me amam e me amaram, eu sei que antes de tudo pela minha beleza, o que sempre considerei válido porque nunca fui hipócrita. Que melhor razão para se amar, já que vivemos no mundo da matéria, nas nossas inúmeras vidas? E porque outra razão então a beleza seria tão venerada, no nosso mundo? O rosto de Helena “lançou ao mar mil navios”, a beleza mobiliza, inspira e provoca o amor, embora se diga que “quem ama o feio”... mas vejam: “bonito lhe aparece”. Sempre a beleza, começo ou fim de tudo.
Ali de pé, sentindo uma volúpia imensa de estar nua no meio de uma chapada que era para mim o Sertão “todos os sertões” do meu país, eu tive a idéia de urinar de pé deixando-me escorrer, pelas minhas compridas e brancas pernas iluminadas pela lua. Mas eu não me enxugaria, não me lavaria, e voltaria assim para o leito, para o meu amor, querendo ser obscena, se possível, coisa que nunca pude, por não ser da minha natureza, misteriosamente. Mas eu queria, naquele momento, confesso, que meu amor me pedisse para ver-me urinando, ou mesmo que eu o fizesse sobre ele. Por outro lado eu sabia que isso era uma questão de tempo. Que homem resiste à urina de uma mulher, da mulher amada? Eu queria o amor total!

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No terceiro dia, bem cedo acordei sacudida na cama por Josué, que falando baixo e aflito, dizia:
—Alma, Alma, acorde, vista-se e vamos pelos fundos, aí vem eles!
—Quem, quem, Josué, quem vem aí?
—Os inimigos, Alma, depressa, depressa!
Saímos correndo pelos fundos, eu só conseguira calçar as sandálias, e corria nua, com o vestido na mão.Olhei para trás, apavorada, e vi os jagunços com seus gibões e chapéu de couro, com os rifles na mão que já invadiam a casa, atirando para cima. Entramos no galpão e subimos na nave, que Josué ligou imediatamente, saindo pelo portão, de maneira acelerada, com uma rapidez que eu não acreditaria possível, quando os jagunços já cercavam o galpão e vários deles apontavam seus rifles à nossa frente. Mas Josué acelerou empinando a proa do Pavão e subiu, por cima das cabeças deles que tiveram que abaixar-se. Desta vez eles não atiraram em nós, e eu imaginei porquê. Eles já sabiam quem eu era, e foram proibidos de atirar. Eles me queriam viva! Como eu sabia disso? Eu ainda não sabia responder a essa pergunta feita a mim mesma. Mas eu estava aliviada de Josué ter escapado, pois era possível que a ele quisessem morto, a menos que... é isso! Eles queriam o Pavão também. Claro, tratava-se de um segredo científico, que conferia poder, a quem o detivesse. Mais poder! Não é sempre assim, nos trillers? Mas já nos distanciávamos, quando olhei para trás e para baixo, vendo as chamas devorarem a casinha de Josué, a nossa casinha, e também o hangar. Dei um grito de dor. A casa onde fui feliz por três dias, contando com aquela posada, há cinco anos, hóspede de Malaquias, o pai de Josué, a quem eu já considerava meu falecido sogro sertanejo. A dor foi enorme, como uma perda incompreensível. Mas voávamos com grande rapidez por cima da caatinga, e Josué não estava preocupado em fazer chover. Ele disse, gritando, embora o motor fosse silencioso:
—Princesa, vamos para Serra Talhada. Lá sou amigo do rei!
Ele sorria, como se tudo aquilo fosse previsto e não se importasse nem um pouco com a perda de sua casa e de seu hangar. E eu não deixei de admirá-lo, pois um homem desprendido e aventureiro merecia esta princesa, que eu era, em meu enorme orgulho e sujeição, que era o verdadeiro mistério de tudo aquilo, de toda aquela saga em que eu estava imersa, sob a égide do Pavão Misterioso.

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Capítulo Terceiro

O rei da Serra Talhada

Voamos muito tempo sobre o chapadão rumo à Serra Talhada, no sertão de Pernambuco. Josué enlaçava minha cintura, e o vento batia em nossos rostos e cabelos, mas como uma brisa tépida, agradável. Foram momentos inesquecíveis de beleza, tanto mais que Josué colocou a máquina num inacreditável piloto automático, baseado num sistema de uma simplicidade alucinante, para poder deitar-se comigo no fundo da barcaça e possuir-me em três ou quatro posições durante a maior parte do percurso. Pouco antes de sobrevoarmos a Serra, Josué estava possuindo-me por trás, com grande excitação e afoiteza (com o lubrificante natural de clara de ovo, que aprendi a duras penas, às custas do meu primeiro estupro anal, na infância), quando começaram os relâmpagos e trovões e o céu ficou negro em pleno dia. Foi uma sensação de grande medo, terror mesmo, que me acometeu quando atravessávamos a tempestade elétrica no momento em que o meu amado estava todo dentro de mim... atrás, e eu me contraí muito, apertando-o a um ponto em que ele também gritou e teve dificuldade de sair, isto é, desenganchar-se. Conto isso, pois foi um momento “constrangedor”, que não esqueceríamos nunca mais, apesar de produzir muitas risadas em minhas lembranças “posteriores”... digo, futuras.
O céu se abrira, e víamos a Serra de cima, com todos os detalhes de sua topografia, e Josué parecia procurar algo, um porto de pouso, afinal ele disse, o que estranhei muito até que movimentando uma alavanca, ele fez o motor todo erguer-se, por um mecanismo engenhoso que pôs a hélice na horizontal como um helicóptero, fazendo o pavão descer verticalmente, suavemente, sobre uma pequena plataforma, que eu mal distinguira, ali no acidentado cume da Serra. Eu estava perplexa, apesar de muita dor no traseiro. Josué recomendou-me que pusesse o vestido, pois logo seríamos abordados. Mas, por quem?
Parados ao lado da nave esperamos ser contatados, e minha expectativa era enorme, sentindo que estávamos cercados sem que eu avistasse ninguém no meio daquela bruma de altitude, que nos envolvia. Confesso que também estava preocupada com a dor no meu traseiro, e com fato de me sentir muito aberta, e vulnerável, e ainda por estar sem calcinha. Por quê sou assim, uma fêmea, afinal de contas, tão desfrutável, tão acessível à intrusão, em minha vida? Creio que a resposta está no meu próprio nome, que forjou o meu destino. Não sei se me faço entender.
Logo vimos uma multidão sair da bruma, aproximando-se, e divisei os rostos de homens rudes, mulheres e crianças com o semblante marcado pelas privações, mas estranhamente serenos, os olhares entre vagos e fixos, típicos dos visionários. Na frente vinha o líder perfeitamente distinguível, pois tinha o aspecto de um messias sertanejo, muito mais alto que todos, com barba e cabelos compridos, trajando um camisolão e com um comprido cajado na mão. Lembrei-me imediatamente da figura de Antônio Conselheiro, e por um segundo pensei nele redivivo. Eu estava temerosa. Onde eu tinha ido parar? Mas por outro lado, percebendo o timbre místico daquele povo, senti-me menos vulnerável por estar sem calcinha. Desculpem-me lembrar disso, meus leitores, parece leviano, mas eu estava tão sensualizada nas últimas semanas, que a mudança súbita de registro me faria estranheza, e eu, por momentos queria subir novamente naquela máquina e dissipar-me nos ares daquele sertão, nos braços do meu amado, e não estar ali no meio desse povo miserável e tão sofrido. Felizmente eu iria descobrir, envergonhada por estes pensamentos, o tesouro de seus corações, que era o próprio cerne desta terra marcada pelo sofrimento, mas também pelo combate, como o povo do meu Sul, o meu Pampa dos guerreiros de bombachas, que no fundo era... o mesmo povo!
Foi então que, a um gesto daquele taumaturgo, o povo todo ajoelhou-se de mãos postas, em torno de nós, não sei se diante do pavão, ou de mim e Josué. Mas a resposta a essa dúvida, veio logo quando o profeta começou a falar em voz alta, de orador nato, embora com um sotaque sertanejo fortíssimo e cheio de erros:
—Cumpadrinho Josué, que domô a imagem do Pavão, que trôxi a Princesa como prometeu, “seje” bem-vindo. O pavão de ferro vai trazê o nosso, o de carne sangue e esprito. Falta só uma lua. “Seje” benvinda Princesa do Pavão! A sua fremosura, vai trazê o Pavão e a terra vai sê livrada! Num haverá mais Seca, e os coroné vão vê a Ira de dom Sebastião cum suas hostes. O sangue vai corrê mas é o sangue dos poderoso, dos coroné. Bem vinda princesa galega, mais bonita que esse Sertão já viu. Vem c’o a gente que num temo palácio pra ofrecê mas é por pouco tempo!
Então, com aquelas palavras, as crianças e as moças levantaram-se correndo e me cercaram, tocando-me avidamente, segurando-me as mãos e levando-me com elas, enquanto eu, olhando rapidamente para traz, vi o profeta abraçando Josué. Eu estava em boas mãos.
Por quê, então, tinha um leve aperto no meu peito?

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O acampamento daquele povo era todo de barracos e tendas, disseminado pelas encostas escarpadas e também em locais planos, que eles chamavam “panelas”, onde na maior delas havia um arremedo de capela, que era só uma fachada, recobrindo a entrada de uma caverna. A igreja deste povo era uma gruta, que eu iria demorar dois dias para poder visitar, pois eu estava sendo preparada, sem dar-me conta disso, para ser consagrada (como o quê?) numa cerimônia dentro dela. As moças virgens me cercavam, mimando-me e trazendo-me oferendas, depois de trocarem meu vestido indiano por um todo branco e também comprido, muito bonito e debruado com renda de bilro. Eu me perguntava se elas pensavam que eu também era virgem, dada toda aquela brancura. Mas ela me chamavam de princesa, e lavavam-me os pés, todos dias, ao anoitecer. Davam-me banhos numa grande gamela de madeira, dia não dia sim, pela escassez de água. E eu deixava-me mimar, e até mesmo cultuar, assim, pois eu sentia, simplesmente que era o que devia ser feito, pois eu sentia que era um momento ou um elo de uma cadeia de destino, que tinha começado muito antes desta minha vida atual. Além disso, eu confesso, que sempre acreditei ser mesmo uma princesa, pelo meu aspecto e pela maneira com que fui criada, e ainda por meus dons naturais, sobretudo artísticos, malgrado (ou por isso mesmo) eu ser neta de rudes agricultores, pelos dois lados, o alemão e o açoriano.
Assim, deixei-me preparar com banhos de ervas nativas daquela serra, de cheiro peculiar, para uma cerimônia que eu pressentia espantosa, e que me causava um certo temor. Com minha imaginação literária comecei a temer que seria sacrificada a uma entidade sagrada, que podia ser o Pavão Misterioso, que eu senti que elas esperavam avistar novamente durante a cerimônia ritual na gruta. Eu tinha medo, pois não sabia nunca, aqui neste sertão, onde realmente estava pisando. Tudo quilo era próximo e distante ao mesmo tempo e eu estava desnorteada. Fazia já três dias que eu não via Josué, que sumira, provavelmente com o profeta, que se chamava Sebastião Sabino, mas só designado pelo alcunha de “Profeta Pavão”, ou simplesmente Profeta. Eu estava me sentindo desprotegida com o sumiço de meu amado, e tinha pesadelos de noite, em que me via morta pelas garras de uma ave cruel, imensa, e acordava sobressaltada, suando, ofegante, e logo gritando por Josué. A moças me acalmavam, me acariciavam e acalentavam, cantando aquela linda canção de Anunciada: “Chô pavão, sai de cima do telhado...” e eu sentia que havia dois pavões, um sagrado e um profano, e não sabia qual o mais assustador, que talvez fossem duas faces cambiantes da mesma moeda: sonho e pesadelo. Eu queria fugir, mas não tinha como, do alto daquela Serra perdida no sertão, pois começava a desconfiar que era prisioneira, traída e entregue a um povo fanático, por um amante obcecado e delirante. Comecei a chorar e a tremer de medo, para transtorno de minhas guardiãs, que não sabiam me consolar, ou transmitir qualquer segurança. Eu me sentia num mundo estranho, afinal. Será que eu tinha mesmo alguma coisa a haver com aquela terra e aquele mito? Eu era uma gaúcha, uma “catarina”, uma alemã, uma açoriana, uma brasileira... mas seria também uma sertaneja nordestina? Que mistério era esse? Eu não sabia mais no que acreditar. Eu não sabia mais nada.

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Finalmente chegou o dia em que depois de banhada, preparada, paramentada, toda de banco e com uma linda tiara na testa, fui escoltada no meio daquele povo, até à capela, ou “Grota” como eles a chamavam. Ali havia uma pequena multidão, e o Profeta ali estava, também paramentado, tendo ao lado Josué, ataviado com uma bela armadura de vaqueiro: o gibão de couro, as perneiras, as alpercatas, e o pequeno chapéu cônico de couro, preso ao queixo por tiras. Percebi que todos ostentavam o signo do Pavão, nas batas rudes que usavam ou na aba levantada do chapéu de couro, Josué inclusive. Eu me sentia encrencada, dentro de um ritual primitivo, talvez de sacrifício, de uma religião que afinal me era desconhecida, embora eu sentisse ressonâncias internas em mim, misteriosas. Eu queria fugir, mas senti que não era mais possível e que seria inútil e vergonhoso. Só me restava manter a dignidade. Mas até quando eu conseguiria, o que me esperava? Comecei a orar aos meus numes do Pampa, misturando, eu senti, as estações, o que produzia uma espécie de ruído de uma estática interior. O que eu deveria fazer? Eu estava perdida?
Duas meninas de vestido branco e longo como o meu, me conduziam pelas mãos, e passando diante de Josué eu quis abraçá-lo, mas ele fez um gesto que me deteve. Seu rosto estava impassível, mas o seu olhar, procurando o fundo dos meus, deram a entender que eu confiasse nele, que tudo iria acabar bem. Mas eu estava apavorada! O que essa gente ia fazer comigo? Havia uma melopéia no ar, que me soava estranha, senão funesta. Então, eu atravessei assim, acompanhada, o grande portal que introduzia à grota e me encontrei numa penumbra cheia de brilhos e cores, como uma caverna de calcário, cintilante. Então, eu vi!
No fundo, emergindo de um imenso altar, estava o Pavão Misterioso. De pé, muito empinado, ostentando o peito escamado de cores irisadas, azul cobalto e verde, as asas abertas, enormes e uma renda dourada na transição do corpo para a cauda... Esta se abria maior que tudo, como um imenso leque, com aquela miríade de olhos dourados, no centro do oval azul e verde, como os abrolhos de um oceano cósmico que se estendia no espaço-tempo da mente hipnotizada. Olhei a cabeça por último e seus olhos me fuzilavam sob a sua testa coroada. Então ouvi seu grito imenso e agudo grito, e pensei ver as suas garras se aproximando dos meus seios. Tive meu vestido imediatamente dilacerado, arrancado, num átimo, do meu corpo, deixando-me nua, mais nua que nunca, pois no meio do povo que enchia aquela gruta por todos os lados, em meio ao canto alucinante que se elevou, altíssimo, misturado ao grito terrível do Pavão, e... desfaleci!

Naveguei muito tempo num oceano de brumas, vendo a mim mesma como sou: de uma alvura impossível, como às vezes dizem, brilhando, sentindo meu próprio brilho contra a escuridão azul. Eu me via cercada por uma noite-oceano cujas estrelas eram ilhas abismais, como olhos hipnóticos da cauda de um pavão infinito. Eu pensei em me perder naquele vôo, e por um momento pensei em não mais voltar. Então, ouvi a voz de Rôdo, meu irmão, que se transformou na voz de Josué, chamando-me, e... acordei.
Eu estava deitada numa rede, e Josué enxugava minha testa molhada. Eu olhei-o espantada, e pus a mão no meu seio, para ver se estava ferida, lembrando-me da última sensação, antes daquele sonho ou delírio, de que retornava. Ele, sorrindo docemente, disse:
—Princesa, por onde você andou? Você não sabe que reboliço causou! Mas você foi confirmada, minha princesa, o povo carregou-a em triunfo, embora desmaiada. O Pavão reconheceu-a e confirmou-a, enchendo-me de orgulho. Alma, o povo viu sua princesa nua, e nunca vira um corpo de sua alvura e formosura. Tornou-se sagrada para esse povo, e isso está me preocupando. Precisamos fugir, ou nunca mais poderemos ficar juntos, minha linda!

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Josué era reverenciado por aquele povo, como uma espécie de guardião, ou general, do Pavão. Sebastião o apreciava especialmente, como a um filho, e reuniam-se a sós, para (eu presumia) conspirar. Comecei a perceber que havia um plano para descer da Serra com uma guerra declarada aos poderosos da região, aos donos das terras, quer dizer, aos coronéis. Havia, portanto, uma dubiedade em Josué, diante de nosso plano de fuga. O que realmente ele estava inclinado a fazer? Comecei a pensar que ele achava que poderia conciliar a mim, isto é, o nosso amor, e a sua guerra. Questionado por mim, ele disse:
—Minha querida, você viu o que fizeram com minha casa. A guerra já está declarada, os inimigos querem a minha cabeça, minha nave, e também a você. Há coisas que você não sabe mais, ou não quer lembrar. Em breve eu lhe contarei tudo. Por ora, digo-lhe que Ludugero, através do filho, não porá sua pata sobre você, minha princesa, prefiro vê-la morta.
Fiquei assustada, eu não sabia que estava no centro daquela guerra, como pivô de uma disputa entre o filho do melhor jagunço do coronel João da Cunha, o velho Malaquias, que era o meu finado sogro, e o filho do coronel Ludugero, aquele da peleja noturna no milharal, que me foi contada pelo velho Malaquias, e que eu, recontando para o amigo cordelista Guilherme de Faria, ele tinha transformado neste cordel:

Romance da Noite de Guarda
(Cordel de autoria de Guilherme de Faria)


1
Noite clara sobre o campo,
Uma noite para rede,
Para oiá pirilampo
E beijá pra matá sede
2
Dava pra ver o amarelo
Das espigas ao vento
Mas longe do desvelo
Do abraço da Adivento

3
Nóis tava no milhará
Eu mais Ezequié
E ainda dois camará
A serviço do coroné

4
Um chamado Dijaniro
E outro, o Zé do Pinho
Que eu conhecia pouquinho.
O primeiro mal refiro.

5
O João da Cunha de nome,
Era o nosso patrão
Grão-chefe deste Sertão,
Poderoso, de renome.

6
Nóis tinha de montar guarda
Na divisa, ali cercada.
Arami vai, arami vorta
Na divisa c’uma horta

7
Do coroné Ludugero
Um Átila deste sertão
Que sem pergunta se é vero
Não respeitava mourão.

8
A divisa já matava
Há mais de treis geração:
Haja quem raso cava,
Haja tiro, haja mourão.

9
A hora eu via não
De vortá para a famía.
Home neste sertão
Só na briga tem valia.

10
Eu tinha deixado a Divento
C’os menino e embuxada.
Tudo magro e catarrento
Esperando a farinhada
11
Mais feijão e rapadura
Se desse certo a empreitada
E sobrasse da fartura
Da festa da jagunçada.
12
Aí a primera bala
Zuniu fininho “pium”
Que nem marimbondo fala
Na oreia de quarqué um.

13
Daí a poço o milhará
Estralava feito espinho
Quando o fogo vai pegá
Para abrir nosso caminho.

14
Era bala de lá
E outra bala de cá.
Óio e vejo o Dijaniro
Garrado num pé de mio.

15
De repente entendi
Que ele já num tava ali:
Devagarinho tombando,
Como que fosse rezando.

16
Com as mão em oração
C’um vela de devoção
Que era só uma espiga,
Sua derradeira amiga.

17
E tombo teso então
Levantando a poeirinha
Que somente eu vi, no chão,
Que obeservação eu tinha.

18
Então senti o ferrão
Do marimbondo na coxa.
Ajoelhei naquele chão
Pra rezá pra vaca moxa.
19
Quer dizê: sem nem lembrá
De uma boa oração,
Que hora era de atirá
Ou deitá naquele chão

20
Mas Zé do Pinho chegô
Na hora e me arrastô
Pelo milhará afora
Como se fosse uma tora.

21
C’uma força de anjo
Amparava no sovaco
Este tamanho marmanjo
Que tava ali feito um saco.

22
E abrindo trilha a facão
Tentava chegá no meio
Do curral pra ter ação
E respondê tiroteio

23
Acabô pondo nas costas
Este traste aqui que eu era.
O home tava uma fera
E atirava inté as bostas

24
Das vaca que tava a ali
Naquele curral sangrento,
Mas do sangue deste aqui
Que já tava meio lento.
25
Mas eu tinha (e sou certeiro)
Minha espingarda na mão
E chegando no chiqueiro
Deitamo atrás de um capão

26
Enorme, que amortecia
As bala na sua gordura.
Nunca vi dois caradura
Fazê isso c’uma cria...
27
O bicho grunhiu de dá dó
Mas depois do berro ouvir
Pudemo então distinguir
O que era tiro só.


28
Fazendo fogo cerrado
Atiramo adoidado
Por mais de uma hora ali
Num cheiro que nunca vi.
29
Atolado ali na merda
No sangue e na gordura
Deitados como quem herda
De tiros essa fartura.
30
Até os jagunços feros
Do coroné João da Cunha
Expulsá os ludugeros
Do coroné dessa alcunha
31
Saímo então mais sujo
Que uma mula embosteada
No meio da gargaiada
Da jagunçada do cujo.
32
O cumpadre Zé do Pinho
Tinha de sê o padrinho
Dessa minha fia muié:
Eleussuína da Fé

33
Que nasceu naquela noite
De tiros como um açoite.
Eu mais o Zé do Pinho
Tivemos esse gostinho.
34
Agora que tamo em casa
Vamo chamá a Dafé
Que é nome bonito e casa
Para servir um café.

FIM

Josué era o herdeiro daquela disputa entre os Cunhas e os Ludugeros!
E eu, o que tinha a haver com aquela disputa por um milharal? Na tardei a perceber que o milharal era a ponta do iceberg, quero dizer, a ponta de um imenso pedaço de terra que envolvia uma disputa entre duas famílias e uma mulher, que era uma galega, conforme eles diziam, que era o verdadeiro pivô da disputa. A palha de milho, dourada, assim como a cor das espigas, era o indício, ou melhor, era o signo da galega, a cor de seus cabelos! Mas quem era essa mulher? Isso é o que faltava saber, e sobre o qual havia um mistério. Faltavam dados para alinhavar a trama daquela disputa na qual eu estava envolvida sem saber porquê. Josué me devia uma explicação mais ampla, já há muito tempo. Por quê ele se apaixonara por mim, e através disso motivando-se a construir, ou reconstruir, como ele dizia, o Pavão? Resolvi, naqueles dias, ali na Serra, tirar aquilo a limpo. E num momento raro de intimidade, apertei Josué sobre aquela questão, que podia ser assim resumida: “Por quê eu?”
Josué, olhou para os lados, como se preocupado com espiões, e baixando o tom de voz a um sussurro, disse:
—Alma, precisamos sair daqui, Sebastião quer deflagrar uma guerra generalizada, enquanto a minha guerra, é só contra os ludugeros, que tenho uma chance de vencer, enquanto este povo aqui está condenado, esta é a verdade. O exército da União está se encaminhando para cá e vai chacinar a todos. São vistos pelo Estado como sediciosos que conspiram contra a República, tal qual o Conselheiro de Canudos, muito tempo atrás. Este povo espera a ascensão do Pavão em carne e espírito, que anunciará a volta do rei dom Sebastião, o Venturoso, do qual Sabino se considera a reencarnação. Quando o pavão da Grota criar vida, ele estará pronto, é o que ele anuncia a este povo. Enquanto isso ele estoca armas, pagando os traficantes com esmeraldas que ele descobriu no fundo daquela grota. Essa é que a verdade! Alma, precisamos dar o fora enquanto ainda é tempo.
—Mas Josué, então por quê me trouxeste aqui? Estou confusa. Tratam-me como uma princesa, e o perigo é que tenho uma tendência a acreditar e até a gostar disso, enquanto outro lado meu se revolta. A imensa miséria deste povo me deixa impotente, e com escrúpulos. Sou só uma moça sulista, Josué, uma artista, pintora e poetisa; minha família me espera, lá no Sul, na nossa estância, da qual já morro de saudades.
—Bem, Alma, quanto a isso, você se ilude. Você tem mais a haver com tudo isso, toda esta guerra, do que pode imaginar, ou do que quer se lembrar. Mas no momento certo você saberá de tudo. Agora ainda não é o momento. Temos que dar o fora. Já tenho tudo planejado, esta noite decolaremos, sem empecilhos, espero, pois acho que Sebastião Sabino ainda não desconfia do meu plano de deserção.
Olhei Josué profundamente nos olhos, e dei-me conta novamente do quanto o amava, a esse jovem sertanejo, tão civilizado, e que tinha dons tão especiais. O seu Pavão, por si só era um tesouro, com seus segredos científicos, e eu suspeitava que ainda não vira tudo o que ele podia fazer. Ah! O que nos estava reservado ainda, de vôos e perigos naquele Sertão de sonhos por cuja Trilha eu tinha enveredado desde há cinco anos atrás, talvez mais, muitos anos mais!
Naqueles dias, enquanto esperava o momento de fugir dali com Josué, eu registrei em meu diário as minhas impressões daquele povo e daquele lugar, que recentemente revi, ao folhear o caderninho, depois de passada a fase das aventuras:
Diário de Serra Talhada

Serra Talhada, terça feira, ... de Janeiro de...

Letícia vem me trazer a comida, simples, que é quase a mesma que eles comem, apenas com um pequeno requinte, ou um mimo, como uma flor rara desta Serra. Esta guria (quase não posso designá-la desse modo tão gaúcho, pois uma menina nordestina, é algo muito diferente de uma “chinoca” da minha terra. Aliás, tudo aqui é tão diferente... Tão mais agreste, mais cru e ressequido. No entanto a doçura das meninas é a mesma) tem imensa “precisão” de sonho e de beleza. Aliás, desconfio que é necessidade que move a todos aqui, por trás de um aparente fanatismo. Não é o sonho do Pavão um indício dessa necessidade de um vôo transcendente sobre as misérias de suas vidas, de seus destinos agrilhoados a uma carência estrutural, que é a da maioria do povo deste imenso país? Letícia precisa me tocar, para saber-me real, pois minha brancura a fascina, mais ainda do que meus olhos verdes, que isso é raro, mas se encontra, vez por outra, por aqui. Mas meus cabelos louros arruivados, como ouro velho, ela os quis tocar fazendo deslizar sua mãozinha pela minha cabeça com uma emoção visível em seus olhos de cabrita. E ela perguntou-me: “É de ouro?”, com tal pureza e ingenuidade que me comoveu, por minha vez. Abracei-a e ficamos um bom tempo, assim abraçadas, e eu sentia seu coração ligeiramente acelerado, num sonho acordado que a acometeu, e que iria acompanhá-la para sempre, eu senti.
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Serra Talhada, sexta feira, ... de Janeiro de...

O grupo de gurias, as “virgens” que me servem, tratam-me como uma noiva sagrada. De quem? Do Pavão... mas o que será isso? Preparam-me para uma cerimônia, que me causa imenso temor. Todo casamento implica numa consumação que contém em sua essência o caráter do estupro, essa é que é a verdade. Josué está conivente com isso? Eu me pergunto, pois não me parece que seja ele o símbolo em carne e osso do Pavão, mas apenas seu lugar-tenente, pois percebo que o General é o próprio profeta, Sabino (vou chamá-lo daqui por diante por esse nome, para diferenciá-lo de Dom Sebastião, o Esperado, de quem ele se considera a reencarnação). Que o Profeta não se atreva a me tocar. Eu preferiria morrer. Isso tudo já está indo longe demais.
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Serra Talhada, Domingo... de Janeiro, de ...

Hoje, duas mulheres velhas, umas bruxas, vieram à minha tenda, junto com duas das virgens, e disseram-me que vinham atestar minha virgindade, pois embora eu tivesse vindo com o Josué, se eu fosse a noiva prometida do Pavão eu seria a “virgem anunciada”. Antes que eu pudesse reagir seguraram-me deitada na esteira, com força, enquanto eu me debatia, indignada. Levantaram minha saia, e abriram minhas pernas, enquanto a mais velha abria os lábios da minha vulva e olhava lá dentro. Fez um olhar de aprovação e introduziu um dedo até o fundo (eu confesso que tive nojo daquela garra, de longa unha terrosa, que no entanto não me machucou, graças à sua prática de velha bruxa. Então, dando uma casquinada de feiticeira, mas de visível satisfação, ela disse:
—Você é mesmo virgem, minha princesa. Pode se casar. O Noivo vai gostar muito, tão apertadinha que agarrou meu dedo. Logo logo estará mais aberta que uma caçamba! Ah! Ah! Ah! Hi! Hi! Hi!
Não sei se senti alívio ou se meu nojo aumentou. Aquilo deveria ser para mim motivo de satisfação? Meu coração estava confuso. Mas eu sabia há muito tempo dessa característica da minha anatomia íntima, agora devassada: meu incrivelmente flexível hímen complacente!
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Serra Talhada, terça feira, ... de Janeiro.... de ....

A verdade é que me sinto violada, com aquela intrusão da velha bruxa na minha intimidade, eu, que já fui estuprada, pelo menos três outras vezes na minha vida, por um estranho encadeamento de circunstâncias, ou como conseqüência de características físicas e de personalidade, que me deixam tão vulnerável, apesar de ser uma “princesa” para muitas pessoas, ao longo da minha vida. Não posso me esquecer, de que meu próprio irmão, de certa forma me possuiu à força, quando era ainda menina. Mas aquilo eu própria viria a chamar de “estupro consentido”, expressão essa que ouvi do ginecologista a que minha mãe me levara, depois que nos pegou, brincando nuzinhos, eu e Rôdo. Foi ali também que soube que ainda era virgem, o que aliviou em parte minha mãe, que, no entanto, tratou de afastar meu irmãozinho de mim, enviando-o para um colégio interno, o que me causou imensa dor. Anos mais tarde outro médico iria dar esse diagnóstico: hímen complacente, o que eu percebi, não era estranho à minha mãe, pois descobri um dia, era a única característica que tínhamos em comum, além da extrema brancura da pele.
Escrevi isto neste diário sem medo de outro tipo de violação, pois sei que são todos analfabetos por aqui, inclusive o profeta. Exceção feita, é claro, ao meu Josué, que é maravilhoso desenhista, mas somente semi-analfabeto.
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Serra Talhada, Quarta Feira...

Começam os preparativos para as bodas. Mal posso compreender que sou eu a noiva. Pergunto-me, a mim mesma, o que foi que eu fiz de errado para as pessoas pensarem que podem me manipular e se considerarem donas do meu destino. Não levam em consideração que eu sou uma moça culta, artista e filha de meu pai. O que será que acontece? Será a minha beleza, que me torna assim tão visada e vulnerável? A beleza feminina conterá somente os signos da sexualidade? Quanto mais bela, mais fêmea? Parece que se trata disso. Mas devo reconhecer que meu próprio corpo, curvilíneo e esguio ao mesmo tempo, voluptuoso, de andar involuntariamente ondulante, me trai e me expõe, primeiramente aos olhares indiscretos de todos, e me faz cobiçada, como um objeto de desejo da maioria, até mesmo de muitas mulheres. Percebo que já dei a resposta à pergunta que fiz, na minha súbita revolta. Ai de mim! Não! O pior é que grande parte de mim gosta disso, e eu não abriria mão, se pudesse, desse dom, com que Deus me agraciou. Devo reconhecer, sob pena de hipocrisia, que sou grata a ele por minha beleza que condiciona meu agitado destino, cheio de acidentes de percurso.
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Serra Talhada, Domingo....

Acordei após a “ Boda do Pavão”. O que aconteceu? Soube pelas gurias, que me contaram com grande receio de serem ouvidas, que eu tive meu vestido rasgado em plena cerimônia, e que isso era o esperado. Que isto confirmava-me como a esperada, e que fui violada pelo “noivo sublime” na frente de uma parcela escolhida dos fiéis, e depois carregada nua, desmaiada nos braços do povo com uma veneração extrema, espasmódica em muitos, que se jogavam ao chão também rasgando seus trapos. Aquilo tudo era uma loucura! Josué não pudera me proteger! Ou não quisera. Uma imensa revolta me tomou, enquanto instintivamente, na frente mesmo daquelas meninas abri minha vulva com os dedos, enfiando dois deles, que saíram cobertos de um esperma viscoso que limpei na esteira, com nojo, soluçando e gritando, espantando as meninas que correram para fora da tenda. Mais uma vez eu fora estuprada, mais uma vez! Aiiiiiii!!!!!!!!!
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Serra Talhada, segunda feira...

Graças a Deus, encontrei minhas “pílulas do dia seguinte” na minha mochila, e afastei, creio, o perigo de uma gravidez do meu violador. Josué vem hoje me visitar, segundo soube pelas minhas gurias. Ainda bem que o meu “marido” não apareceu depois das bodas, o que é outro mistério.
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Josué veio visitar-me na tenda, para meu grande alívio. Mas eu o recebi, de saída, com um tapa em seu rosto e aqueles soquinhos ridículos em seu peito, que atestam nossa impotência de mulheres, diante da força física dos homens. Ele me agarrou e me beijou apaixonadamente, e quando inquirida por mim, em lágrimas, sobre o que acontecera, aquela lambança com meu corpo, que me descreveram, eu ali, desfalecida, completamente indefesa, ele sorriu, e respondeu:
—Alma, fique tranqüila, nenhum outro homem e muito menos um pavão violou você. Fui eu, meu amor, fui eu que vestido como o pássaro sagrado, com uma máscara coroada e com bico, possuí você, tendo que assustar você, meu amor, para ser convincente, ou eu seria descoberto e morto pelo povo. Mas os detalhes dessa operação estratégica e como substituí o “noivo” eu contarei um dia, depois que escaparmos daqui. Perdoe-me, meu amor por esse sofrimento seu, que fui obrigado a aumentar, para justamente salvar você!
Amoleci, diante dessa revelação surpreendente, em que preferi acreditar, e deixei-me beijar demoradamente, nos lábios, enquanto eu sentia seu enorme falo subindo entre minhas coxas doloridas. O quanto meu amor me possuíra, e com que força, nua e passiva, na frente da multidão? Pus-me a imaginar, enquanto ele se despedia e se esgueirava para fora da tenda, sorrateiramente.
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O profeta veio, pela primeira, vez me visitar. Impressionou-me, de perto, a sua estatura e sua magreza. E também o seu carisma. Ele abençoou-me e por alguma recôndita razão aquilo me comoveu, por instantes, pois eu perdoava as pessoas e os fatos com muita facilidade em minha vida, resolvida desde sempre a ser feliz, fórmula difícil na vida do ser humano, mas que eu pensava ter descoberto ainda na minha infância, com a canção de Zaratustra, lida por meu pai, e até cantada por ele, como lied alemão, com sua voz maravilhosa de barítono. O segredo da felicidade estava na Alegria. Era necessário crer que ela era “mais profunda que a dor”, e portanto fazia da dor algo fútil, comparativamente. A alegria era uma virtude, uma das maiores, depois da bondade, da generosidade e da liberdade, as três virtudes cardeais, no meu código instintivo infantil. Mas quanto eu haveria de, paradoxalmente, sofrer pela minha fidelidade à Alegria!
Outro fator de sofrimento ocasional, foi a minha sensualidade que se manifestara precocemente, embora os sofrimentos a que me refiro, no meu caso por incrível que pareça, não se deveram a remorsos, ou sentimento de culpa, muito menos por um hipotético sentimento de “pecado original”, cuja essência nunca assimilei, rejeitando-a de uma maneira muito assumida e consciente. No entanto, eu mesmo descobriria que, com o tempo, de maneira insidiosa, fui traída pela transformação dessa minha rebeldia em masoquismo psico-sexual, numa volúpia de sentir dor física associada ao sexo. Eu ainda estava nessa fase, apesar de me ter revoltado com o estupro que sofri na frente daquele povo, ali na Serra Talhada, desmaiada e indefesa.
Eu precisava sair logo dali, abandonando aquele povo ao seu destino, pois eu precisava me lembrar, de que a cada um cabe carregar a sua própria cruz, nesta vida. Afinal, a “princesa” já fizera a sua aparição nas vidas daquelas pessoas tão carentes.
Então, naquela noite, o Profeta entrou em minha tenda e apontando para mim a sua mão ossuda, disse:
—Princesa, as hostes do inimigo se aproximam. É chegada a hora do Pavão! Amanhã, o mundo vai acabar e começar. Vosmecê estará na frente, com o estandarte do Pavão, que a princesa foi consagrada a ele. As balas não podem atingir vosmecê. Vai ser um pipoco do Inferno, mas a justiça de el-rei vencerá. Os maus serão derrotados e Dom Sebastião estabelecerá o reinado do Pavão e sua princesa estará do lado direito do trono. Prepare vosmecê com este vestido real de guerra!
Sabino retirou-se deixando sobre uma arca ao lado de minha esteira um vestido branco, de rendas, mais bonito que o primeiro, aquele de noiva, que fora dilacerado pelas garras do Pavão ou o que quer que tenha sido. Por instinto feminino peguei o vestido e coloquei-o no meu peito, tentando imaginar-me nele, já que por ali só havia um espelhinho minúsculo, emoldurado. Mas lembrando de suas palavras, fiquei apavorada, ao ser notificada de que eu seria colocada na frente do tiroteio. Eu, hem? Era hora de partir, não podíamos passar daquela noite. Eu esperava o momento de fugir, ansiosamente, como quem está votada a um pelotão de fuzilamento.
Naquela noite interminável, perto da meia-noite ouvi o assovio combinado de Josué, que pôs a sua cabeça dentro da tenda, encontrando-me pronta, de mochila nas costas. Partimos por entre as barracas e tendas adormecidas, rumo à plataforma natural de pouso do Pavão. Ainda no caminho, começamos a ouvir os primeiros tiros. Era uma noite de lua cheia, e pudemos avistar o corre-corre dos adeptos do Profeta, transformados em ferozes jagunços, colocando-se nas posições estratégicas, para atirar para baixo, nos inimigos que subiam. O exército nacional, que era o exército dos coronéis, já subia a montanha atirando.
Chegamos à plataforma e encontramos o Pavão cercado de uma montanha de oferendas e ex-votos, numa tal quantidade que tivemos dificuldade de subir nele: havia tralha até sobre suas asas, que tivemos que desatravancar. O povo idolatrara a máquina de Josué, mas graças a isso ela estava intacta e funcionava muito bem. Logo o motor restava ligado e nós decolando na vertical, quando as balas já zuniam ao nosso redor. Começamos a nos afastar do acampamento, no meio das explosões de morteiros e granadas, e até tiros de canhão. Focos de incêndio iluminavam cenas escabrosas de lutas corpo a corpo, de baionetas contra peixeiras, de soldados contra sertanejos. Josué em vez de se afastar imediatamente, estava fascinado e deu uma volta perigosa sobre aquele campo de batalha, e pude perceber as primeiras “degolas”. Comecei a gritar para que ele afastasse logo a nave, pois não poderia ver mais, pensando nas mulheres e crianças, cujo horrível destino era previsível. Era realmente o fim do mundo, e comecei a chorar amargamente. A nave afinal abriu sua volta e voou sobre o deserto, a caatinga sem fim, rumo a Salgueiro, conforme anunciou Josué, cidade no sertão pernambucano, cujo nome me soou coerente com as minhas lágrimas. Eu não parava de pensar, nas “gurias”, ou melhor, meninas, que me serviram e banharam, tão doces e dedicadas, naqueles dias. E minha, Letícia, ai!... Que horrível destino as esperava? Eu não podia nem pensar, que o coração se me apertava de angústia... eu, que conhecia bem o es... Não! Voa, pensamento, voa com o Pavão, vamos ao coração do sertão, vamos chorar em Salgueiro, lá deve haver uma capela, onde possamos rezar pela alma dos crentes, dos fanáticos, e das almas puras das crianças martirizadas, e das mulheres deste Sertão inclemente.
As estrelas contemplavam nosso vôo, plácidas, serenas, impávidas no seu sábio distanciamento das paixões humanas, e eu me lembrei da prece de um outro rei* muito distante daqui, inscrita no seu sarcófago, na sua tumba no Vale dos Reis:
“Ó mãe Nut! Abre tuas asas sobre mim, como as imperecíveis estrelas!”

(*O Faraó Tut-Ank-Amon)

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Capítulo Quarto

O Salgueiro Chorão


Depois de horas de deslumbrante e triste vôo, em que víamos de cima as formas espectrais da caatinga assombrada, com as ossadas sinistras das rezes, naquela vastidão seca onde só as cabras e as mulheres sobrevivem, pois que os homens fogem para o sul, nós, que tínhamos por cima as impassíveis estrelas, já tínhamos secado nossas lágrimas, na proa, abraçados com os cabelos ao vento, já recuperávamos em nós o direito de sermos felizes, pois éramos belos, jovens, e não carregávamos culpa conosco, naquela nave silenciosa.
Avistamos as luzes da cidadezinha, e Josué resolveu pousar longe da cidade, nos arredores, em plena caatinga. Foi o que fizemos, por prudência, aterrissando na vertical para poupar as rodas do Pavão, daquele solo rachado. Josué com seu facão cortou galhos retorcidos e espinhosos das catingueiras, e cobriu o pavão, camuflando-o. Depois, pusemo-nos a caminho, eu com minha mochila, e Josué com sua incrível maleta de migrante, de folha de aglomerado revestida por dentro com papel de parede modelo antigo, que eu conhecia, mas não o seu misterioso conteúdo talvez de grandes projetos e revelações, a julgar pelo peso, que o fazia parar a cada cem passos, para um descanso rápido e mudança de braço. Josué sempre fora misterioso, como o seu pavão, para mim, sua princesa do sul, que me considerava um livro aberto, transparente como o céu do meu Pampa, como o verde dos meus olhos e das coxilhas da minha terra de verdes pradarias. Como tudo aqui era pardacento, seco, duro! A beleza desta terra era difícil para mim, de compreender. E eu destoava dela com minha brancura que chamava a atenção, mesmo à noite, a luz do luar refletindo em minha pele como um pálido nenúfar, de um pântano espectral, cuja água, só existia na sua dimensão de sonho.
Eu me perguntava por quê estávamos ali, nos aproximando de uma cidadezinha anoitada, adormecida, anunciados apenas pelo alarme dos galos, como cassandras desacreditadas, muito distantes ainda, do amanhecer. O que Josué tinha a fazer em Salgueiro, além da minha sugestão de orar e chorar diante de uma capela que tivesse em sua frente um salgueiro chorão, árvore que ama as águas dos lagos tristes, que eu duvidava que existisse naquele sertão seco?
Entrando por uma ruela, logo Josué estava batendo na porta de uma pensão triste, que acendeu suas luzes mortiças, de lâmpadas fracas, depressivas. Mas eu me consolei com a idéia de que aquela era a nossa noite de núpcias, pois de certa forma eu me casara com o Josué-pavão, idéia que me fez soltar uma pequena gargalhada, logo abafada, pois era alta noite e devia haver hóspedes naquela pousada.
Registramo-nos, como um casal, na portaria daquela pensão, que era ao mesmo tempo um hotelzinho precário, com uma pequena fauna humana como hóspedes, que iríamos conhecer e um dia recordar em meio a risos.
No quarto, a luz mortiça da única lâmpada dependurada pelo fio e um interruptor de torcer, no bocal, era tão deprimente, que preferi minha noite de núpcias na escuridão total, o que contribuiu para perpetuar o timbre onírico da minha experiência nordestina. Mas não pensem vocês, meus leitores, que isto tudo que venho narrando se passou somente na minha cabeça. Não, não, bem... jamais saberão... O que é a vida, senão um sonho, tantas vezes pesadelo, para alguns? As crianças e os artistas não costumam distinguir bem a fronteira entre sonho e realidade, se é que ela existe. Creio que a vida consiste numa corda estirada sobre um abismo, percorrida com maior ou menor desenvoltura por todos nós dançarinos mambembes, de corda. Mas que saltimbancos habilidosos somos nós, os artistas! Que coragem temos nós sobre o abismo! Que ingênua coragem, que neutraliza a nossa vertigem, nossa tentação de abandonarmo-nos e cair!
Josué continuou seu vôo comigo, até os primeiros albores do amanhecer, como a cotovia (que não o rouxinol, que ambos não existem no sertão “real” ) anunciar a manhã sobre os galos adormecidos. Então, por minha vez eu dormi, saciada, escorrendo entre as minhas pernas o rico sumo do meu amor, que nunca tinha ouvido falar em camisinha outra que não aquela dos versos do acalanto de sua irmã: “... vou lavar vou engomar camisinha pra você...”
Despertei perto do meio-dia, vendo a cama vazia, do meu lado, e por momentos demorei a me situar, pensando estar em São Paulo, num hotel mambembe, da boca do lixo, como uma alcoólatra, que acordasse dentro do pesadelo de seu despertar, de sua ressaca. Não! A imagem é demasiado forte e não pertence ao me repositório de experiências, que nunca fui uma bêbada, senão de mim mesma, e quiçá das minhas paixões, na verdade muito puras, malgrado a nota crescente de um masoquismo que ainda me assusta. Coloquei, como sempre faço, a mão sobre as minhas aberturas, e senti-as bastante presentes, isto é, congestionadas por uma noite alucinante, em que fui cavalgada na frente e atrás pelo cavaleiro dos espinhos, sem gibão, na sua desabalada carreira pela caatinga da Alma, digo... Bem, estou poetando demais, essa é que é a verdade, eu estava arrombada, isso sim, mas feliz e querendo mais! Chamei o meu amado, três vezes. Então a porta se abriu, e uma mulher morena, de uns quarenta anos, de rosto simpático, com alguns traços de índia do Cariri, olhou-me agudamente, e perguntou:
—Alma, você quer sapoti, ou jaca, no café?
Fiquei um pouco desconcertada, pois eu estava nua, e de pernas abertas, como esperando o retorno do noivo. Mas pondo a mão sobre minha concha tão exposta, pois encimada por ralos pêlos louros, sobre a qual percebi a atenção daquela mulher, respondi meio titubeante:
—Sapoti? Não sei... quero dizer... Jaca.? Aonde estou? Não sei...
A mulher sorriu, depois de observar meus seios pequenos muito brancos, de aréolas cor de rosa, de aspecto virginal, já que eu só cobrira a minha mucosa de baixo, desabrochada. Ela disse:
—Ó Xente! Vosmecê é uma galega arretada de bonita, não é não? Que faz uma moça assim, aqui, neste fim de mundo? Você é do sul, não é não? Eu vi na sua ficha. Olhe que é um bocado longe! O Josué foi buscar você lá? Esse Josué! Que olho ele tem! Mas diga lá, jaca ou sapoti?
—Sapoti... eu acho... Mas a senhora, como se chama? Já conhecia o Josué? ( eu já me envolvera no lençol e observava aquela mulher interessante, que percebi que conhecia Josué de outros carnavais).
—Eu sou Luzia. Vige! O Josué, quem não conhece? Josué é famoso, neste sertão. Ele e seu sonho de voar... Uma vez o prefeito, o anterior, expulsou ele daqui, dizendo que ele virava a cabeça das mulheres honestas da cidade, com aquele sonho. Ele foi longe agora, pelo visto foi buscar uma lá no sul, para descabeçar. Eu disse descabeçar, não me entenda mal. Mas “minina”, como é que foi conhecer esse malungo do Josué?
—Ah! Luzia, Josué é um sonho, tu sabes, ele é doce. E muito firme também. Ele é muito “home”, como vocês dizem aqui, e não é “garganta”. E ele faz nascer o sonho e mostra o pássaro. Quero dizer... Desculpa, tenho mania de fazer poesia. Sabe, sou poeta.
—Ó Xente, você escreve cordel? Toca viola também? Olha que é raro mulher fazer isso, por aqui. Tem umas, mas... mulher gosta mesmo é de ser cantada por um cordelista, nesta vida. E de sonhar e cuidar do seu amor e da filharada. Tem umas rendeiras por aqui, que são artistas. Eu quero levar você pra conhecer. Vai ver o que é poesia de mulher, aqui no sertão.
—Ah! Luzia, mal posso esperar, Sim, me leva pra conhecer essa rendeiras, de que ouvi falar. Quero depositar flores aos seus pés. Vocês tem flores por aqui?
—Ó xente! Tem precisão não! Só de serem visitadas por uma galega assim, elas vão ficar muito contentes, e inspiradas. Mas se você quiser comprar umas rendas, melhor ainda. Às vezes vem gente de fora, do exterior, pra comprar renda, mas nem por isso elas vendem mais caro. Elas gostam mesmo é de elogio. Parece que vocês artistas vivem só de elogio, não é não? Aliás, elas não sabiam que eram artistas, até vir uma senhora sueca, muito descorada mas simpática, que comunicou isso a elas. Mas elas não entenderam não, que isso de artista pra elas é outro mundo. Mas foi bom, porque alguma coisa mudou, pois começaram a fazer umas rendas maiores, mais ambiciosas. E estão fazendo uma, coletiva, muito grande que conta uma estória famosa. Já viu isso, uma renda contar estória? Não é nenhuma tapeçaria não, é renda mesmo. Tem até jornalista da capital que veio aqui, com um professor, pra ver e fazer reportagem. Mas eu vou lhe levar, pra você ver.
Dei um pulo da cama, já eufórica para ver aquilo, o lençol caiu, mas não liguei mais e comecei a tirar minhas roupas da mochila, procurando minha pasta de dentes e a escova, e tirando meu vestido de renda branca, da batalha de que não participei, de Serra Talhada, que eu pensava vestir depois de um banho. Luzia pareceu assombrar-se novamente, dizendo:
—Minina! Você é linda demais!. Nunca vi um corpo assim, de pernas tão compridas, e tão certinhas. Que pés de princesa, e que mãos! Que olhos, que cabelos! Você é branca como uma aparição! Você é deste mundo, bichinha? Olha, que agora me deu medo. Ninguém é assim! Você não tem uma manchinha, uma marca sequer nessa pele, de seda. Posso passar a mão, só um pouquinho! Minina!
Fiquei, comovida, por um momento. Sempre acontece isso comigo. Fico com os olhos cheios de lágrimas, quando encontro essa reverência pura, e desinteressada... à minha beleza. Mas percebo que fico comovida comigo mesma, no fundo, e sempre me pergunto o significado de Deus ter-me feito assim, e ainda poeta. Deve ter um sentido, uma missão, de que não estou muito certa de estar sendo digna. Mas por outro lado, se cobrisse e escondesse muito essa beleza e não usufruísse dela, não estaria, desperdiçando e traindo a dádiva divina? Sempre quis dar-me, a todos, e a cada um. Mas somente aos bons e aos puros, embora três do lado de lá já me tenham violado, e usufruído ilegitimamente, por assim dizer.
Deixei Luzia passar a mão nas minhas costas e nas minhas pernas, e até nos meus seios. Ela, então, teve um súbito arrepio e retirou-se quase correndo. Fiquei um pouco surpresa, e voltei às minhas providências para aprontar-me logo, antes que eu fosse buscar aquela mulher lá na portaria, para entregar-me a ela. Eu sou assim. Preciso controlar-me. Sou “dadivosa” demais... Uma vez eu disse a Rôdo que gostaria de ser puta, mas meu irmão sorriu e abanou a cabeça, dizendo:
—Alma, tu não tens a menor idéia do que seja isso.

___________________________________________

Josué veio encontrar-me no pequeno refeitório, banhada e vestida como se estivesse num hotel, digamos... três estrelas, do nordeste, claro, pois em frente a uma travessa de sapotis e uma xícara de café. Beijou-me nos lábios como se espera no dia seguinte à noite de núpcias, e eu estava encantada. Tomamos o café juntos, e Luzia veio encontrar-nos para dizer:
—Bom dia, pombinhos! Estão prontos para irmos visitar as rendeiras?
Saímos com ela e andamos por várias ruas, típicas de cidadezinha nordestina. Mas logo estávamos numa pracinha onde se encontravam várias rendeiras sentadas diante de seus tamboretes, trançando com prodigiosa habilidade seus bilros. Parei diante delas, e fiquei ali, fascinada, enquanto Luzia me contava a estória real, e relativamente recente, de uma delas, que ela conhecera e que já não estava ali.


Romance da Rendeira
(cordel de Guilherme de Faria)

1
Chora viola na alma,
De mim, que canto sem ela.
Canto a seco, leio a palma
Pinto sem tinta e sem tela.
2
Ando por esse Brasil
Que é todo imenso sertão:
A “sociedade civil”
Não é civilização.

3
Pelo menos por enquanto
Com tanta bala perdida
Vou voltar para o meu canto
Antes que aqui perca a vida.
4
Lá no sertão verdadeiro
Pelo menos sei o rumo
Basta olhar um vaqueiro
E sei o que é ter prumo.

5
Se quero ir para o norte
Lanço a palha, lanço a sorte
O caminho eu mesmo faço
Jogo cartas, jogo laço.

6
E no final ganho a vida
Em toda a sua acepção,
Ganho fama e a acolhida
Dessa gente do sertão.
7
Por isso, pra começar
Vou afiando a viola
Dentro da minha cachola
Para um causo desfiar.
8
Me dê um mote, envista,
Qualquer um: ciúme ou contenda
Não sou nenhum repentista
Mas escrevo de encomenda.

9
Ciúme? tá bem, eis o mote,
Embora pareça banal
Pois se queres logo um lote
Basta folhear jornal.

10
Mas se queres mesmo um caso,
Vou contar uma tragédia
Pois ciúme é muito raso
Se não entrar na Enciclopédia.

11
Havia na minha aldeia
Uma única beldade,
Moça prendada rendeira,
Leal como a lealdade.


12
Jamais trairia alguém
Quanto mais o seu amor,
Mas foi do ciúme refém,
Causadora de rancor.

13
Sem lamentar o seu fado,
Sem levantar os olhinhos,
Quanto mais olhar pro lado
Com tantos urubuzinhos.

14
Ciúme, que coisa fútil,
Se não fosse “catastrófe”
Para falar desse inútil
Necessito nova estrofe.

15
Desculpem a rima falsa,
Falsa como o mesmo ciúme
Que só pensar dá friúme,
Mala vazia, sem alça.

16
Pois a nossa heroína
(vou chamá-la de Malvina
Para facilitar a rima
Em mais dois versos de cima)

17
Era pura e verdadeira
Não merecia o cutelo
Com que foi morta na esteira,
Por um que nem era Otelo.
18
Tudo começou com a renda
Que Malvina enredou
Por uma falsa encomenda
Que um malungo inventou.

19
Era bem fácil fazer
A moça se dedicar
A um trabalho de tecer,
E por isto se apaixonar.
20
Cada trabalho de renda
Era por si um louvor
À beleza e ao amor,
Embora estivesse à venda.

21
Mas aquele pervertido
Sendo esperto e atrevido,
Aproveitou-se do fato
E comprometeu tal ato.

22
Todo dia vinha olhar
O andamento da trama,
Punha sugestão no ar,
E muito louvor, o sacana.

23
Com isso comprometia
O trabalho da artezã
Com a sua companhia,
Com a sua teia vã.

24
Eis, senhores, a maldade
Contida no sedutor:
Para enrolar uma beldade
Basta um fio condutor.

25
E assim, qual Ariadne
Às avessas, desfiou
O fio da teia de Aracne
Pro labirinto que armou.

26
O noivo da bela Malvina
Afinal desconfiou
Dessa teia muito fina
E de quem a encomendou.
27
Aquilo era uma obra-prima,
Só podia ser paixão;
Traição, ó triste rima
Para um causo do sertão!
28
Pois onde entra a maldita
Sai o amor, entra a desdita
E logo assoma a morte
Co’ algum instrumento de corte

29
Como cutelo ou sovela
Como foi no caso dela,
Que o noivo era sapateiro,
Nas horas vagas, coveiro.

30
Malvina naquela noite
Cujas horas como açoite
Demoravam a passar
Esperando o seu penar,

31
Sabendo que o confronto
Viria na hora do sono
Pois o ciúme, seu patrono,
Tinha atingido o ponto

32
Mais alto, naquela mente
Do sapateiro demente
Que naquela mesma hora
Resolvera: “É agora!”


33
Malvina fez uma prece
E cantou uma canção
D’um salgueiro que, parece,
Não existe no sertão.

34
E depois deitou na esteira
Com a mão no coração:
Ele assomou na soleira
Com a sovela na mão

35
E perguntou: “Já fizeste
A oração que lhe cabe?
Pois agora tu me deste
A permissão que te acabe.”
36
E degolou a ovelhinha
Que só um suspiro deu,
Morrendo a pobrezinha
Por perfecionismo seu.

37
Pois seu único pecado
Foi o amor e a candura
Que aquela alma pura
Pôs num trabalho arretado:

38
Uma renda, uma teia,
Exposta numa parede
Do museu da nossa aldeia
Que tem renda... e tanta rede.

FIM


Comovi-me com o triste destino da jovem rendeira, e deixei-me levar por Luzia até uma casa ali perto, onde estava instalado o Museu da Rendeira, e diante da tal renda que motivara aquela tragédia, deixei rolar uma lágrima. Luzia contara a estória com tanta sensibilidade e riqueza de detalhes que foi fácil para o meu amigo cordelista, transformá-la no poema citado. Eu quis voltar à praça das rendeiras, para conversar com uma delas, que segundo Luzia, fora amiga da heroína d
o cordel. Ela se chamava Severina, e embora não fosse bonita, era doce, e ao falar da amiga assassinada à galega forasteira que acabara de conhecer, acabou chorando abraçada a mim. Consolei-a como pude e comprei-lhe uma renda, que era uma maneira de me aproximar da protagonista daquela estória, ou ter um uma obra de um espírito que lhe fora próximo em vida. Uma espécie de relíquia. Além de ser uma obra de arte, claro. Depois disso, eu quis logo voltar para o hotel, para digerir as emoções da manhã e meditar no meu leito, sobre o significado de tudo aquilo, e também as possíveis razões desses encontros predestinados, na minha trilha sertaneja. Por quê Luzia quisera revelar-me aquela estória? Não há gratuidade na vida, estou desde sempre convencida disso, e sempre acreditei na teoria da “sincronicidade” junguiana. Quereria Luzia
prevenir-me de uma tragédia, que ela, com seu sangue índio, pressentira? Eu poderia ser morta pelo meu Josué, um dia, por ciúmes? Sou tremendamente impressionável, e tive que fazer um esforço para distrair meu pensamento, diante das rendas, daí por diante. Nunca mais poderia usá-las. Mas antes de mudar de registro, eu quis finalizar visitando a tal renda ou teia coletiva que contava uma estória. Diante da enorme renda branca, que guardava justamente a estória da infeliz rendeira, de forma mítica, eu fiquei assombrada. Mas não poderei descrevê-la, pois era abstrata à primeira vista, como deve ser uma renda. Como ela podia ser descritiva ou narrativa era um mistério para mim, como permanecerá para vocês também, meus leitores.
De volta à pensão encontrei o pequeno refeitório já cheio dos hóspedes sentados à mesa esperando o almoço, que Luzia teve de correr para agilizar lá na cozinha, com a sua cozinheira que o estava preparando. Era domingo, e haveria buchada de bode que era uma comida dantesca para uma sulista como eu, tanto pelo aspecto, como por seu conteúdo e condimentação. Eu fiquei um tempo ali conversando com alguns velhos hóspedes que me fizeram muitas homenagens, como se eu fosse uma estrela conhecida, de novelas ou coisa parecida. Josué cometeu a indiscrição de revelar a minha condição de poeta, e começaram a me cobrar em coro, que recitasse um poema meu. Um tanto constrangida, eu declamei isto, pinçado na memória, do meu ciclo de “Sonetos da Luxúria”, que eu pude selecionar, belo, mas inofensivo no sentido erótico, para não ofender a pudicícia de ninguém, principalmente dos mais velhos:

Amor é um turbilhão, um mar de chamas
Que queima como incêndio na floresta;
É ferida aberta sobre as camas
E dói tanto que pouco ou nada resta,

Só a ânsia de mais e mais amar
E ser tomada, virada do avesso
E redondamente se enganar
Quanto ao seu fim ou seu começo:

É ficar cega de tanto admirar
É querer o outro devorar
Para senti-lo dentro devorando

O nosso coração então repleto,
Afinal o Hermafrodita aflorando,
O ser primordial, uno, completo!


Fui bastante aplaudida, e elogiada, por todos os presentes, e Josué abraçou-me carinhosamente. Um senhor que todos chamavam coronel Barbosa, e que na verdade era um velho professor aposentado, percebeu no meu soneto, uma certa paráfrase, distante embora, do célebre soneto LXXXIV de Camões, “Amor é chama que arde sem se ver...” Derramou-se, em seguida, em elogios que me colocavam como musa, comparando-me à Safo, a divina poetisa de Mitilene, na ilha de Lesbos, que alcançou o mundo. Senti-me imensamente honrada. O velho Barbosa estava empolgado e prometeu, por sua vez dedicar-me um soneto que faria em breve, em minha homenagem. Aproveitei para dizer que precisava retirar-me para o meu quarto, pois estava imensamente emocionada, e sem condições de partilhar da buchada com os amáveis presentes. Todos lamentaram, como se eu já estivesse com o desarranjo intestinal que eu, na verdade estava conscientemente evitando.
Entrei no quarto acompanhada de Josué, dando uma gargalhada, mas assim que a porta se fechou, meu riso se transformou num longo gemido, seguido de um pranto desatado, dolorido, vindo do fundo, e eu não sabia por quê. Aquelas experiências, junto de meu Josué, estavam mexendo muito comigo, e me tornando cada vez mais sensível, como se estivesse em carne viva, ou como se minha alma estivesse nua, o que para alguns de vocês, meus leitores, pode parecer uma redundância.
Josué aproveitou para acariciar-me muito, o que o deixou excitado, e logo estava ele em cima de mim, penetrando-me como um bode do sertão enquanto, eu, embora sentindo prazer, mais chorava e... chorava. Nós mulheres somos muito complicadas para sermos compreendidas pelos homens. Talvez os poetas, e os romancistas nos compreendam, como alguns pintores ao nosso corpo. Josué era um artesão, um cientista, e até mesmo um delirante, às vezes. Mas seria ele um artista, como concebo a palavra? Não importava, na verdade: ele era o homem que me possuía com paixão, como um fauno ou sátiro à sua ninfa, e isso estava justificado na esfera espiritual do corpo. E o corpo, continha um segredo de nosso encontro numa distante vida neste mesmo sertão, que eu viera aqui desvendar. Mas eu formaria com ele, algum dia, o Hermafrodita Primordial?
Quero fechar, no entanto, este capítulo da minha narrativa, com um soneto de minha autoria que se aproximava do timbre das emoções eróticas que eu experimentava naquele momento:

Como posso prosseguir acreditando,
Manter aceso o olhar, a meta e o desejo,
Se o coração carente traz o ensejo
De perder-se no outro, assim, amando?

Refiro-me à pulsão que cria, à Arte,
Da qual não posso certamente prescindir.
Mulher-artista, como prosseguir,
Se o doido coração quer liquidar-te?

Ser só mulher, entregue, possuída,
Fêmea total, às raias da odalisca,
Da puta gloriosa e assumida,

Assim quer o branco corpo, o alvo seio,
Os lábios cheios de paixão arisca,
As amplas curvas com a fenda ao meio!


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Capítulo quinto

Encontro com Ludugero


Eu estava começando a ficar aflita para sair de Salgueiro, como se pressentisse inconscientemente algo ameaçador se aproximando de nós, naquela cidade, apesar do bom acolhimento naquela pensão da amiga de Josué. A propósito, eu o inquiri um dia, no quarto, sobre as suas relações passadas com Luzia, mais por pura curiosidade, pois eu simpatizara com ela, que era bem mais velha que ele, beirando os quarenta anos. Josué, então confessou que tivera um caso tempestuoso com Luzia, anos atrás, quando morara por um ano naquela cidade, e naquela mesma pensão. Luzia já era muito experiente e lhe ensinara muito sobre as mulheres. Mas, ao que parece, ela era ciumenta e manipuladora, e Josué não era homem de se deixar dominar. Nestes dias, agora já tanto tempo depois, Luzia já superara tudo e nos via com carinho, como seus amigos, até como seus irmãos. Essa mulher forte continuava intensa, e eu percebi que agora ela estava se apaixonando por mim, essa é que era a verdade. Era o momento de partirmos antes que as coisas ficassem complicadas. Entretanto, o leitor já me conhece e sabe que não sou de evitar nada, para não deixar espaços vazios na tela de minha rica vida. O que me produzia ansiedade, portanto, não era isso, mas o pressentimento da aproximação de uma ameaça mais perigosa, maligna mesmo. Decidimos partir, e como Josué tinha providências misteriosas a tomar, em relação à manutenção da nave lá na caatinga, eu fiquei só, à noite no meu quarto, até tarde. Então recebi Luzia, como se num acordo tácito, abrindo a porta para ela, antes mesmo que ela batesse com os nós dos dedos. Ela entrou, cerrou a porta com as suas costas, e olhando-me fixa e ardentemente, agarrou meu rosto e beijou-me a boca ardentemente. Em seguida despiu-me com energia, como um homem, jogou-me na cama, completamente nua, e abrindo-me as pernas mergulhou, num beijo sedento em minha vulva, enquanto suas mãos ordenhavam meus mamilos rosados e tesos, com uma sabedoria que só as mulheres têm.
Desmanchei-me de uma maneira, que nem Josué conseguia de mim. Eu era mesmo uma encarnação de Safo, como o coronel detectara, eu sentia assim, naqueles momentos mágicos, onde o hermafrodita era, na verdade, não o doce Narciso, mas a ninfa Eco refletida nas suas águas.

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Estava na hora de partir, as coisas tendiam a se complicar, e tudo levava a crer que eu estava prestes a iniciar um ménage-a-trois nordestino, do qual eu perderia o controle e com conseqüências provavelmente primitivas, não me entendam mal... quero dizer, eu estava em contacto com outra cultura, e corria, eu sim, o risco de ser mal-entendida. Já era notável que Luzia tivesse se apaixonado assim sem maiores conflitos pela atual namorada ou mulher do seu ex-amante. E sua ardência crescia a olhos vistos a cada noite em que ela me encontrava a sós em meu quarto, com as ausências misteriosas de Josué. Quanto a mim, tendia a abandonar-me ao prazer e a dissipação, e já começava a pensar no meu rabo-de-tatu, que permanecia quieto na minha mochila. Eu estava prestes a “desenterrá-lo”, quando Josué chegou uma noite, inadvertidamente e nos pegou na cama, nuas. Mas pasmem, leitores, ele não ligou a mínima, e interrompeu-nos como se estivéssemos tomando chá. Estava esbaforido, isso sim, mas de pressa e preocupação com “outro” problema. Por um momento, lembrei-me da frase de um autor francês, que dizia que “homens e mulheres são animais tão diferentes, que se não fosse o desejo sexual, passariam um pelo outro como o elefante pela girafa”. Aqui, no nosso caso, as cabras pelo jegue.
—Alma, vista-se, apronte-se que temos que partir imediatamente. Luzia, calcule as diárias e as despesas extras, vou acertar tudo imediatamente. Mas apressem-se, não temos tempo. Ludugero está aqui!
Ouvindo novamente aquele nome, assim, assustei-me, e pulei da cama e comecei a me vestir apressadamente, sem discutir.
Mal tivemos tempo de despedirmo-nos de Luzia, que abraçando-me tinha lágrimas nos olhos. Nossas mãos foram separadas, quase à força por Josué que puxava-me pela mão, com a sua misteriosa maleta na outra, e olhando muito para os lados. A coisa era premente a julgar por sua atitude. Logo estávamos correndo no arrabalde da cidade, e então na caatinga, em direção à nave cuja camuflagem percebi mexida, mas logo deduzi que o próprio Josué estivera ali diversas noites fazendo sua misteriosa manutenção. Removendo os galhos espinhosos, e erguendo seu mastro escamoteável, daí a pouco começávamos arrastá-la para a “pista”, isto é, o solo plano rachado. Mas logo Josué pôs o motor na vertical, quer dizer, a hélice na horizontal e decolamos com um intenso zumbido como um marimbondo gigante. Foi a conta de estarmos há dez metros do solo e as balas começarem a zunir. Os ludugeros, isto é os jagunços de Ludugero, corriam cercando-nos e atirando para cima. Foi então que pude ver, iluminado pela tocha que tinha na mão, o inimigo de Josué, que cobiçava-me e à nave: Cipriano Ludugero, o filho do velho Ludugero, inimigo dos Cunhas e portanto do fiel Malaquias, pai de Josué e Anunciada, que perdera um olho em antigas batalhas com os antecessores daqueles ali. Eu já fora disputada pela geração anterior, isto ficou claro para mim, que num flash de reminicência, me recordei, naquele momento. Meu Deus! Eu precisava ter a conversa que eu cobrava já há tempos de Josué. Ele tinha que me contar tudo. Afinal era eu o pivô desta batalha, juntamente com o Pavão, não era? Então eu era amada também por outro homem, de quem nem me recordava? Como era esse Cipriano? Não pude distinguir bem seus traços à luz bruxuleante da tocha, mas pude perceber a alta estatura e imponência do moço, de terno, botas, e chapéu de abas largas na cabeça. Um típico fazendeirão deste país, no seu estereótipo mais consagrado. Seria ele bonito? Sim, que fosse, pelo menos... desejei, já que pressentia que ia lhe cair nas mãos, um dia. Que estou dizendo? Cala-te Alma, olha que os leitores estão ouvindo, e podem pensar mal de ti. Se é que já não estão pensando.
Afastamo-nos de Salgueiro, cidade cuja experiência eu precisava digerir, embora não fosse como a buchada de bode, mas um doce sapoti, ao lembrar-me de minhas noites com Luzia, a quarentona experiente que também me fizera voar, no leito, num sonho de mulheres, que os homens não podem compartilhar, embora sempre o desejem.
Lá íamos nós, mais fundo ainda nesse Sertão de meu país, à bordo de nossa maravilhosa nave, o Pavão Misterioso, que flutuava quase tão silencioso quanto um tapete voador, rumo às mil e uma noites sertanejas que nos esperavam, mas que podiam ser resumidas numa única noite de um sonho da Alma.

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De pé, na proa, Josué consultava mapas e decidiu rumar em frente, até a cidadezinha de Maravilha, quase no sertão do Piauí. Também achei o nome auspicioso, embora não soubesse o que nos esperava aí, nem o que Josué pretendia. Perguntei-lhe se não ia aproveitar para ionizar as nuvens no caminho, para ir fazendo chover sobre aquele sertão carente, mas Josué disse que isso faria como que um rastro de chuvas que denunciaria nossa trajetória ao inimigo, que nos seguiria simplesmente pelo serviço metereológico, o que me pareceu fazer sentido, infelizmente. Mas eu, na verdade, não gostava de fugir nesta vida. Sempre me pareceu que fugir é tentar ludibriar o destino, e nunca dá certo, pois este, é um cão rafeiro de faro fino, e sempre descobre nossa trilha. Ah! Alma, será que sonhavas trair-te a ti mesma para entregares-te ao inimigo irresistível? Ah! Mulheres, quão insondáveis são os seus desígnios. Não como os de Deus que só quer o nosso bem, e portanto previsível, afinal, na morte acolhedora, que nos faz retornar ao lar. Bem... mas que estou dizendo? Aquieta-te coração, e voa, com teu amor que está já ao teu lado!
Depois de muitas horas em que dormi nos braços de Josué, levados pelo piloto “automítico” da nave, avistamos ao amanhecer, ao longe, a cidadezinha de Maravilha, que nos pareceu de acordo com seu nome. Desta vez descemos na praça da cidade, num pequeno terreiro, campinho de futebol dos guris, ao lado do coreto que foi ocupado às presss por uma bandinha pra nos recepcionar, com o prefeito da cidade, à frente, com um imenso revolver na cintura, e regendo a banda ao mesmo tempo. Depois soubemos que o prefeito era o factotum daquela aldeia, e exercia as funções de barbeiro, médico, regente da banda, rezador, delegado, agente funerário e tabelião. O homem era um gênio natural, um renascentista atrasado, e só não pintava, embora cometesse os seus quadrinhos. Virgiliano (era o seu nome) estava em êxtase, enquanto o povo já estava ajoelhado reverenciando o pavão. Assim que pus os pés no solo, a crianças, como em quase toda parte, correram para mim, cercando-me e tocando-me comovedoramente. E me escoltaram, até a escolinha, enquanto o prefeito, protestava, empurrando algumas delas, apresentando-se, segurando minha mão, e beijando-a, com o chapéu na outra mão, e querendo me puxar para a prefeitura, que era uma casa pouco maior que as outras, dizendo que eu era uma visita ilustre, e que precisava ficar hospedada lá. Conseguiu afastar as crianças, quando ameaçou sacar o revolver, o que me pareceu um absurdo. Mas afinal segui-o, planejando a visita à escolinha para logo em seguida. Fui arrastada pelo prefeito, olhando o Josué que era também escoltado por uns vereadores, e por um jovem negro que era uma espécie de único jornalista da cidade e escrevia no “Lunário Perpétuo”, maravilha editada numa tipografia de cordel, de que faltava o tipo da letra a, facilmente dedutível, por quem soubesse ler.
Afinal instalada, pedi um banho, que foi “organizado” pelo prefeito, com verbas públicas, numa imensa gamela, e a cargo das mucamas domésticas do prefeito, elevadas a funcionárias públicas encarregadas do banho da princesa, como elas logo disseram. Encheram a gamela de água quente de chaleira, esquentada num forno de lenha maravilhoso por sua rudeza. E desnudando-me, maravilhadas pela minha brancura, que as fazia rir com a mão na boca, fizeram-me acocorar dentro da gamela e banharam-me, disputando o toque sobre minha pele, com um prazer tão grande da parte delas como da minha. Durante o banho teve um lance no mínimo curioso. No momento de lavar minhas partes, elas não me deixaram fazê-lo, e abriram a porta para a “mucama chefe” que, esta sim, parecia uma princesa negra, ou melhor, uma rainha, e que com mãos finas, pegou o pequeno sabonete e meticulosa e maternalmente lavou minha pombinha, e meu furinho de trás. Eu estava deslumbrada e enternecida, com os estranhos costumes da cidade. Demorei muito para descobrir que o prefeito via tudo, por meio de buraquinhos no forro de uma espécie de sótão. O safado estava me banhando... para ele?
Mas assim que banhada, enxugada, vestida e penteada, eu exigi ver o Josué, o que não consegui. Descobri horas depois que Josué estava sumido. Ninguém sabia dele. Eu viria a descobrir mais tarde ainda, que Josué estava preso, sob a guarda dos jagunços do perfeito, sob a acusação de contrabando de... princesa! Pensei que o prefeito estava louco ou era o homem de maior má fé que eu conhecera. Não tardei a descobrir que nem uma coisa nem outra. Era tão somente um homem enormemente controlador que tinha uma síndrome de Fígaro, tal como ele entendia a ária da ópera, o “largo al factotum” que era o único disco que ele tinha, e que tocava num gramofone que herdara de sua avó, e acreditava ser o verdadeiro toca-discos, pois, uma vez, aparecera um sujeito por lá com um CD-player que não o convencera.
Afinal Josué provou sua inocência depois de um interrogatório que beirou a tortura, por pura tradição. Pudemos nos ver e abraçar na frente do prefeito, que pediu desculpas, dizendo, que nunca se pode confiar nos pilotos de naves, pois o governo do Estado lhe alertara para o contrabando em pequenos aviões, o que na verdade ele nunca vira de perto. Mas ele estava encafifado com a presença de uma princesa ali, pois achava que uma delas somente tinha visitado a cidade de Princesa, na Paraíba e que por isso ganhara esse nome e reivindicava a sua separação da União até hoje. Era isso, pelo menos, o que o prefeito acreditava. Comecei a pedir a Josué que partíssemos logo, antes que eu também ficasse confusa. Mas não sem antes visitar a tipografia do “Lunário Perpétuo”, e conhecer o seu redator e jornalista, o negrinho Salviano Gandó, um verdadeiro poeta inconsciente deste fato. Ele também ilustrava o pequeno almanaque com xilogravuras preciosas feitas por ele mesmo, escavadas em tabuinhas de madeira de imburana com um canivete e goivas feitas de varetas de guarda-chuva, afiadas na pedra. As imagens eram tão primitivas que nos maravilhavam por sua síntese extrema e poderosamente sugestiva, como a do grande xilógrafo de cordel José Costa Leite.
Depois de um almoço servido pelo prefeito, fomos visitar a escolinha pública, onde as crianças já me esperavam sentadinhas no chão, pois não havia cadeiras e muito menos carteiras. Então pude exercer depois de muito tempo o meu dom de narradora ou contadora de estórias, contando para elas uma versão do Romance do Pavão Misterioso, reelaborada por mim, a partir da versão do meu amigo o cordelista paulistano Guilherme de Faria, que aproveitou da do João Melquíades Ferreira quase nada, a não ser o próprio Pavão como máquina de voar, que era algo que o próprio Melquíades tinha registrado de vivo testemunho, já naquela época, na década de trinta, e antepassado do nosso, que eu tinha visto em ruínas naquele grotão no meio da caatinga, conforme narrei no meu conto “Na Trilha dos Menestréis” que contava o começo desta minha saga, há cinco anos atrás, e já publicada no meu livro Contos da Alma. Ó xente, que parágrafo comprido!
As crianças estavam maravilhadas e algumas não queriam deixar-me partir, e agarravam-me chorando e puxando-me para trás, enquanto eu caminhava ladeada por Josué em direção à nave, já reabastecida com água nos seus tanques, digo, seus odres de couro de cabra. Mas, eu, enquanto caminhava, sentia que plantara a esperança no coração daquelas crianças, com a minha presença, e isto não é coisa de se desprezar, tanto mais que eu prometia voltar um dia, coisa que eu mesma secretamente não acreditava.
Assim, decolamos mais uma vez sob as palmas e as lágrimas daquele povo, eu mesma intensamente comovida, sentindo-me, como nunca, parte desta terra, mas também desse imenso Brasil, como uma princesa de verdade, mas não de Portugal, não européia, apesar da minha pele e de minhas ascendências germânicas e açorianas, mas do Brasil mesmo, sertanejo e mestiço, do qual eu era, estranhamente, um sonho branco, tangível, que emergia do “inconsciente coletivo” de nossa gente sofrida.

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Voamos um tanto a esmo, Josué consultando seus mapas, que não eram cartas aéreas, mas um roteiro mágico desenhado por ele mesmo, de que me admirei, ao tê-los nas mãos, pela sua singularidade e beleza, cheios de signos, e difíceis de entender. Tratava-se das cartas do sonho de um visionário, para conduzir um princesa numa trilha de menestréis, para apresentá-la a si mesma... e ao povo, simultaneamente. Era uma dessas coisas que comoviam a gente, pelo menos a mim, que percebi o quanto era venerada por aquele homem, aquele sertanejo, que por si mesmo era também a alma do interior deste país.
Josué, afinal, em vez de ir em frente, que nos faria entrar em breve no sertão do Piauí, “onde tanto boi berra”, como dizia Guimarães, e onde eu pensava visitar Niéde Guidon, lá na Serra da Capivara ensinando o povo a mexer espátulas e pincelzinho para salvar desenhos dos nossos índios de 100.000 anos atrás, decidiu fazer uma volta quase completa, uma guinada para trás e um pouco para o norte, anunciando que iríamos para o sertão da Paraíba, para a cidade de Princesa Isabel, que ele dizia separatista, desde o tempo de José Pereira Lima. Ele achava que ali eu seria devidamente homenageada e compreendida. Mas, se eu não me sentia mais incompreendida, desde que saíra da casa de Giuseppe e Fiora, que não me levavam a sério, e estavam apenas devorando meu corpo! Por falar nisso, eu tinha saudade daqueles italianos, principalmente de Fiora, que me amava, sem nunca poder entender, o quanto, misteriosamente eu era parte desta terra, e talvez tão primitiva e mágica quanto este sertão, apesar da minha aparência européia. Não, Fiora e Giuseppe, eu não poderia viver na Itália com vocês como queriam. Era tarde demais, minha alma fora forjada pelas forças telúricas do Pampa e do Sertão, e consagrada aos brasileiros, na sua universalidade incompreensível para alguns. È por isso que os artistas brasileiros são tão apreciados lá fora. Pela sua universalidade, quanto mais puros ou primitivos, mais universais. Diante de meus olhos desfilavam os quadros de Portinari, de Di Cavalcanti, de Tarsila, de Vicente do Rego Monteiro, de Volpi. Desfilavam as figurinhas de barro de Vitalino, as grandiosas esculturas do italiano Vitorio Brecheretti, que assinava em francês, Victor Brecheret, para ser mais respeitado! A musica portentosa de Vila-Lobos garimpeiro sonoro, que mergulhava as mãos nos rios das florestas do Brasil, ao som do canto do Uirapuru, para colher pepitas de ouro e canções infantis. As maravilhosas marinhas sintéticas de Pancetti, e as montanhas visionárias, com mil igrejinhas e balões das Minas de Guignard. As fachas mastros e bandeirinhas gótico-caipiras do grande Volpi, colorista supremo assim como Arcangelo Ianelli. A prosa erudito-matuta do grande João Guimarães Rosa, que descobrira a poética do jagunço; a irreverência reverente do paulistano Mário de Andrade, grande compilador da pureza das criações do povo, descobridor da nossa preguiça criadora. A pura pintura caipira de José Antonio da Silva e a do português-goiano Poteiro. As pinturas e cerâmicas arcaicas ático-sertanejas do pernambucano Miguel dos Santos, e as fortes pinturas do goiano Siron Franco. E a literatura e o humor do imenso Ariano Suassuna, codificador do Armorial, e criador de João Grilo e Quaderna; a xilogravura mágico-heráldica de Gilvan Samico; a pintura onírico-nostálgica de Helenos, evocadora dos sonhos de Olinda e Recife; a acurada e forte vocação pictórica do paraibano João Câmara; as esotéricas e iniciáticas aquarelas e obras gráficas das primeiras damas da gravura brasileira, Renina Kats, Maria Bonomi, e Celina Lima Verde; as mágicas xilogravuras de Goeldi e Lívio Abramo; também o “novo cordel” de Guilherme de Faria, grande desenhista e litógrafo de cunho zen-europeu, redimido ao descobrir tardiamente o poeta sertanejo, e afinal o Brasil, em si mesmo! E para finalizar, este primeiro desfile, o menestrel medieval-matuto, violeiro e cantor erudito-“sertânico”, o sublime Elomar Figueira!
Eu fiquei muito tempo, um tempo indefinido, em transe diante este desfile que se passava ante os meus olhos de dentro, com o vento em meu rosto evaporando minhas lágrimas de comoção com este Brasil, cuja riqueza nenhum político podia dilapidar. E rumávamos para o sertão do coronel Pereira Lima, que fundara o território livre de Princesa, única cidade independente da União dos Estados brasileiros, que camuflava até hoje essa sua autonomia, nos corações secretos de seus habitantes, segundo Josué me informara. Ali eles me reverenciariam como a herdeira da princesa Isabel, a Redentora. Aquilo era demasiado para mim! Josué estava delirando novamente. Quem sou eu? Uma simples gaúcha, que não estava certa nem da minha legitimidade naquele Pampa, já que era descendente de alemães, e açorianos, e nascida sugestivamente numa estrada, pelas mãos de meu pai, que me arrancara do útero de minha mãe, como um fórceps poderoso de carne, e puxando a placenta sangrenta, a examinara, ali na beira da estrada, como um especialista, abandonando em seguida, ali, aquela posta de carne logo atacada por um guará, segundo me contou, quando ainda menina, para me impressionar com a crueza da vida, para equilibrar o meu sonho, com grande eficácia. Não Josué, se eu fosse uma guria de hoje, urbana, eu diria que me farias “pagar um mico”, mas no fundo, eu continuava a me deixar levar, pois minha curiosidade era maior. E o pavão ratificava a “espera” antiga do povo, e eu também sentia aquelas ressonâncias internas misteriosas, que eu precisava conferir.
E assim o Pavão voava silenciosamente sobre o sertão, apontado às vezes lá embaixo por uns viandantes, andarilhos, talvez famintos e sedentos, que punham as mãos em aba sobre os olhos para protegê-los do sol inclemente enquanto observavam a passagem do Pavão que lhes infundiria, talvez, nova esperança.
Como a viagem ia ser longa, eu pedi para o Josué colocar no automítico, e deitar-se ao meu lado no bojo da nave. Eu precisava ser acariciada, para a minha pele florescer e chegar bem bonita em Princesa. E foi o que Josué fez, possuindo-me em doze posições do Kama-Sutra, com sabor nordestino, culminando sempre com a dorzinha acalentada, no meu trazeiro, que me enternecia, e a ele também. Seu machismo natural, sertanejo, ficava apaziguado depois de tomar-me pr trás, com força e dolorosamente, despejando sua carga. “Semen retentum venenum est”, era o único mote latino que meu amado conhecia, sem saber latim. Depois, com minhas aberturas latejando ainda voluptuosamente, eu adormeci e sonhei:
Eu estava andando na Caatinga (curioso: eu voava no real, e andava sobre o solo em meu sonho!) e chorava. As lágrimas rolavam e embebiam a terra, deixando um rastro verde por onde eu passava. Então, no meio da caatin ga seca à minha frente, me vi diante de um tropeiro, que trazia odres de couro cheios de água, pendentes do lombo da mula onde estava montado. Eu não via o rosto do tropeiro, pois tinha a vista nublada pelas lágrimas. Ele, por sua vez derramava suas próprias lágrimas que embebiam a terra sem fazê-la florir encontrando as minhas. Aí, acordei, e quis crer que o tropeiro sem rosto só podia ser o Josué, mas lembrei-me do axioma junguiano: “o sonhado só se refere ao sonhador”, e percebi que o tropeiro era também um alter-ego, isto é, o sertanejo que eu tinha na minha alma e cujo destino estava ligado à secura daquela terra. Mas um ano depois, quando narrei este sonho ao cordelista Guilherme de Faria ele, inspiradamente escreveu isto:


Romance do Tropeiro

( Cordel de Guilherme de Faria )


1
Esta é a estória de um tropeiro
Chamado Salustiano
Que moço, mas não lampeiro
Morreu não faz nem um ano.

2
De toda a sua curta vida
Só sobrou um episódio,
Que na andança de sua lida
Nunca conheceu o ódio,

3
Percorrendo esta chapada
Que ainda não tinha estrada.
E contou-me com candura
Sua estúrdia aventura:

4
Levava uma tropa de mula
Para vender em Cercado
Por inteiro ou no picado
Pr’um tal de Seu Abdula

5
Mas eis que encontrou, então
No meio dessa caatinga
Um tipo de um barbudão
Cercado de urubutinga.

6
Vestia um camisolão
E andava c’um cajado
Tangendo neste sertão
Todo um invisível gado

7
Os óio meio encovado
Pediu um pouco de água
A boca como uma cova,
A goela como uma frágua.

8
Sendo moço destemido
O nosso Salustiano
Não fez de desentendido
E nem lhe apontou um cano.

9
Viu que era um louco de Deus,
Coisa comum no Sertão,
Entanto que sua visão
Estava mais p’rum adeus.
10
Estendeu-lhe a caneca
E pegando o seu odre
Encheu a dose do pobre
Como o tributo da seca.

11
Mas eis que o peregrino
Revelou seu desatino
Derramando sua porção
Todinha naquele chão.

12
A terra dura engoliu
Sem deixar nenhum vestígio
Que o sol batia de rijo
E o pó fez que nem viu.

13
O tropeiro deu um pulo
Gritando Afe! Ó xente
E picando o seu mulo
Só tratou de andar pra frente.

14
Encontrou bem lá pr’adiante
Um menino, e então parou,
Que pediu água e imitou
O gesto do viandante.

15
Só deixando indignado,
Pra que um tropeiro afugente
Jurando ter terminado
Seu trato co’aquela gente.

16
O tropeiro se afastou
Daquele pobre estrupício
E para trás nem olhou
Pra não lembrar do esperdício.

17
Eis que bem mais pra frente
Lá onde o sol bate rijo
Que nunca lá se viu gente
Que desperdiçasse mijo

18
Avistou ao longe um vulto
Diferente, de verdade.
Pondo a mão como uma aba
Definiu uma beldade

19
Tão espantosa e fatal
Que beleza no Sertão
Só no Juízo Final
Que trará Dom Sebastião.

20
Mas a bela sertaneja
Quando se aproximou
Deslizou sua forma andeja
Que ele mal enxergou
21
Que só o que o moço via
Era a água da paixão
Que dos olhos lhe escorria,
Que essa umedecia o chão!

22
Mas a bela então passou
Sem nem deixar a certeza
De que mesmo a avistou
Nesse mar sem correnteza

23
Dessa Caatinga e da lida
Que não permite a beleza
Senão uma vez na vida
Nesta Sina sertaneja.

FIM
Notem que o cordelista colocou-se na perspectiva de um tropeiro real, portanto modificando um pouco, talvez o sentido oculto da minha visão interna, mas assegurando a beleza lírica e o mistério do sonho original que lhe transmiti e que o inspirou. Aliás, adoro esse cordelista, que é também o artista que me descobriu no meu auto-exílio paulistano, e que ilustra com seu traço de pincel Zen, os meus poemas em edições de cordel, ao contrário de seus próprios cordéis matutos, em que ele muda de estilo e torna-se um xilógrafo primitivo ao ilustrar a capinhas. Trata-se de um inusitado fenômeno, que poderia ser tributado a um heterônimo que ele perdeu a oportunidade de criar, assinando o seu próprio nome, o que, a meu ver, vai causar confusão ou dúvidas no futuro.
Mas prosseguindo no meu vôo no Pavão, com Josué, e com minha sensualidade à flor da pele, avistei ao longe a cidade que Josué anunciou como Princesa Isabel. Tratei de vestir-me, pois estava voando pelada a horas para ser “comida” o tempo todo pelo meu amor, que era uma forma de voar que me parecia inspirada no tapete voador das mil e uma noites, não sei bem por quê.
Com meu vestido branco, de rendas aplicadas, da Serra Talhada, eu estava pronta para o que desse e viesse, ao descer no meio de um campo de futebol de várzea, onde estava havendo uma festa com apresentação de pelejas de repente. Mas a multidão começou a gritar erguendo os braços ao ar, e muitos se ajoelhando. Ia ser um reboliço. Quase pedi para o Josué subir novamente e fugirmos dali. Quando as rodas da nave cujas calotas eram os pés do pavão, tocaram o solo, fomos literalmente arrancados de dentro, e carregados acima das cabeças num delírio de massa que me apavorou. Tive medo de ser dilacerada canibalisticamente, essa é que é a verdade. A “princesa” demorara demais para voltar, se é que ela aqui estivera um dia, como o povo acreditava. Mais de cem anos! Era tempo demais para esperar o retorno de uma redentora. Que eles não esperassem milagres da minha parte, porque senão eu os decepcionaria e acabaria na “zona”, irresistível e perturbadora atração do meu espírito desde criança.Porque eu sempre pensava nisso se nunca fora capaz de me vender, na acepção da palavra? Eis aí um outro mistério. Mas eu só sabia que, sendo tão bela, e artista, eu tinha a secreta fantasia de repartir essa beleza e as delícias dela, por todo um povo, como eu sonhava fazer com as minhas artes. Sei que pareço doida, e lembro-me que minha mãe uma vez chamou-me de “pequena Messalina”, querendo ofender-me, mais do que censurar-me.
Agora eu estava ali começando a ter minhas rendas arrancadas, como lembranças ou “relíquias” mesmo, esta era a verdade, e já começavam a arrancar pedaços do pano do vestido, e não tardaria a ficar pelada nas mãos daquele povo. Aliás, temi um estupro coletivo quando me viram totalmente nua e tremendo de medo, com a mão cobrindo pela primeira vez as minhas partes, e outra, os meus seios. Mas... surpreendentemente, a multidão se afastou um pouco, fazendo uma roda comovida, em torno de mim, olhando minha nudez, espantosa para eles, pela minha alvura, eu percebi. Então, uma mulher, adiantou-se com uma toalha de renda, talvez de um pic-nic na relva, pois lambuzada de mel e geléia aqui e ali, e envolveu-me antes que eu desmaiasse para fugir, em meu espírito, daquela situação. Nem as minhas sandálias eu tinha nos pés, que estas também tinham sumido, e assim abraçada por essa boa mulher, fui sendo levada por ela, para uma carroça onde me fez subir e carregou-me conduzindo com as rédeas na mão, e instigando o cavalo magro a despertar de sua apatia, com um ruído de seus lábios, como beijos no ar. A roda da multidão se abriu em silêncio reverente, finalmente e deixou-nos partir.
Dei-me conta, muitos minutos depois, de que Josué sumira.


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Capítulo quinto

A cigana Rafisa



A carroça andou muito tempo seguida pelas crianças, que afinal foram ficando para trás, e eu, enrolada naquela toalha ao lado daquela mulher, mantinha os olhos baixos, estranhamente envergonhada com aquilo que eu pensava ter sido um fiasco, quando ouvi, pela primeira vez a voz daquela que eu iria conhecer como Rafisa. Dei-me conta aos poucos, na pequena viagem através de uma estradinha que atravessava um bosque, que eu estava numa carroça peculiar, muito decorada, na verdade um carroção de ciganos! Olhei para a minha salvadora e vi uma mulher morena e linda, com grandes olhos mouriscos e uma cabeleira indomável, de cigana, que lhe dava o aspecto da... Medusa! Eu estava diante da cigana Rafisa, ela se apresentou, estendendo-me sua mão morena e logo pegando minha mão muito branca na sua, virou-me a palma para olhar rapidamente, talvez por vício profissional. Não! Não tardei a perceber que ela viu tudo, num átimo, na palma da minha mão e iria me revelar aos poucos, na nossa convivência com a ajuda também de sua misteriosa bola de cristal que brilhava até no escuro, como um diamante redondo e gigantesco. Mas ali, na boléia de sua carroça, ao se apresentar, como boa anagramista* que sou percebi que seu nome derivava da palavra Safira, que aliás, era sua pedra de toque, e da qual ela carregava no peito um maravilhoso exemplar de bom tamanho, pendurado num modesto cordão de fibras trançadas, talvez para minimizar a atenção sobre seu enorme valor.
Minha hospedeira, eu já podia tratá-la assim, pois ela habitava aquele carroção mesmo, e se tornaria também uma amiga inesquecível, disse, assim que paramos:
—Alma, você está melada de geléia e mijada, eu reparei. Além disso está escorrendo outros sumos, nota-se. Por isso está tão envergonhada! Mas não precisava, o seu sucesso foi total, maior do que você pensa. Logo terei que esconder você. Por ora, vou banhá-la. Fique embaixo da carroça que despejarei um pote de água pura de fonte, em cima de você. Vamos lá.
Agradeci mais envergonhada ainda, pois nada escapava ao olhar arguto daquela mulher. E eu tomei então um dos mais gratos banhos da minha vida, com um pequeno sabonete estranho, com cheiro de ervas que ela mesmo fazia, e que deixou-me refrescada e purificada, pois cá entre nós, centenas de mãos tinham passado pelo meu corpo em segundos. Depois ela me pôs para dormir com um desvelo maternal, dentro do carroção, sobre tapetes macios, entoando um acalanto exótico, um tanto oriental, em língua desconhecida, que me fez adormecer num sono repousante, sem sonhos. Eu iria descansar como nunca, depois de tanto tempo, de tantas emoções. Dias depois eu iria saber por ela, que aquele era um sono de morte, que era um segredo do seu povo, que sabia manipulá-lo, para desfragmentar a vida de suas impurezas. Uma espécie de catábase* sem memória, mas da qual ela podia num momento, quando eu me dispusesse a isso, fazer aparecer na tela da mente, sob seu mesmerismo* cigano, as imagens aparentemente perdidas dessa descida.
Eu iria me tornar a discípula dileta da grande Rafisa, em exatos dezesseis dias, em que estive com ela em seu carroção, em suas mãos, e... nos seus braços.

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Naqueles dias maravilhosos nos arredores de Princesa, eu era a hóspede da cigana Rafisa, que era a mais célebre daquele sertão, e recebia visitantes que vinham de longe para consultá-la, para saber do presente e do futuro, ou simplesmente pedir o seu conselho. Eram coronéis, músicos, pequenos e grandes comerciantes, professoras primárias, e na verdade todo o tipo de pessoas em crise, ou com problemas de carência, simplesmente. Mas todos a procuravam pela sua sabedoria. As suas artes mágicas ela restringia para os grandes clientes ou para as suas simpatias anímicas. Rafisa os recebia quase como uma benevolente terapeuta, mas na verdade seu interesse era basicamente pelas questões do coração. Era uma maravilhosa alcoviteira, na verdade. Mas naqueles dias eu presenciei um encontro e consulta, escondida atrás de um biombo, com sua autorização, e que me impressionou tanto, que registrei no meu diário, mostrando-o depois para o meu cordelista predileto, o Guilherme, que compôs esta obra-prima, que se tornou o carro chefe de seus recitais, a ponto dele o declamar com maravilhosa interpretação dramática, de memória:


Romance da Vidência

Cordel de autoria de Guilherme de Faria
1
Preparem a sua emoção
Para um caso do Destino
Vou usar todo o meu tino
Pra cantar sem violão

2
Só preciso achar o tom,
Que a música deste poema
Cria seu próprio sistema
De silêncios e de som.

3
Havia nesta divisa
Uma cigana arretada
O seu nome era Rafisa
Parecia alumiada.

4
Tinha o dom da profecia
Mas, cassandra malfadada
Era sempre acreditada
Só depois que acontecia.

5
Aí houve o incidente,
Que chegou no seu terreiro
Um capiau renitente
Que era um pobre ferreiro.

6
Vinha montado sem sela
E embora fosse cascudo
Era bonito e parrudo
Sem papos nem xurumela.



7
Rafisa (quase esquecia )
Era um pouco desgrenhada
Também tinha a latumia
De uma Medusa da estrada.

8
Quer dizer: era bonita
E até muito faceira
Descontada a cabeleira
E a saia sarapintada

9
O matuto desmontou
E tirou o chapéu de couro
Parou um pouco e olhou
Com aqueles olhos de mouro.

10
“Siá Rafisa, venho vindo
De muito longe, seguindo
A fama de vosmecê,
Queira pois me recebê.

11
Venho da Pedra Preta
Um raso onde num chove
Desde a noite do cumeta
Que ainda o povo comove.



12
Mas num vim pedir trovão
Que num é de sua alçada
É lance de coração
Ou de vida amargurada

13
Me deixa entrá que lhe esprico
Siá Rafisa, ocê me escuta,
E se falo, não discuta
Que se calo, me comprico.”

14
Rafisa olhou o matuto
De cima a baixo e botou
A mão no colo e virou
Com aquele ar arguto

15
E na mesa da cozinha
Sem a bola de cristal
Sentou depois da voltinha
Com seu jeito sensual.

16
“ Como digo a vosmecê
Ando muito agoniado
Duma paixão sem mercê
Por um sonho inalcançado

17
Ela se chama Lazinha
E nem sabe que eu existo,
Filha do coroné Xisto
Tar quar uma princesinha.

18
Quando passa amuntada
Joga moeda no ar
Pra meninada catar
No meio da gritaiada.
19
Um dia chegou na frágua
Pedindo um pouco de água
Bebeu sem me oiá, pensei,
Ou fui eu que não oiei.

20
A não ser, pro seu pezinho,
Carçado cuma alpercata
Fina, de ouro e prata
Mostrando aqueles dedinho

21
Que prestei muito sentido,
Para minha perdição
O segundo mais comprido
Que o primeiro, como a mão.

22
Depois disso, ó minha mágoa,
Só brinca de esconde esconde:
Já não quis mais pedir água
Na casa deste visconde.

23
Siá Rafisa, me diga
O que faço pra arrancá
Do meu peito essa urtiga,
Pra dessa paixão me livrá?”

24
A cigana reparou
Nos olhos do capiau
Botou cartas e apontou
Um modesto dois de pau.

25
“Home” disse a cigana,
“Tá escrito aqui tão claro,
E essa carta não me engana,
Que não vou nem cobrar caro.
26
A coronelinha vai
Beber água em sua palma
Mas num posso dizer mais
Pelo bem da minha alm27
27
O matuto se afastou
Semeado de esperança
E pra sua forja voltou
Terminada a sua andança
28
Uma semana passada,
Voltou ele galopando,
Parecendo alma penada,
E chegou logo gritando:
29
“Siá Rafisa, bota a sorte
Que quero o dia saber
E a hora da minha morte
Para o quanto vou dever
30
Porque de hoje não passo:
A moça veio beber
Da parma deste palhaço
Mas foi de tanto sofrer

31
No momento do trespasso.
Caminhou mais de três légua
Sangrando quase sem trégua
Pra vir morrer no meu braço



32
Baleada no pulmão
Por um pretendente em mágoa,
Morreu bebendo da água
Da parma da minha mão!”

FIM

Esse caso quase traumatizou Rafisa, pois percebeu, neste dia o quanto ela própria era ironizada pelo destino. E não quis ensinar mais nada.
Entretanto seu apego a mim cresceu e ela não queria mais que eu partisse, o que para uma cigana era no mínimo uma incoerência, pois denotava o começo de um sedentarismo sentimental, que podia destruir a sua reputação. Bem, querido leitor, devo reconhecer que isso é um eufemismo para me referir ao fato de que Rafisa... apaixonou-se por mim, para falar mais claramente. E eu, deixei-me amar por ela, entregando–me com paixão, como é do meu feitio. Eu a amei... sim, leitor, como a todas as pessoas a quem dôo meu corpo e meus carinhos. O Josué? Acabou descobrindo meu paradeiro, sobrevoando com o Pavão a região e descobrindo, afinal, o carroção entre as árvores. E como era do seu feitio, assim que posou, disse-me como se estivéssemos ausentes ou separados há apenas meia hora:
—Alma, apronte-se que vamos partir, despeça-se de Rafisa, mas peça a ela que me receba para uma consulta. Preciso saber quem viverá mais, Ludugero ou eu. O que ela disser interpretarei ao contrário porque já conheço essa Cassandra*, e sei como receber seus vaticínios “infalíveis”.
Aquilo me soou como ironia, quase como sarcasmo, e eu estranhei, pois não era do seu feitio. Percebendo minha expressão indignada, Josué, completou;
—Vamos Alma, chame Rafisa, ela é uma velha amiga... que pensava você? Nós nos adoramos, e eu deixei você em boas mãos. Na verdade, Alma, estava tudo combinado. Eu queria que vocês ficassem amigas, e conhecendo-as, sabia que teriam um caso amoroso. Você me deve isso. Ela é preciosa não é? Digna de você, Alma. Mas infelizmente não podemos ficar para vê-las juntas como gostaria
Dei-lhe um pequeno tapa no rosto, mas com um sorriso. Adoro o cinismo puro. Neste momento Rafisa saiu do carroção e com seu andar ondulante, como uma serpente mourisca, aproximou-se e beijou Josué na boca. E depois a mim. Eu estava surpresa. O roteiro do pavão de Josué estava muito bem traçado, todo planejado. Eu me sentia um tanto manipulada, mas minha relação com o Josué tinha sido assim desde o começo. Ele era misterioso, um manipulador sutil, e no fundo eu adorava tudo isso, esse mundo de surpresas que ele me apresentava. E eu supunha que havia ainda tanto a saber, sobre ele, sobre nós. Sobre o nosso passado. Talvez Rafisa pudesse me desvendar os segredos do nosso passado comum. Com esse pensamento na mente, eu disse:
— Josué, não partirei antes de uma última consulta com a Rafisa. Vocês me devem isso, já que estavam combinados e sonegaram um segredo que devem conhecer tão bem, e sobre o qual falaram certamente tantas vezes: Quem sou eu, Josué, quem és tu, por que me esperavas há tanto tempo como me disseste há cinco anos atrás?
Josué e Rafisa me olharam profundamente, ao mesmo tempo, e me enlaçaram lentamente com seus braços, numa espécie de dança sincronizada, cigana, voluptuosa. Foram me conduzindo naquela espécie de música inaudível, lenta, mesmérica, ao mesmo tempo que se desnudavam e a mim, deixando um rastro de roupas leves, até as portas traseiras do carroção, onde penetramos de quatro, os três sobre os tapetes macios da cigana que esperavam há muito tempo nossos corpos, juntos naquela dança, agora horizontal, de paixão.
E tivemos, Rafisa e eu, o ménage-a-trois que eu há tanto tempo acalentava em meu desejo por Josué, e que não tivera tempo de desfrutar com a querida Luzia. Era glorioso. E eu queria me dissipar nos braços daquelas duas belas criaturas, que sabiam tanto sobre mim.
Quando despertei ali sobre aquela alfombras aconchegantes do ninho da Medusa, como eu me acostumara a chamar a cigana que me acolhera, fui beijada por ela que ainda nua, com sua magnífica pele azeitonada, luzidia, sentada em posição de lótus, com a sua bola de cristal que brilhava na semi-penumbra, pousada entre seus joelhos entre nós que formávamos um triângulo em torno daquele objeto místico. A luz misteriosa que o cristal emitia banhava nossas peles em três tons, do alabastro iluminado da minha, ao bronze de Josué. Então, Rafisa, cujo olhar fixo dava medo, como o da Medusa, começou a invocar alguma coisa, talvez os espíritos de sua “lâmpada” mágica, numa língua estranha, impenetrável para mim:


Então, espantosamente, a luz sutil que emanava daquela esfera, pousada na sua base de madeira escuraexpandiu-se, ofuscou pelo menos a mim e Josué, enquanto a jovem Medusa lia meu passado com a clareza de uma reminiscência:
— “Alma, princesa das terras de um Norte mais distante, que veio depois da batalha que engoliu o rei no areal, passaste por mais oito vidas, antes de encontrares o Príncipe do Sertão, em teu exílio de séculos. Poucos amores como esse viram a luz neste mundo. Gerador de batalhas sangrentas, esse amor semeou de corpos e irrigou de sangue o solo seco de outrora, que é o mesmo em que pisamos. Uma noite já profetizada, a princesa foi carregada pelo seu amor na nave que assombrou aquele mundo, que ainda é o que vivemos. Duas famílias inteiras se extinguiram, quase não sobrou semente para a próxima semeadura. Mas a Alma voou e trouxe a chuva redentora. O verde brotava sob sua sombra voadora. Na proa, um nome estrangeiro, que o povo desentendeu: Ananke, de obscuro sentido. A princesa no bojo da nave, e no seu próprio bojo, carregava o herdeiro Nonato. Como seu nome, este não viu o sol. Sobre os pastos e jaqueiras de Ludger, príncipe germânico desterrado, do lado negro do branco norte, a nave pássaro fez deslizar a sua sombra. Na colina sobre a chapada, o duelo fez ouvir seu tilintar de ferros, urros e gemidos, e a princesa foi assegurada ao seu amor. Mas por apenas sete luas felizes, até que o duplo de Ludger posicionasse o bronze refundido das igrejas, e explodisse não mais em badaladas, mas num estrondo que trouxe o luto e a paz amarga de uma geração. Eis que a princesa se ergue agora do Raso das Sombras, e volta, reivindicada pelo seu amor redivivo. Mas... atentai e vigiai! Ludger permanece em seu herdeiro, e espreita, esperando a sua vez.” .
Eu olhava Rafisa, sentindo-me arrepiada inteira, enquanto Josué também parecia em transe. Eu analisava as palavras daquela “professia do passado” e encontrava muitos dados novos ao que eu já sabia por dedução lógica:

1 O rei morto no areal foi Dom Sebastião , o Venturoso, depois chamado “o Esperado”
2 As famílias quase se exterminaram.
3 O nome na proa do Pavão de outrora era Ananque, a deusa do Destino dos antigos órficos( agora era “Alma do Sertão” ).
4 A Alma minha antecessora, estava grávida, e a criança não chegou a nascer, pois foi morta no ventre (Nonato= não nascido), com ela (o que me pareceu a tragédia maior).
5 Ludugero era descendente de uma família alemã e era mau.
6 Antes da tragédia houve um duelo entre os dois rivais: o antecessor de Josué e o de Cipriano Ludugero. E o Josué vencera.
7O casal, livre do rival, foi feliz por sete semanas.
8 Um irmão gêmeo de Cipriano tomou as dores do irmão e resolveu vingá-lo, roubando os sinos das igrejas da região para fundi-los, forjando um canhão de bronze, com o qual atirou na nave em pleno vôo.
9 A paz entre as duas famílias veio com a morte do infeliz casal.
10 Uma encarnação depois, eu, Alma Welt, fui chamada por Josué, a reencarnação de meu antigo noivo de mesmo nome.
11 Ludger, isto é Cipriano Ludugero, é o herdeiro atual desta rivalidade da qual eu continuava sendo o pivô.

Depois dessa experiência esotérica, eu não tinha motivos, na verdade, para ficar mais tranqüila. Dei-me conta de que eu continuava no olho do furacão. Mas eu tinha muito medo das profecias mesmo, de futuro, com sua ironia cruel e sempre surpreendente. Quem venceria no final? Eu tinha medo de saber, já que eu era o prêmio. Eu seria morta na disputa, novamente, como minha antecessora? Eu cairia nas mãos de Ludugero? Se isso acontecesse, quereria dizer que Josué seria morto? Ai! Eu estava apavorada.
Saímos daquela penumbra do carroção de janelas fechadas, depois que a bola de cristal apagou-se, por assim dizer, e Rafisa parecia extenuada, semi- desfalecida nos braços de Josué. Ficamos ali, cuidando dela, depositada sobre a relva, naquela manhã belíssima cujo céu azul parecia tão inocente, sem nuvens, claríssimo como é, na verdade, o céu inclemente da seca deste sertão. Olhando aquela linda morena ali, deitada, nua, eu me enterneci com sua beleza misteriosa, agora estranhamente frágil, vulnerável mesmo, após o transe. E beijei-lhe levemente os lábios para despertá-la. Ela abriu devagar os grandes olhos negros, pestanudos, misteriosos, do Oriente, e aos poucos o fogo de sua alma intensa, surgiu neles novamente. Que mulher!
Qual seria, por sua vez, o destino daquela jovem feiticeira benfazeja? Tornar-se-ia ela, um dia uma bruxa velha que daria medo, pelo aspecto ou por seus vaticínios lúgubres? As bruxas velhas foram jovens algum dia e talvez belas. Estranho destino o dos oráculos! Haja vista Cassandra e sua maldição: jamais ser acreditada, com toda a sua competência. E afinal, morrendo nas mãos de Clitemnestra, a mulher do seu inimigo e captor.
Eu pedi a Josué, ali mesmo, na frente de Rafisa:
—Leva-me daqui, Josué, leva-me para mais longe de teu inimigo. Tenho medo, Josué, pois vi a cobiça em seus olhos, na vez que o avistei de mais perto. Esse homem terrível... ele me quer, Josué, e não poupará esforços. Vai perseguir-nos até o fim do mundo. Mas não quero o confronto de vocês dois, Josué. Nenhuma profecia pode mais tranqüilizar-me, pois tenho medo de que minha felicidade presente será cobrada no futuro. Ananque é uma deusa cruel, Josué!
Josué abraçou-me afagando minha cabeça aninhada em seu peito, da maneira paternal que os homens fortes têm de serem carinhosos e protetores. E eu me senti uma guria, como outrora, na estância, nos braços de meu irmão incestuoso e amado.

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FIM DA PRIMEIRA PARTE


ALMA WELT



( SEGUNDA PARTE )

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A CASA DE LUDGER


Capítulo primeiro
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Ludugero persiste


Despedimo-nos de Rafisa, emocionadamente. Eu a abracei como irmã e amante, e também como sua discípula dileta. O quanto eu apreendera com esta cigana, com esta maga predestinada, vocês, meus leitores, não poderão saber a não ser em parte. Rafisa não desprendeu seus olhos dos meus, nesta despedida, o fulgor e a insistência do olhar impressionante desta Anti-Medusa benévola aquecia o meu coração, e eu levaria este olhar comigo para sempre e o veria nas lindas noites do sertão estrelado, com também nas do meu Pampa, se me fosse dado um dia voltar às verdes pradarias do Sul.
O “Alma do Sertão” nosso Pavão motorizado, silencioso, subiu na vertical, pairando pela última vez sobre o carroção que fora como um lar para mim, por dezesseis dias, e sobre cujas inusitadas tapeçarias do Oriente eu rolara, abraçada a um corpo tão belo como o meu, mas moreno como sombra acolhedora no deserto, como oásis naquele sertão solar, embora estivéssemos no meio de um agradável bosque. Mas refiro-me à toda aquela viagem da minha alma pela essência seca do chão duro daquele nordeste, que não queria ser considerado um desterro desta Alma, mas seu retorno ao lar, sua casa paterna imponderável, que eu ainda não reconhecia em totalidade. Ai! Que destino o meu! Sou frágil, não cresci completamente, sou na verdade a femme-enfant que eu nunca quis reconhecer, em minhas perplexas contradições. Tenho medos como uma criança, quero ser protegida nos braços de um homem forte. E, no entanto, em que aventuras me meto! Por que sendas, por que trilhas o destino me arrasta, amada por homens e mulheres, mas sem pouso, sem um lar verdadeiro, de casa tão distante! Mas, não será assim todo destino humano? Desterrados do Pai, erramos na Terra, e não temos guarida a não ser como hóspedes passageiros, dependentes “da bondade de estranhos”, como disse Tennesse Williams, pela boca da dolorosa e bela Blanche Dubois, com quem tantas vezes me identifico. Sou patética eu sei, sou romântica e só quero ser amada até o apaziguamento total, por um homem perfeito, um príncipe, imagem projetada do irmão dos nossos sonhos ou de um pai eternamente jovem. Sou incestuosa portanto, e assumida. Deslumbrada na infância com a face invertida do meu espelho, onde enxergava não a minha face, mas a do lânguido Narciso, contra-face de sua ninfa Eco, ecoando, ecoando em círculos concêntricos, em torno de uma flor desesperadamente branca, curvada sobre suas águas.
Voávamos agora, voávamos, e Josué já consultava as suas incompreensíveis cartas, enquanto eu meditava sobre o mistério da cidade onde pousáramos e que eu não conhecera, e que talvez nem tivesse realmente me visto, a não ser nua, isto é, não reconhecera sua princesa, pois agora estava claro: Rafisa com suas artes mágicas me escamoteara aos olhos da população. Minha descida no Pavão não constaria jamais dos anais da cidade, eu agora tinha certeza, e não pude senão sorrir. Ah! Rafisa, um dia nos reencontraremos? Atravessarás este Brasil no teu carroção puxado pela égua Miranda, coitada, tão magra, e estacionarás no bosque mágico de minha infância, na estância, onde Rôdo e eu correremos ao teu encontro para o abraço comovido de amigos de sangue?
Voamos tanto tempo que, perdidos sobre uma planura inóspita e espinhosa, talvez ainda no sertão da Paraíba (Josué já não tinha certeza de nada) acabou nossa água combustível, até a reserva, sobrando somente o conteúdo do menor dos odres, o de beber. Nós estávamos em apuros. A realidade cobrava os seus direitos a estes dois sonhadores e tivemos que descer, “no vapor” como se diz, para não espatifar-nos contra o solo rachado de uma caatinga seca de cem anos. Descemos da barcaça, com o coração apertado, preocupados, pois a paisagem era terrível, desoladora, e só tínhamos um horizonte indefinido a toda volta, reverberante de calor, cuja linha indefinida ondulava como um delírio de febre terçã.
Quando pus os pés no solo, quase tive uma vertigem de calor, e pensei em primeiro lugar, na minha pele tão branca... Eu iria ficar sardenta, pela primeira vez, e para sempre? Senti dor no meu coração. Mas por quê, por outro lado, eu não me queimara nem um pouco até agora naquela viagem e naquele vento, e minha pele permanecia branca e sedosa como sempre? Aquilo era um mistério, que impressionava até o Josué que não era fácil de se admirar, com nada estranho. Ele, mesmo assim, parece que também pensara nisso, e retirou de sua mala misteriosa, uma sombrinha branca como eu e como o meu vestido rendado, e abrindo-a, entregou-a a mim, para começarmos a caminhada.
Andamos por uma hora sob o sol inclemente e sarcástico como os metais do “ Le Sacre du Primtemps” de Stravinsky, eu, com minha sombrinha branca também debruada de renda, e meu vestido alvíssimo, quase tanto quanto a minha pele, minhas sandalinhas finas de ouro e prata, que eram feitas somente para mostrar meus pés, finos, delicados, com os dedinhos segundos mais compridos que os primeiros, como as mãos, que inspirariam aqueles versos do cordelista Guilherme. Mas eu me refiro a isso tudo para ressaltar o absurdo da nossa situação. Eu era incompatível com aquele deserto, eu que era “filha das verdes pradarias floridas, dos campos de trigo louros como os meus cabelos, e do vinhedo, de uvas rubras como os meus lábios”*. Eu iria morrer esturricada e ficaria ali como uma ossada branca. E não seria identificada em minha brancura óssea, como não o fora Dom Sebastião no areal africano. Afinal eu também não era a “Esperada”? Estes pensamentos irônicos, quase delirantes, denunciavam meu ressentimento, minha amargura nascente. Josué não podia me proteger mais do que o fizera arranjando-me aquela sombrinha que comprara na feira de Princesa, e que diziam ser cópia da que a Princesa Isabel usara na sua passagem por lá. Bah! Tudo sonhos, tudo delírios. Fiora e Anunciada tinham razão eu não era feita para a rudeza deste sertão, eu o subestimara em sua crueza, em sua crueldade. E agora iria morrer!
Mas, então, mesmo numa hora tão penosa e angustiante como aquela, sob um calor de quase 50º Celcius, eu, lembrando-me do filme “Barbarella”, dos anos 60 (que eu vira em DVD), ali, sedenta, exclamei: “CHAMPANHE! CHAMPANHE!”, com minha sombrinha muito tesa e meu ar de lady. E caí numa gargalhada cristalina, nada amarga, que perdeu-se na vastidão daquele deserto.
Então, Josué, que me olhara espantado, neste exato momento apontou o dedo, estendendo o braço em frente, e gritou: “TERRA À VISTA! TERRA À VISTA!” Eu não acreditava, o mundo estava verde novamente, e eu me vi sob palmeiras e coqueirais, jaqueiras frondosas e sapotizeiros que cresciam juntos, sem conflito, às margens de uma cascata e sua piscina azul, no doce país de Cocayne*, digo, da Esperança.
Sim, eu bem tinha ouvido que só o humor salva...

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Ficamos uma semana desfrutando do paraíso e “transando” tanto sem camisinha como se o mundo estivesse redimido, e não houvesse punição para os incautos e os inocentes. Aliás eu já via com bons olhos a idéia de um bebezinho em meus braços, mamando em meu seio, e mergulhando com os botos como o menino da escultura grega de bronze no museu de Atenas, que tanto me impressionara, como a essência emblemática da Idade de Ouro, que eu pensava estar revivendo ali, naquele sertão verdejante, inaudito. Mas, afinal, um dia, enquanto eu acariciava meu ventre e o bico dos meus seios com um ar sonhador, Josué aproximou-se e disse:
—Alma, querida, temos de partir, o mundo nos espera, passaram-se sete anos e eu também só soube disso agora, fazendo cálculos com um aparelho que inventei e que tirei da minha mala de equipamentos. Se ficarmos aqui, seremos esquecidos pela humanidade, e tudo o que passamos antes terá sido em vão.
—Mas, Josué, — eu disse— o que passamos, mal me lembro, e que importância tem, se estamos tão felizes? Vem, toma-me, toma-me mais uma vez, mais mil vezes. Só quero isso, e depois... talvez, morrer em teus braços. Mas dá-me um bebezinho, vê meu ventre crescer, ausculta-o, fala com ele, beija-o através do meu umbigo, tira-o de dentro de mim com tuas mãos, lamba-o junto comigo. Vem, vem, vamos fazê-lo agora!
Josué olhou-me fixamente, abanou a cabeça, e mais uma vez deitou-se sobre mim, que vivíamos nus, e me possuiu docemente.

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Quando completou-se dez anos de nossa chegada a Cocayne (não me entendam mal, nada a haver com o que alguns estão pensando), eu estava mais jovem e saudável do que nunca, e não envelhecera nem um pouco, o que preocupava Josué, não sei por quê, e que para mim era maravilhoso, com o único senão de não poder admirar a minha beleza intocada, num espelho de cristal mesmo, que não havia ali, e somente poder mirar-me nas águas, aliás cristalinas da nossa piscina natural da cascata. Mas eu não engravidava e isso estava tirando-me o prazer da imortalidade e da juventude eterna, que eu já percebia que reinavam ali, naquele paraíso sertanejo. Comecei a aceitar a idéia de partir. Não há perfeição no mundo, e se eu não podia perpetuar-me e nem tinha telas e tintas para pintar, ou papel para desenhar e escrever meus versos, nem admiradores e leitores ávidos das minhas criações, eu não queria a Eternidade! Lembrei-me, das últimas palavras do grande Jean-Baptiste Corot, no seu leito de morte: “Espero que no Céu, haja pintura!”
Então, fiz um esforço imenso para superar a preguiça e o prazer do meu corpo em eterno deleite (eu não tivera sequer um piriri, ou uma dor de dentes, ou de cabeça, nem um simples resfriado, todos as aqueles anos, e me esquecera totalmente da ameaça de Ludugero). Nunca mais voáramos no Pavão, do que, confesso, estava com saudades. Josué com sua habilidade, conseguira levar água aos poucos, durante aqueles longos anos, até encher os odres do pavão num trabalho de Sísifo, ou melhor, de tonel das Danaides, pois o sol da caatinga fazia evaporar uma parte no caminho e mesmo dentro dos próprios odres de maneira que foram necessários dez anos para ter neles uma quantidade razoável para levantar vôo e escapar daquele deserto. Durante aqueles anos nenhuma vez eu o acompanhara nesse trabalho, pois nem sabia que ele fazia isso. Eu tributava suas ausências à sua vida de homem, que precisava afastar-se um pouco de sua mulherzinha e sair com os amigos, esquecendo-me completamente que ali não havia amigos, não havia ninguém. A verdade é que eu me alienara no meu sonho de dez anos, e não vira o quanto Josué se esforçara e até envelhecera um bocado, naquele esforço brutal, quase cotidiano, que eu ignorava. Tive um grande remorso, quando me dei conta de tanto sofrimento do meu homem. Para ele não houvera Paraíso, e sua sina de homem nunca fora renegada. Ele sim, era o herói, e lembrei-me de que isto queria dizer que ele seria capaz de descer aos Infernos por mim, e voltar, se é que ele já não vinha fazendo isso continuamente, há dez anos. Decidi partir com ele.
Josué foi buscar sozinho o Pavão e sobrevoou Cocayne, acenando-me, antes de descer, sobre a grama entre os coqueiros. Naquele momento ele poderia ter se afastado e fugido, deixando-me ali para sempre. Mas isso nem lhe passou pela cabeça, ele me afirmou depois, quando perguntado por mim, que levantara essa dúvida, num lapso de um minuto, em meu espírito. Ele me amava, eu era a sua princesa e ele não me abandonaria, jamais, no paraíso.

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Voávamos novamente sobre este sertão, e eu mal podia crer que se passaram dez anos, já que tudo aparentemente continuava do mesmo jeito lá embaixo: a pobreza, a miséria do povo, as grandes fazendas inúteis, o gado magro, as poucas cacimbas, uns raros açudes só para os coronéis, umas vilazinhas modorrentas, e mais miséria. Mas eu sabia que, descendo, eu me apaixonaria de novo por esse povo, cuja resistência agora tinha mais dez anos, enquanto eu os passara em brancas nuvens, na ociosidade, e nem sequer um poema novo lhes dedicara. Mas se isso acontecera, eu pensava, também fora destino, e talvez Ludugero nos tinha esquecido, e isso era o sentido desta fuga do tempo, que nos fora concedida. Eu não concebera um filho, por razões que eu desconhecia, mas em compensação, que rival ou admirador persiste em sua obsessão por tanto tempo? Assim eu pensava durante aquele vôo de volta ao tempo fluente, ao tempo que corre para o mar do Nada como um grande rio, como o Velho Chico, que eu almejava conhecer, e banhar-me nas suas águas ilustres.
Assim pensando, pedi ao Josué que desse uma guinada para o sul e rumasse para o São Francisco.
Durante o vôo eu percebia lá de cima, que aquele sertão continuava carente e seco como sempre, e eu então lembrei Josué de perseguir as nuvens preguiçosas e atravessá-las para o escapamento do motor do nosso Pavão ionizá-las para que chovessem sobre aquele solo, mas eu estava consciente que o semi-árido que agora sobrevoávamos era um eco-sistema específico, e cabia aos homens e sobretudo às autoridades conservarem e aproveitarem seus potenciais e suas riquezas respeitando essa aridez. O perigo eram represas mal planejadas, que estavam matando o Velho Chico, que era o Nilo daquela região, quer dizer, suas regiões marginais eram a dádiva daquele rio, e estavam produzindo uvas e um vinho melhor talvez que muitos dos nossos melhores, lá no Rio Grande, salvo é claro, o meu Ara dos Pampas*.
Então ao sobrevoar um magnífico vinhedo, que brilhava lá embaixo, no vale do São Francisco, eu pedi para Josué descer, pois eu queria andar novamente entre as uvas depois de tanto tempo. Imediatamente enquanto Josué escolhia um ponto de descida, vimos um povo que corria em direção à nave apontando ou estendendo os braços, e percebemos serem os colonos da vinha, homens, mulheres e crianças, em grande alegria e devoção, como sempre. Mas logo vimos que outro tipo de homens, armados de espingarda cercaram o local provável de pouso, onde descíamos verticalmente, apontando-nos ameaçadoramente os rifles, e dispersando os camponeses. Nos estávamos encrencados.
Assim que as rodas tocaram o solo e botei os pés no chão, fomos agarrados e arrastados com violência para o meio do vinhedo, e ouvi o que parecia ser o chefe deles dizer bem alto, para os outros:
—Pessoal, vamos comer aqui mesmo ou vamos levar pra casa pra comer de noite?
Meus joelhos tremeram. Alguma coisa mudara neste sertão, pois nem mesmo em Princesa, quando descêramos naquele campo de futebol durante uma festa, eu correra tanto perigo, mesmo tendo o povo dilacerado o meu vestido deixando-me nua. Pois ali houvera reverência, idolatria ou mesmo entusiasmo, e eu não me sentira tão propriamente desrespeitada como agora. Eu fiquei apavorada, tanto mais que, olhando para trás para procurar Josué, avistei-o ajoelhado e com um jagunço atrás dele, com um rifle encostado em sua nuca, prestes a atirar. Gritei imediatamente:
—Alto lá, homens. Não se atrevam a tocar-nos! Ludugero está me aguardando e ai de quem nos fizer mal. Vai ter que se haver com ele!
Ao ouvir o nome de Ludugero, o chefe daqueles pistoleiros, estacou imediatamente e fazendo um sinal de suspensão, disse:
—Calma, dona, só estamos conferindo pra ver se vocês não são espiões ou se vieram contaminar o vinhedo, pois estamos perto de começar a colheita e temos de tomar muito cuidado. Vamos levar vocês pro chefe, mas antes temos que examinar o aeroplano, pra ver se tem alguma coisa perigosa pra as uvas.
Senti um imenso alívio, enquanto a arma, tendo sido afastada da nuca de Josué, este se levantou imediatamente com ar indignado. Mas logo percebi que ele estava assim, mas era em relação a mim. Ele desconfiava de mim! Eu podia ver nos olhos deles a pergunta: “Como você sabia que isto eram terras de Ludugero? O que pretendia fazendo-nos descer? Você quer se entregar a ele?”
A essas perguntas, eu só poderia responder: “Não sabia que sabia!” Tratava-se, provavelmente daquela inspiração ou intuição profunda, inconsciente, que Jung denominava “sincronicidade”, para diferenciá-la do fenômeno da coincidência. Mas Josué estava profundamente magoado, intuindo por sua vez, a secreta atração que deveria haver em mim, pelo seu e meu inimigo, por razões ancestrais cujo segredo ele conhecia e ocultava de mim. Por outro lado eu podia só estar ganhando tempo e jogara um nome no vento, no meio do parreiral e... pegara. Vocês escolhem, leitores. Mas o fato é que eu salvara nossas vidas, e Josué deveria pôr isso em primeiro lugar. Mas, como são os homens! Bem, ele tinha uma certa razão, no seu súbito ressentimento. Devo confessar que caminhando naquele parreiral, escoltados pelos esbirros de Ludugero, eu já sabia que ia me entregar a ele. Por quê ser hipócrita com vocês, meus leitores, que já me conhecem tão bem, e de quem não tenho vergonha, pois não lhes conheço o rosto?
Demorei alguns anos para admitir que estava profunda e inconscientemente magoada com Josué por ele não ter conseguido me dar o meu bebê. Ele fizera vasectomia, depois que eu partira quinze anos atrás (contando com os anos de paraíso), e me escondera esse fato. Eu... me sentia traída, e até desperdiçada. Pobre Josué! Como deve ter sofrido nos meus anos de sensualidade plena, ligada à busca da maternidade, que foi a tônica do meu amor naquele oásis de tempo suspenso!
Agora, andando com aquela escolta entre as alas de parreiras carregadas, eu não podia admirar devidamente os grandes cachos sumarentos, que brilhavam como pérolas ao sol daquele sertão, prometendo um novo vinho que conquistaria o mundo. Meus pensamentos estavam confusos, perturbados pelo olhar incisivo, de censura, que eu sentia vindo de Josué que caminhava alguns passos atrás de mim, tacitamente. Eu estava sendo levada, como uma presa ao meu captor, essa é que era a verdade. Como seria esse Cipriano Ludugero, de perto, e... intimamente? Era uma incógnita, e eu tanto poderia estar sendo levada como uma ovelha ao sacrifício, quanto indo ao encontro surpreendente, que inauguraria um novo ciclo em minha vida, com novas esperanças.
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Diante da casa, estava Ludugero. E eu via de perto, o homem que eu avistara a uma certa distância, e meio de cima, naquela fuga de Salgueiro e reparara na sua enorme estatura e imponência. Ali, de perto, eu podia ver que era também um belo homem. O rosto comprido, os olhos encovados de um cinza esverdeado e frio; o grande nariz perfeito, o queixo quadrado, tão másculo! Os lábios finos denunciavam crueldade e a ascendência germânica dos Ludger. Eu estava paralisada, e confesso, fascinada, enquanto esse homem esboçava um sorriso, estendendo um braço e oferecendo-me a mão. Nesse momento ouvi o grito de Josué: “Alma! Alllmaaaaa!” e virando-me eu o vi ser arrastado por dois capangas de Cipriano, e atirado dentro de um carro, enquanto eu corria em sua direção e gritava Josué! Josué!, batendo, batendo nos vidros. O carro partiu cantando os pneus, e eu ainda corri atrás até tropeçar e cair, dolorosamente. Fiquei ali, apoiada nas mãos esfoladas, soluçando amargamente de dor e remorso, até que vi por entre minhas lágrimas, a mão enorme e poderosa de Ludugero, ao meu lado, ainda estendida para mim, oferecendo-me apoio para eu levantar. Ao fazê-lo, senti uma vertigem, meus joelhos fraquejaram e eu tive um semi-desfalecimento, enquanto ele, então, pondo rapidamente o braço sob minhas coxas tomou-me nos braços e carregou-me no colo para dentro de sua casa.
Como eu viera cair ali na boca do lobo? Ludugero tinha sua fazenda na região do pai de Josué, e como eu poderia saber que ele comprara terras ali, no Vale do São Francisco, para plantar uvas e fazer vinho? Jamais poderei explicar isso a vocês, claramente, meus queridos leitores. Provavelmente eu fora atraída pela intensidade da paixão daquele homem por mim, há gerações. Teria seu antepassado me possuído, digo, à minha antepassada, ou a mim mesma numa vida passada? Acho provável. Eu não estava podendo resistir a esse homem, e deixei que ele subisse uma escadaria comigo nos braços para, lá em cima, empurrando uma porta com o ombro me atirasse sobre uma grande cama de dossel, cerrando a porta, a seguir com as costas. Sempre olhando-me fixamente, começou a despir-se, devagar, calmamente, mas com um fogo no olhar.
Então, ah! meus leitores, quase tenho vergonha de contar. Sentindo que não adiantaria resistir ao estupro inevitável, fiz algo também inusitado: ergui, assim deitada, também lentamente, minha saia, e estando sem calcinha descobri meu púbis, expondo-o ao olhar daquele homem. Fiz mais: abri um pouco, deva gar, as minhas pernas longas e brancas, perdição dos homens. A visão do meu corpo nu, da cintura para baixo, que me deixava mais exposta do que totalmente nua, meus pêlos púbicos dourados, ralos, que deixavam a mostra minha vulva perfeita como uma concha rosada, alucinaram meu captor que, nu, com seu imenso falo em riste, assustador, deitou-se sobre mim agarrando meus seios e penetrando-me sem rodeios, com uma estocada dolorosa que foi direto ao fundo de onde partiu o meu grito... de dor e prazer. Sua boca fina colou-se aos meus lábios cheios e sugaram meu alento junto com esse grito. E eu... eu era sua agora, ele me tinha, ele me possuía, e eu era a sua escrava, a sua cadela. Pobre Josué!

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Eu quis saber o que fizeram com Josué e disse a Ludugero, deitada há três dias naquela cama, que ele não me teria nunca mais se fizesse mal ao meu “marido” e se não o libertasse, deixando-o partir. Eu sabia que Josué estava vivo, pois este homem me parecia sutil, apesar de tudo, e não quereria angariar meu ódio ou meu horror. Eu estava certa, Ludugero estava mais apaixonado do que nunca, e isso o abrandava, atenuava a sua decantada crueldade. Ele sorriu e disse:
—Fique tranqüila, princesa. Não foi tocado um fio de cabelo daquele energúmeno do Pavão.
Estarrecida e aliviada ao mesmo tempo, fiquei sabendo naquele momento, que Josué fora levado até o Raso da Catarina, no Alto Sertão baiano, como sua escolha no exílio a que o condenaram, e solto lá no meio da caatinga, com sua mala de migrante, da qual o pobre não se separava, e a carregara caminhando sob o sol por milhares de quilômetros, a pé, até chegar em São Paulo onde se instalou na periferia de onde fazia incursões ao centro da enorme cidade, como marreteiro tão bem sucedido que comprou um táxi. Nos fins de semana se apresentava como razoável repentista e violeiro, tendo até se apresentado no programa da Inesita Barroso, onde contara um pouco de sua triste estória. No programa do Rolando Boldrin, além de cantar maravilhosa e surpreendentemente, lançara no ar um apelo a mim, a sua amada, que eu assisti na televisão, que ligara por acaso, naquele momento, na casa do meu novo “senhor” e esposo. Ludugero me deixava muito tempo livre para a televisão, desde que o esperasse de espartilho branco ou negro, quando chegava de suas andanças e falcatruas. Aquilo só fez aumentar o meu remorso. Comecei a ficar triste, e com isso reapareceu, mas com um timbre diferente, a minha necessidade de ser fustigada, coisa a que Cipriano aderiu com furor. Mas alguma coisa estava errada, e meu amo começou a cansar-se de mim, embora eu continuasse bela como sempre e disposta ao sexo doloroso. Acabou colocando–me na zona, de onde eu não podia sair, pois a dona do bordel, era comadre de Ludugero e paga por ele para me vigiar.
Eu iniciara uma nova carreira, promissora, pois sendo como sou, logo virei a princesa e depois a rainha daquele lupanar. E Ludugero voltou a ficar orgulhoso de mim, o que me revelou, numa de suas visitas ocasionais. Mas eu não estava satisfeita, pois o remorso continuava a roer meu coração. Um dia, no auge da minha carreira, que era de cama e palco, pois eu dançava e cantava números sensuais, eróticos mesmo, no meu bordel, abandonei tudo e parti intempestivamente, trajando uma roupa branca de corista e minha sombrinha rendada, pela caatinga novamente, a pé, a esmo, seguindo a bússola do meu coração, na direção de Josué. Não é preciso dizer que o encontrei quando já estava com meu espartilho e véus em frangalhos, pelos espinhos, e praticamente nua. Oh! Maravilha do destino! Encontrei meu Josué que vinha com sua mala na mão e corremos um para o outro para um abraço apoteótico, de que numa mais me esqueceria. Lembro-me de que tocava em minha cabeça a cantilena em boca-chiusa da bachiana de Vila-Lobos. E rodamos, rodamos abraçados. Logo estávamos fazendo o Pavão decolar depois de um conserto engenhoso de Josué, que conseguiu fazer pegar o motor emperrado depois de tantos anos de abandono que quase o transformara numa sucata. Então de repente, estávamos voando novamente, abraçados, como outrora, na proa do Alma do Sertão, fazendo chover e perdoando os erros do mundo, nossos próprios erros. Eu continuava bela, e jovem, pois tivera o desconto daqueles anos de Cocayne, enquanto Josué estava um tanto acabado, mas com o entusiasmo recuperado. Nós ainda podíamos ser felizes. Ludugero, “karmicamente”, ficara para trás.

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Acordei nos braços de Josué e querendo descer da cama, quase cai do Pavão, que estava voando no seu automítico. Cheguei a ficar dependurada pela mão de Josué em pleno vôo. A, no mínimo um quilômetro de altura, seria difícil sobreviver àquela queda. Mas afinal, depois de maus bocados ele içou-me a bordo novamente, pois continuava um cabra arretado de forte, apesar dos cabelos brancos. Jurei nunca mais me separar do meu amor e pedia para ele me perdoar, pedia ardentemente, em seus braços, e ele parecia não estar entendendo o porquê. Resolvemos botar uma pedra sobre o passado. Ele estava mais carinhoso do que nunca, e eu, tão feliz que quase caí do pavão novamente. Então pedi a Josué para ele “ancorar-me na realidade”, o que ele fez, não com uma âncora pesada que ele carregava naquela mala, mas com sua ferramenta de carne, muito mais eficaz. Nós voaríamos e tornaríamos a voar, fisgada em seu arpão que me materializava no melhor dos sonhos, o sonho das mulheres apaixonadas e felizes, plenas em nossa glória de existir em absoluta carne e beleza.
O pavão voava em direção à Olinda, meu ponto de partida, onde tudo começara.

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Final



Olinda novamente


O Pavão sobrevoou Olinda, para maravilha da população, que estava em pleno Carnaval, naquele momento descendo a rua de São Bento na altura da Ribeira, com o maravilhoso bloco da “Pitombeira dos Quatro Cantos”, cantando o seu hino de grande beleza e nostalgia, entremeado de momentos frenéticos onde a rua ondulava no movimento acelerado do Frevo, em frente à casa de Giuseppe e Fiora, e também em frente da casa de Alceu Valença, onde anteriormente morara, por três anos, o meu cordelista predileto, o paulistano Guilherme de Faria.
O pavão desceu suavemente, ao lado da Matriz, e foi muito oportuno, sendo muito fotografado pelos turistas, passando despercebido em seu lado mais oculto aos leigos, e à própria população leviana, que o creditou a uma iniciativa da prefeitura para incrementar o Carnaval, como uma espécie de carro alegórico voador.
Logo estávamos batendo à porta do casarão de Giuseppe, no meio daquela confusão de foliões, e, eu entrando no espírito brincalhão, tive a idéia de fazer me passar por desfalecida nos braços de Josué, rasgando minhas roupas aqui e ali, e riscando meu corpo aqui e ali com baton.
Quando a porta se abriu, o assombro e a fúria de Fiora, diante daquela cena, eu desfalecida nos braços de Josué, toda esfarrapada e “arranhada” de espinhos, foi indescritível! Eu que acompanhava suas reações com os olhos semiabertos, “vidrados’, fazia um enorme esforço para não cair numa gargalhada.
Fiora mandou Josué colocar-me sobre a mesa da cozinha, e dava tapinhas em meu rosto, aflitíssima, gritando:
—Alma, Alma! querida, acorde, volte! Ah! Maldito Josué! Você, novamente trazendo ela nesse estado! Vocês são... incorrigíveis. Alma! Oh! Alma...
Giuseppe chegou correndo, de bermudão e sandálias, belo como sempre, apesar de envelhecido. Meu coração estava enternecido, ao mesmo tempo que eu não conseguia mais reprimir a gargalhada que acabou estourando para estupefação dos dois, que entenderam tudo, de repente, num misto de alívio indignação, e alegria. Eu estava bem, e estava fazendo o meu número de Carnaval, onde nada na vida é sério, nem sequer a morte, a loucura ou a dor. Eu estava novamente nos braços de Giuseppe, Fiora e... Anunciada, que chorava de alívio e alegria e a quem beijei muito, muito, minha doce “cunhadinha” !
Lá fora, o canto dos foliões, com sua fanfarra alegre e frenética, emoldurava, por assim dizer, esta cena de interior, como um quadro de Bajado, que representasse uma cena insólita, de uma “donzela” de Olinda, sentada numa mesa de cozinha, cercada dos seus afetos, e pintada de maneira extravagante, esfarrapada como uma colombina de outrora, no fim da folia... que não acabaria jamais!


FIM